Começando pelo que pode parecer um detalhe. Deu no jornal que a senadora Marina Silva escolheu de propósito o momento de anunciar a sua desfiliação do PT, na quarta-feira, 19, para coincidir com o dia da reunião do Conselho de Ética que, conforme o previsto, iria confirmar o engavetamento de todas as 11 denúncias e representações contra o senador José Sarney.
Com o que um comentarista considerou “impiedoso senso de oportunidade” e “inteligência política”, ela teria desejado marcar o que a distingue do partido em que militava há 30 anos, não só na frente ambiental, mas também no plano dos compromissos éticos originais da legenda.
De fato, sabia-se de antemão que os três representantes petistas no Conselho de Ética votariam a favor de Sarney, na linha da posição adotada pelo presidente Lula desde as primeiras denúncias de que o aliado havia quebrado o decoro parlamentar.
Parece lógico e pode ser verdadeiro. Mas, a ler os empoeirados manuais do ofício, informação jornalística é aquela que se calça em fatos, não em presunções ou deduções. Forçando uma comparação: se a mulher de César, além de ser honesta, precisa parecer honesta, a notícia, além de parecer fundamentada, precisa ser fundamentada.
Ou ainda: não basta dizer que dois mais dois são quatro – precisa mostrar por que.
Pelo visto, foi-se o tempo em que os melhores jornais construíam a sua credibilidade não deixando órfã nenhuma informação, mesmo as que à primeira vista se comprovariam por si mesmas.
Foi-se o tempo porque se foram quase todos os editores que, diante de uma notícia desacompanhada de certificado de origem – entrevistas de fontes, transcrições de documentos, diálogos entreouvidos – não pensavam duas vezes antes de cobrar dos autores alguma forma de corroboração objetiva do que apresentavam como verdades. Por mais plausíveis que elas soassem.
E quando a corroboração fosse impossível, o jornal tinha o escrúpulo de deixar claro para o leitor o que é fato e o que é especulação. Especular não é proibido em jornalismo, desde que caracterizado como tal.
Melhor ainda, com raciocínios a favor e contra. No caso da saída de Marina Silva do PT, o argumento em sentido oposto seriam os próprios “sinais de cautela”, como diz o noticiário, que cercaram o seu desligamento.
Nada do que ela tenha dito na entrevista em que a anunciou, nem na carta enviada ao presidente do partido, Ricardo Berzoini, que tomou a iniciativa de divulgar, é compatível com a versão de que tenha desejado dar uma agulhada no pragmatismo que Lula impôs aos companheiros, exigindo que preservassem Sarney.
O máximo que se permitiu para demarcar as suas diferenças em relação a Lula e ao PT foi dizer que “faltaram condições políticas para avançar no campo da visão estratégica, ou seja, de fazer a questão ambiental alojar-se no coração do governo e do conjunto de políticas públicas”.
Marina assinalou ainda que o momento é de ir além dos partidos – “todos têm problemas a serem saneados” –, mas do “encontro com os diferentes setores da sociedade” por “um novo padrão de desenvolvimento para o país”.
Sobre a ministra Dilma Roussef com quem tanto brigou e de quem tanto apanhou no governo, limitou-se a dizer que ela tem os pontos de vista dela e ela, Marina, tem os seus.
Enfim, se suspeitasse que a ex-companheira quisesse fazer uma desfeita ao partido, Berzoini não teria descartado como “sem sentido” a sugestão do ex-presidente petista José Dirceu de pedir à Justiça Eleitoral a sua vaga. Segundo a legislação, a menos que comprove “justa causa”, perde a cadeira o parlamentar que deixar a sigla pela qual se elegeu. A propósito, é isso que já anunciou que vai alegar o outro senador do PT que saiu no mesmo dia que Marina, o paranaense Flávio Arns. Ele disse que o partido trocou a bandeira da ética, que o fez se filiar a ele, pela bandeira eleitoral.
Para Berzoini, a ex-ministra “não agiu em detrimento do PT”, nem assumiu posição “dissonante” do partido.
Não só os fatos, portanto, podem ter mais de um lado. As especulações também.
O pior é que, hoje em dia, a imprensa não está mais sozinha em atribuir intenções aos protagonistas dos acontecimentos sem se dar ao trabalho acareá-las com a realidade.
Poucas coisas hão de ser tão frequentes nas avaliações do desempenho da mídia como as afirmações taxativas de que os periódicos deram de tal jeito ou deixaram de dar isso ou aquilo para beneficiar interesses próprios, de parceiros ou aliados.
De novo: isso pode perfeitamente bem ser procedente em quantas circunstâncias que se queiram, mas os juízes do jornalismo não estão menos obrigados do que os jornalistas das redações a mostrar, preto no branco, as presumíveis relações de causa e efeito que apontam. E de novo: não conseguindo, estão igualmente obrigados a esclarecer o leitor de que estão levantando hipóteses e não expondo fatos verificáveis.
E isso não é propriamente um detalhe.
Olha o título!
Toda semana o colega Carlos Brickmann transcreve no Observatório da Imprensa os “grandes títulos” do período. No espírito da coisa, dificilmente encontrará para a sua próxima relação um “mais grande” do que o de um artigo no caderno de economia de um jornalão desta quinta-feira:
“Rastreabilidade bovina é dever de todos”.