Oito dias depois de a crise da segurança em São Paulo ter se tornando o assunto dominante no país – e o assunto brasileiro mais destacado na mídia estrangeira –, o ex-prefeito e pré-candidato ao governo paulista pelo PSDB, José Serra, quebrou o seu criticado jejum de silêncio sobre a tragédia.
Reapareceu de forma inesperada para os padrões costumeiros da comunicação política.
Não convocou uma coletiva de imprensa, não deu uma exclusiva à Rede Globo, nem mesmo divulgou uma nota.
Publicou, isso sim, um artigo na seção Tendências | Debates da Folha de hoje.
Intitulado “O inimigo é o crime”, o texto é uma tomada de posição forte e clara em defesa do “uso legítimo da força” pelo aparelho de Estado.
Sustenta que a prioridade de todos quantos se manifestam sobre os ataques do PCC e suas consequências deve ser a de dar “imediata solidariedade à polícia”. Na linha do editorial de ontem do Globo [ver nota abaixo] afirma que os policiais, “mais do que nunca, devem ser valorizados”.
O editorial pelo menos lembra, em dois momentos, que a polícia tem a sua ‘banda podre’.
E por aí vai o artigo, defendendo a união ativa de todos contra a bandidagem, aplaudindo o pacote anticrime do Senado, propondo medidas adicionais e elogiando “o empenho e a franqueza” do governador Cláudio Lembo, antes da peroração:
”Nessa guerra, é preciso ter lado. E não esquecer: o inimigo é o crime. Vamos combatê-lo. Vamos eliminá-lo.”
Tudo muito bom, tudo muito bem. Mas do jeito que saiu, o artigo poderia ter sido escrito por qualquer um que ache que bandido bom é bandido morto e tenha o PhD, a cultura e a experiência de vida de José Serra.
Mas não os seus valores. Ou assim ficou parecendo.
Pois o texto não contém uma única referência às matanças da PM dos últimos dias que o governo do Estado faz o possível para esconder, sob intensa cobrança da mídia e das organizações de defesa dos direitos humanos.
Direitos humanos que nunca tiveram em José Serra um detrator, muito antes ao contrário.
A omissão do tucano é ensurdecedora. Se dá a ver no mesmo dia em que a mesma Folha revela na primeira página que em cinco dias o IML recebeu corpos de 272 mortos a tiros. “No período”, informa o jornal, “o Estado divulgou 138 óbitos”. E especula:
”Ou a violência sem qualquer relação com o PCC cresceu muito ou a polícia matou mais”.
Qual das duas hipóteses parece mais verossímil?
Até o governador começou a deixar de desmentir o indesmentível. “Polícia pode ter matado inocentes, admite Lembo”, mancheteia o Estado de hoje.
Impossível não relacionar a omissão de Serra sobre as represálias da PM com a matéria publicada ainda na Folha, meia dúzia de páginas adiante daquela do seu artigo.
Na reportagem “Segurança vira obstáculo para favoritismo de Serra”, de José Alberto Bombig e Malu Delgado, se lê:
”Para líderes do PSDB, Serra, historicamente ligado aos direitos humanos e à luta contra a repressão, terá dificuldades na construção de um projeto que contemple a defesa da ação policial do Estado (107 civis mortos até sexta-feira) e, ao mesmo tempo, reafirme sua posição de combate ao crime.” E mais:
”Um dos desafios do tucano será conciliar [na Segurança] o grupo ligado ao governador Mario Covas e a ala amparada por seu sucessor, Geraldo Alckmin, mantida na atual gestão…”. E principalmente:
”Apesar da maior proximidade com o primeiro, Serra não deverá adotar todas as posições pró-direitos humanos na campanha, avaliam tucanos, já que parte expressiva da sociedade exige uma ação enérgica da polícia.”
P.S.
Da série “Primeiras Impressões”:O melhor da reforma gráfica implantada hoje na Folha – que por sinal está mais para ajuste do que para reforma – é a mudança no padrão dos textos.
A substituição da letra livresca Minion pela Chronicle, cuja robustez a torna indicada para jornais [é muito parecida com a do Estadão, da família New Century] justifica a afirmação da Folha, em título de página inteira, que ficou “mais fácil de ler”.
O que talvez não se possa dizer, à primeira vista, de cada uma das outras inovações adotadas.
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