Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os dois lados do voto via web

No momento em que tanto se fala das possibilidades abertas pela internet para expandir a participação do público nas decisões dos governos – a ‘democracia direta’ das consultas populares -, o Estado traz hoje uma instrutiva reportagem do seu correspondente em Belo Horizonte, Eduardo Kattah, sobre as iniciativas do prefeito Fernando Pimental, do PT, de recorrer à web para saber o que os belzontinos acham dessa ou daquela medida em estudos na Prefeitura.

A primeira experiência foi o Orçamento Participativo Digital, no ano passado. Outra se seguiu e uma terceira está no forno.

Tudo muito bom, tudo muito bem, mas, além dos problemas habitualmente apontados pelos críticos do que chamam ‘plebiscitismo’, os resultados das consultas via internet podem distorcer, em vez de refletir a vontade da maioria, na medida em que os interesses organizados se movimentam para fazer os eleitores desconectados votar nos computadores das entidades envolvidas.

A reportagem conta um caso que bem pode ser chamado de ‘voto de cabresto eletrônico’. Lidando com a vida real, o texto dá a oportunidade de discutir o assunto com olhos menos deslumbrados e mais com os pés no chão. A matéria:

‘O prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel (PT), está recorrendo à internet para pôr em prática um conceito próprio de democracia direta. Enquanto se discute a facilitação ou não dos dispositivos que prevêem a realização de plebiscitos e referendos no País, Pimentel, em seu segundo mandato, inovou e tem utilizado a rede mundial de computadores para chamar a população a se pronunciar sobre temas específicos.

A primeira experiência ocorreu no fim do ano passado. O chamado Orçamento Participativo Digital contabilizou pouco mais de 500 mil votos de eleitores na capital mineira. A votação definiu a aplicação de R$ 20,3 milhões em obras na cidade, entre 2007 e 2008.

O resultado entusiasmou Pimentel. Em janeiro, o prefeito vetou um projeto aprovado pela Câmara Municipal proibindo a abertura do comércio aos domingos e feriados e decidiu lançar uma consulta digital sobre o tema. A idéia era mediar a disputa entre comerciantes, favoráveis à abertura, e comerciários, contrários. Até o dia 5 de abril, eleitores poderão utilizar a página da prefeitura na rede mundial de computadores para opinar sobre o assunto.

Uma nova consulta já está engatilhada: a adoção ou não de um rodízio de veículos na cidade. “A idéia da democracia direta, que é o que a gente pratica quando faz esse tipo de consulta, não deve ser excludente da democracia representativa”, observa Pimentel, se adiantando às eventuais críticas por supostamente retirar poder do Legislativo. “É um instrumento adicional, importante, imprescindível, eu diria, que fortalece a democracia representativa.”

O endereço eletrônico da prefeitura avisa que o resultado da consulta pública irá contribuir para a elaboração do projeto de lei sobre o funcionamento do comércio, que será enviado à Câmara Municipal. A justificativa foi a necessidade de uma discussão mais profunda sobre o assunto, que envolvesse além de empregados e empregadores do setor comercial, também os consumidores.

Mas, ao contrário do orçamento participativo, o tema atual despertou pouco interesse. Até a última sexta-feira, haviam sido contabilizados somente 10.291 votos, com ampla vantagem para os interesses dos comerciários. A opção “funcionar nos domingos que antecedem datas festivas/comemorativas (dia das mães, dos namorados, dos pais, das crianças e Natal)” tinha 51,4% das preferências ou 5.293 votos. É justamente assim que o comércio funciona hoje.

Outra alternativa, a de “funcionar somente de segunda a sábado”, contabilizava 32,7%, num um total de 3.363 votos. Por fim, a opção “funcionar todos os domingos e feriados, sem limites de horários” tinha apenas 797 votos, equivalentes a 7,74% do total. Mas a consulta continua até os primeiros dias do próximo mês.

O cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), alerta que o resultado, apesar do universo bem pequeno ouvido na consulta, pode contaminar o trâmite de um assunto no Legislativo municipal. “Você cria uma santificação de algo que é visto como correspondente à vontade popular”, avalia, em tom crítico.

Para Cláudia Volpini, da Associação Comercial de Minas (AC Minas), a consulta carece de base científica para que o resultado seja “compatível com a realidade”. Para ela, trata-se de “resultado inexpressivo em termos populacionais”, que não serve de base para o prefeito tomar uma decisão.

Não é preciso procurar muito para encontrar exemplo de distorção que a consulta pela internet pode gerar. No caso da discussão sobre o funcionamento do comércio, o sindicato da categoria tem trabalhado para aumentar a participação de seus filiados.

O diretor do Departamento de Imprensa e Comunicação do Sindicato dos Comerciários, Milton Mathias Diniz, disse que a entidade mobilizou como pôde a categoria. “Como a maioria dos trabalhadores não tem computador, a gente tem buscado o pessoal para votar aqui no sindicato”, explicou.

O fato de serem feitas pela internet é uma “distorção evidente” das consultas de Belo Horizonte, acredita o pesquisador Fábio Wanderley Reis. Para ele, a amostra não é representativa da população, mas o resultado do levantamento acaba sendo supervalorizado por conta do que chama de “mitificação dos mecanismos de democracia direta”.

O prefeito Fernando Pimentel rebate o suposto aspecto “elitista” da idéia. “Alguém pode dizer que eu estou falando de um segmento muito pequeno da classe média. Não é verdade. Você vai na favela e está cheio de lan house”, disse, referindo-se às casas que alugam computadores para jogos pela internet. O prefeito faz uma concessão: no caso de votações baixas, ele admite que o resultado não expressa a opinião da maioria dos cidadãos. Mas isso não tira sua crença no mecanismo de consulta.

No caso do rodízio, ele espera que ocorra uma espécie de plebiscito digital. A consulta ainda depende de um estudo técnico sobre o fluxo da frota da capital, que deve atingir 1 milhão de veículos neste ano. “Chegando a sugestão técnica, vamos ouvir a cidade pela internet”, promete.’

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