Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Desaviso ou sinal de alerta?

O terrorismo nasce do ódio. E de onde nasce o ódio? O que aproxima a questão social no Brasil do conflito árabe-israelense? De fato, quase nada.

No mundo das idéias, porém, aparecem novidades perigosas. Nossa criminalidade ainda não é terrorista, mas pode evoluir para isso. O terrorismo nasce antes como idéia para depois ir ao subterrâneo social tomar corpo, alimentando-se no ódio e sede de vingança.

O ódio não nasce propriamente, ele emerge de um espaço que metaforicamente chamamos de subterrâneo social, onde estão os instintos de morte e a ausência de interdições. A barbárie moderna é diferente da imaginação que fazemos da barbárie primitiva, porque o primitivo sabe que pratica o mal ao vingar-se. Segundo relato de Freud, o primitivo pratica uma série de penitências para liberar-se do fardo da vingança ao retornar da guerra. Por trás do medo da vingança do espírito do morto, está o remorso como expressão ética do próprio matador. ‘Atrás dessa superstição oculta-se uma sensibilidade ética que nós, civilizados, perdemos’ (Sigmund Freud, Consideraciones sobre la guerra y la muerte, em Obras Completas en 3 Tomos. Trad. Luis López-Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca Nueva. 1996. Tomo 2, p. 2114). O vingador moderno não tem mais remorso. A barbárie moderna alimenta-se da cotidiana imunização diante da dor dos outros, lembrada sempre por Alberto Dines:

‘Essa complacência com a crueldade infiltra-se insidiosamente em nossa forma de pensar e agir. Em dosagens nada homeopáticas, estamos sendo imunizados para aceitar as diferentes violências que se instalam no corpo e na alma da famigerada sociedade cordial.’ (‘As seduções do terror’, em Jornal do Brasil, 22/11/2003, reproduzido em Observatório da imprensa, Aspas, Pacifismo & Terrorismo, 25/11/2003).

A complacência repetida pode evoluir até a paralisia que se permite associar idéias nobres a outras absolutamente imorais sem um remorso, sem uma vergonha, sem uma sombra de compaixão. É essa paralisia moral que vem estampada no artigo ‘Desaviso’, de Marilene Felinto, na edição de nº 134, de dezembro de 2003, da revista Caros Amigos, que vem sendo discutido neste Observatório [veja remissões abaixo].

Demarcar o terreno a partir do qual sabemos exatamente aonde vai dar essa associação de idéias entre fins supostamente nobres e táticas terroristas supostamente admissíveis em nome da fraqueza diante do inimigo, eis o trágico lado positivo da crônica da escritora, que podemos apropriar como termômetro contra as ‘seduções do terror’ e aviso de que é chegada a hora de organizar resistência à barbárie intelectual, colher que remexe o caldeirão de instintos de morte do subterrâneo.

Combater o ódio patológico que se expressa no racismo, no anti-semitismo e em outras fobias que emergem do subterrâneo rancoroso e vingativo das sociedades, não é tarefa só de quem sofre o preconceito. Aos que o observam, o racismo causa uma espécie de vergonha e desperta uma necessidade de reagir para seguir acreditando que exista algo parecido com humanidade no animal da raça humana. Como escreveu Gerald Messadié, o fenômeno patológico do anti-semitismo

‘diz respeito também a todo ser humano civilizado e preocupado em continuar a sê-lo. O que está em jogo é, com efeito, sua própria natureza, a imagem que faz de si próprio, a confiança que atribui a si mesmo e ao próximo, e a fé na possibilidade de viver uma existência diferente da existência de uma bactéria ou de um animal selvagem’ (Gerald Messadié. História Geral do Anti-Semitismo. Tradução de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. P.8).

II

As palavras-chave de Felinto são ódio e hipocrisia. A lógica é pouco elaborada, e por isso mais contemporânea. Segundo a cartilha de Felinto, os pobres têm ódio dos ricos, os ricos são hipócritas, porque são surdos para a voz da miséria e cegos porque não vêem seus crimes. Em sua hipocrisia, pedem pena de morte para os pobres quando estes matam os ricos, não quando pobres matam-se entre si. E assim evolui até chegar a dizer por vias nem tão indiretas que matar um rico não é crime, é uma defesa que nasce do ódio dos que sofrem a exclusão social, a qual é ‘sinônimo mesmo de execração pública e de pena de morte’. Ao divagar sobre o tratamento criminal dos crimes hediondos, repisa Felinto a mesma lógica centrada no binário ódio/hipocrisia, porque para ela a distinção só favorece aos ricos:

‘O que torna um crime mais hediondo que outro? Só se for a classe social da vítima: quando é rica e loirinha, então o crime é mais hediondo do que se a vítima for um ‘Pernambuco’ qualquer…’.

Ao mesmo tempo em que se solidariza com os excluídos (desde que sintam o ódio dos ricos que deviam sentir), Felinto não consegue solidarizar-se com um pai que perde a filha assassinada, na suposição de que ele seria um ‘agente da exclusão’. Felinto distorce, em desaviso, Kant, que disse que a humanidade da Lei Moral em nós é que nos faz termos uma dignidade, que é a qualidade daquilo que não tem preço no mercado, num infeliz jogo de palavras em que a escritora termina afirmando que todos nós devíamos ter preço no mercado, e porque o assassino não tem valor de troca, então essa menos-valia deve estender-se a todos. É uma espécie de igualitarismo radical que já era explicitamente condenado por Marx, nos Manuscritos de juventude, quando dizia que não se devia praticar a igualdade real sob pena de ela tornar-se ‘inveja generalizada’. Porque todo ser humano é único e inigualável, ele não é um número de uma série. Felinto quer salvar o homicida de ser mais um número na esteira de produção da criminalidade, mas só consegue fazer isso pagando o preço de imputar essa mesma condição de mero objeto à vítima. Felinto argumenta em favor da igualdade radical: se o assassino é um número, que Liana seja também apenas mais uma vítima, porque afinal morre gente assassinada todo dia nas favelas.

O igualitarismo, o ressentiment, o fomento do ódio e a adoração da ação direta na política, tudo isso está no ar nos discursos e práticas de um certo esquerdismo supostamente radical entre nós. Marilene Felinto foi apenas quem mais fundo caiu nas ‘armadilhas espalhadas numa sociedade empurrada por palavras de ordem nem sempre justas e simplificações quase sempre incorretas’ (Dines, ‘As seduções do terror’). As idéias que apresenta explicitam enganos que estão no imaginário social, que é urgente compreender para corretamente exorcizar. Seu discurso explicita a ‘viseira teórica’ que de modos mais elegantes ou sub-reptícios freqüenta práticas da esquerda brasileira, com reflexos em (ou na ausência de) políticas públicas para a segurança. A mesma ‘viseira ideológica’ que faz alguns defensores de direitos humanos até hoje condenarem a Lei dos Crimes Hediondos (que afinal veio ao mundo para resgatar no sistema criminal brasileiro um pouco de valor à vida das vítimas apenas depois do trágico assassinato de Daniela Perez) impede o Ministério da Justiça de apresentar ao país alguma proposta viável, em curto prazo, de política de segurança interna. Tem razão o senador Demóstenes Torres quando afirma, em entrevista ao Jornal Opção, que:

‘os nossos dirigentes do setor de segurança pública não entendem nada de segurança pública. Têm uma viseira teórica – a idéia de que a pobreza causa criminalidade. O ministro Márcio Thomaz Bastos e todos aqueles que o cercam no Ministério da Justiça estão convictos disso. E é profundamente desalentadora essa conclusão falaciosa deles – se a pobreza é a causa da violência, então a violência não tem solução nem a médio prazo, porque o Brasil não vai erradicar a pobreza facilmente. Obviamente, essa tese não tem fundamento. É uma desculpa para a própria incompetência’.

Não se deve perder de vista também que essa viseira teórica a respeito da segurança interna costuma vir associada a posturas autoritárias que eliminam o inimigo do debate se ele reclama de ausência de valor para a vida da vítima: tacham-no de fascista, como com certa facilidade Felinto exclui do debate todos aqueles que não concordam com a idéia de que a vítima merecia morrer. Da parte do Ministério da Justiça, esse autoritarismo recalcitrante na esquerda não quer ouvir nada que não seja adequado à sua Verdade, que se congela como algo sagrado. Mais uma vez é preciso ouvir o senador Demóstenes Torres quando afirmou que:

‘o Ministro da Justiça inventou que a maioridade penal aos 18 anos é cláusula pétrea. Ora, dentro das cláusulas pétreas o constituinte estabeleceu apenas a existência de uma maioridade penal, mas a definição dessa maioridade aos 18 anos ficou fora das cláusulas pétreas. Logo, a idade, em si, pode ser reduzida ou aumentada sem ferir o princípio constante das cláusulas pétreas. (…) Quer dizer, caímos na definição do conto de Mário de Andrade – cláusula pétrea é qualquer coisa que o jurista pense que é cláusula pétrea. É uma vergonha terrível’.

Diante dessa ‘vergonha terrível’, é legítimo o direito de Ari Friedenbach de pedir o que não existe no sistema criminal brasileiro: a justa retribuição do mal, o mesmo direito que Glória Perez tinha. É o mais triste dos direitos esse, que ninguém quer exercer: pedir punição. O rabino Sobel e um bispo da CNBB, por um instante, conseguiram furtar-se à complacência diante da crueldade e pedir em público que se discuta a questão da segurança e da retribuição (castigo) com seriedade e sem dogmas. Pedir pena de morte com certeza foi um desabafo desesperado, não uma solução. Pode ser que a maioridade aos 16 anos não seja solução, assim como pena de morte não é. Mas temos direito ao debate. Temos direito de não mais ouvir que quando a Questão Social se resolver então não vai haver mais vítimas porque todos seremos felizes para sempre. Temos direito de discutir se a imaginação errada da ‘re-educação’ de adultos não é a verdadeira culpada pelo caos social no sistema de justiça criminal, que não se importa mais em castigar, e com isso zomba das vítimas. Esses direitos não são só de Ari, são de todos nós. Ari sabe que de nada vai adiantar, para ele, maioridade penal mais cedo, porque o assassino de Liana é inimputável na lei que rege o fato. Mas não consegue imaginar que possa ver outro pai na mesma situação.

E contudo não é hora de acusar ou defender a maioridade aos 16 anos. Por enquanto só queremos mostrar como alguns discursos que se apropriam da bandeira dos direitos humanos sabem ser autoritários e insensíveis diante da dor alheia. Quem muito se insensibiliza, fanatiza-se e congela-se em suas próprias ‘cláusulas pétreas’. Quem não consegue senão desviar o olhar diante do sofrimento inocente das vítimas da criminalidade, não devia defender direitos humanos, porque termina defendendo fórmulas dogmáticas e teorias desumanas, que são via de regra espelho do próprio narcisismo. Quem pede que o sistema criminal falido (e por acaso não é falido um sistema em que um foragido da justiça entra e sai de repartições policiais e judiciais para ser recapturado só depois de matar 12 crianças?) se modifique com certeza não consegue conviver com a idéia de encontrar o assassino solto quatro anos após o homicídio (o que em tese podia acontecer antes da lei de 1994 que considerou hediondos os homicídios qualificados). Glória Perez não conseguia e tinha justo motivo para não conseguir conviver com essa realidade. Lutou pela lei, para que outros não passassem pelo que passou. Nem faz dez anos e Marilene Felinto vem dizer que crime hediondo é hipocrisia dos ricos, porque para estes é hediondo qualquer crime de que sejam vítimas. Para Felinto, Liana Friedenbach não é inocente, é culpada por ser da classe opressora hipócrita

‘de nomes estrangeirados, pronta para impor-se, para humilhar e esmagar sob seus pés os espantados ‘silvas’, ‘sousas’, ‘costas’ e outros nomezinhos portugueses e ‘afro-escravos’’.

Todos esses ricos, opressores, e ainda por cima judeus, são para Felinto ‘fascistas’ que ‘fazem ouvidos moucos para a mensagem que vem da miséria’. E é a escritora quem pergunta:

‘Até que ponto se pode chegar?’

III

E então alguém explicita até as últimas conseqüências esse discurso de suposta defesa dos direitos humanos convertido em cultura do ódio: a luta de classes, transformada em luta de ódios, não conduz apenas à criminalidade interna. Felinto associa a hipocrisia dos ricos para com o sofrimento dos pobres no Brasil à hipocrisia que imputa aos judeus no conflito do Oriente Médio:

‘Está claro que o rabino H. Sobel, ao pedir a instituição da pena de morte no Brasil, só ousou fazê-lo porque a jovem morta, Liana Friedenbach, pertencia à comunidade judaica de São Paulo. A hipocrisia do rabino é flagrante: está claro que ele defende a pena de morte para brasileiros pobres. No seu delírio, o rabino deve ter achado que aqui é uma espécie de Israel – e que a esmagadora maioria dos brasileiros, da classe pobre, é uma espécie de Palestina a ser eliminada da face da terra!’

Já foi suficientemente traduzido, neste Observatório, esse discurso de suposta denúncia da exclusão como um reedição das mentiras mais infamantes que integram o arsenal do anti-semitismo (Carlos Brickmann, Eva Blay, Alberto Kleinas e Esther Kuperman, no Observatório de 30/12/2003, Heliete Vaitsman, em 13/01/2004). Talvez fosse esclarecedor, à autora, descobrir que revigora também um poderoso slogan názi, tirado de título de novela de Franz Werfel, sobre conflitos entre pais e filhos: Nicht der Mörder, der Ermordete ist schuldig (algo como: a culpa não é do assassino, mas da vítima, cf. Peter Gay, Weimar Culture – The Outsider as Insider. Harper, 1970. p. 115).

Por muito desaviso, e incapacidade de calar diante da dor alheia, Felinto absolve gloriosamente R.A.A.C. e condena Liana Friedenbach, que não morreu inocentemente por estar no lugar errado e na hora errada, mas porque seria apenas ‘alvo’ do ódio de classe que Felinto adjudica aos ‘desgraçados da terra’, e que justifica, segundo a escritora, o assassinato. É aqui que a Questão Social, na concepção fundamentalista, se parece com o conflito árabe-israelense, e permite que a mesma colher que absolve heroicamente o assassino de Liana, ao tempo em que olha com desdém e complacência o sofrimento de Ari Friedenbach, remexa mais fundo no subterrâneo social para de lá tirar o instinto de ódio anti-semita. R.A.A.C. matou por ódio de Liana, e torna-se herói para Felinto, do mesmo modo como os terroristas do Hamas assassinam diariamente inocentes em Israel e são glorificados postumamente como heróis, quando jamais deixaram de ser assassinos.

IV

A lógica de Felinto não é nova. A Razão moderna, que se permitiu arroubos de autoritarismo ao formular a dialética da liberdade, com Rousseau (a liberdade é um bem tão nobre que se deve obrigar o outro a ser livre), permitiu-se imputar a outros sentimentos que deviam sentir (como no caso da adjudicação de consciência de classe ao Proletariado, no elaborado marxismo de Lukács). É mais ou menos o que permite a Felinto imputar aos assassinos de Liana o ódio supostamente gerado pela exclusão. Empiricamente, mais provável é que não se encontre esse ódio, mas a absoluta futilidade da motivação, futilidade que anda junto a uma apatia moral diante da vida ou morte alheia, resultante dessa ausência de interdições (como o elementar ‘Não matarás’), estimulada também por muitos anos de absoluta irresponsabilidade do sistema de segurança interno. Não foi R.A.C.C quem matou Liana, ou, lido de outro modo, R.A.C.C. matou Liana em ‘legítima defesa’ porque ela era culpada pela ‘exclusão social’ que matou R.A.C.C. em primeiro lugar.

A mensagem que vem da miséria não é (ainda) de ódio, fanatismo, anti-semitismo e xenofobia, como pretende Felinto. Mas aqui se repete o mesmo defeito marxista da ‘adjudicação de consciência’: os excluídos de Felinto deviam odiar os ricos, as loirinhas e os de sobrenomes estrangeirados, e como deviam ter consciência de que sua exclusão é causada pela mera existência destes últimos, devem matá-los, antes que morram. Nada disso acontece, senão no plano das idéias que fazem apologia do terrorismo. Por enquanto…

Com menos recursos de dialética, Felinto repete a defesa de Sartre do terrorismo. O argumento mais popular em defesa do terrorismo, lembra Michael Walzer:

‘foi proposto na sua forma mais radical por Sartre numa justificativa do terrorismo da FLN na Argélia, publicada como prefácio do livro de Franz Fanon Os desgraçados da terra. É o seguinte o resumo da argumentação de Sartre:

Abater um europeu a tiros é matar dois coelhos com uma cajadada: destruir um opressor e ao mesmo tempo o homem que ele oprime. O que sobra é um morto e um homem livre.

Com seu próprio estilo e certa queda pelo melodrama hegeliano, Sartre está aqui descrevendo o que considera ser um ato de libertação psicológica. Somente quando se revoltar contra o senhor, enfrentá-lo fisicamente e matá-lo, poderá o escravo criar a si mesmo como ser humano livre. O senhor morre. O escravo renasce. Mesmo que essa fosse uma descrição crível do ato terrorista, o argumento não é convincente. Ele está aberto a duas perguntas óbvias e frustrantes. Em primeiro lugar, a relação unívoca é necessária? Era preciso um europeu morto para libertar um argelino? Se assim fosse, não haveria na Argélia europeus em quantidade suficiente (…) A segunda pergunta levanta questões mais familiares: qualquer europeu serve? A menos que Sartre pense que todos os europeus, até mesmo as crianças, são opressores, ele não pode acreditar que qualquer europeu sirva. Porém, se somente for libertador atacar e matar um agente da opressão, estamos de volta ao código político. A partir da perspectiva de Sartre, isso não pode estar certo, já que os homens e mulheres que ele está defendendo tinham rejeitado explicitamente esse código. Eles mataram europeus a esmo, como na conhecida cena do filme A batalha de Argel (fiel em termos históricos), na qual uma bomba é detonada numa sorveteria onde adolescentes franceses estão tomando vitamina e dançando’ (Michael Walzer. Guerras justas e injustas – uma argumentação moral com exemplos históricos. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp. 348-350).

O Mal não nasce à toa da natureza, ele é natureza pervertida pela Razão. ‘A barbárie racista não nasce por acaso. Alguém precisa estimulá-la intelectualmente’ (Carlos Brickmann, ‘Saindo do Armário’, em Jornal de Debates, Observatório da Imprensa, 30/12/2003). O anti-semitismo é um fenômeno histórico mas já está de certo modo incorporado ao inconsciente bárbaro de todas as sociedades modernas. Cultivando-se o ódio, ele aparece como se fosse natural. O anti-semitismo é um tipo de racismo e todo racismo é um tipo de ódio. Esse ódio, forma em que se materializa o instinto de morte, faz parte do subterrâneo bárbaro de toda sociedade moderna, que não conhece interditos, onde a palavra inocência não diz nada. Tal como o inconsciente individual, esse inconsciente social é rancoroso e vingativo.

Felinto foi seduzida pelo encanto dos raciocínios extremistas de nosso tempo, em que para justiçar os oprimidos pode-se (ou deve-se) pagar com a vida dos opressores, mesmo que não haja culpa. Existem crimes de responsabilidade coletiva, como a exclusão social e a miséria humana? Como não é fácil equacionar essa pergunta, a armadilha do nosso tempo é cair na solução mais fácil e pôr a girar a roda da vingança. Punir inocentes a esmo é castigar a classe (ou raça) opressora de modo exemplar, como é corriqueiro na tradição autoritária. Esse triste ‘desaviso’ serve a todos nós como sinal de alerta.

V

O aviso é de que discursos fundamentalistas já estão no ar no cenário ideológico brasileiro. A associação entre excluídos, ódio, e vingança com o ressuscitado ‘utilitarismo’ que sempre foi a ética esquerdista dominante (até mesmo em Marx, que se permitia fazer juízos surpreendentes a respeito da ‘utilidade’, para a causa final do proletariado, de algumas vitórias imperialistas) é o resultado dessa longa complacência com a crueldade terrorista. Se é hora de organizar a resistência democrática contra o anti-semitismo, é hora também de dar um basta à aprovação sub-reptícia dos assassinatos terroristas praticados em nome da justiça da causa palestina. É hora de romper com esse dualismo simplista, imposto sub-repticiamente pelo discurso esquerdista, de que quem não aprova a causa palestina e os assassinatos terroristas está do lado da direita, de Ariel Sharon e de George W. Bush.

É preciso escutar o alerta de Alberto Dines e organizar uma contra-opinião pública a esse discurso fácil, que recuse cair em

‘centenas de armadilhas espalhadas numa sociedade que continua empurrada por palavras de ordem nem sempre justas e simplificações quase sempre incorretas. São pequenas amostras de outras, gigantescas, que empurram o mundo, 70 anos depois da ascensão de Hitler, a submeter-se ao terror e suas fascinantes ambigüidades’ (ainda ‘As seduções do terror’, já referido).

Para ajudar a sair das armadilhas do pensamento fácil e dogmático, de um novo esquerdismo fundamentalista, não podia ser mais oportuna a publicação, em 2003, de tradução de livro escrito na década de 70, por Michael Walzer, então ativista político contrário à Guerra do Vietnã. A partir de casos históricos, Walzer discute os dilemas morais da guerra e recusa-se a permanecer na ética utilitária que permeia a discussão moral e a jurisprudência do direito internacional. Walzer formula perguntas difíceis, não se furta a dizer que em certos casos não há uma boa resposta. Teoricamente, segue a tradição que distingue dois modos de juízo sobre a guerra: o direito à guerra (jus ad bellum) e o direito na guerra (jus in bello).

Pode existir uma causa justa lutada por meios ilegítimos que continue justa? Pode existir uma causa injusta lutada por meios legítimos que se torne justa?

Se por um lado uma guerra travada segundo as convenções não torna justa a causa injusta, de outro, não podemos considerar assassinos os soldados de um Estado que declara uma guerra injusta, a não ser que se conduzam de modo assassino matando não-combatentes Ainda assim, como sustenta Walzer, nenhum juízo sobre a guerra é fácil. No reino da necessidade, pode ocorrer que na guerra contra um inimigo cuja perspectiva de vitória fosse aterradora alguns meios ilícitos tornem a vitória mais amarga, mas não injusta (é o caso da 2ª Guerra e do bombardeio de cidades alemãs, comentado por Walzer). Se na guerra entre Estados não é fácil formar uma opinião justa, mais difícil ainda é na guerra civil. Uma causa justa, nesse caso, torna-se injusta se a luta é travada por meios ilegítimos, entre eles incluído o assassinato de civis. A dificuldade aqui é que na guerra civil quase todos os combatentes são civis. Se não se pode imputar a pecha de injustiça à causa de todo um povo em guerra civil porque apenas alguns de seus combatentes são injustos na guerra, não é fácil saber como se torna possível a defesa contra o terrorismo desses combatentes civis. Admitindo-se que todos os Estados do mundo têm legítimo direito a não tolerarem agressões contra seus cidadãos, o problema aparece quando a declaração de guerra, e a necessária obediência a convenções de guerra, não é possível. As agressões à integridade de Israel que não partem de exércitos de Estados, mas de organizações militares (ou paramilitares) que não têm compromisso – nem ao menos formal – com algumas proibições do jus in bello, tornam ainda mais difícil definir a adequada forma e medida da justa e legítima defesa de Israel.

É possível que a soberania palestina devesse preceder ao cessar-fogo de grupos armados que lá atuam, até mesmo para que eles tenham algo a perder, sua própria soberania (admitindo-se, o que não está evidente, que a soberania palestina é a única causa da guerra civil, e não a perspectiva fanática da cruzada para a ‘vitória final’ do Islã). Se for um Estado, a Palestina inscreve-se, pelo menos juridicamente, num universo em que se vê obrigada a renunciar formalmente ao terrorismo e onde se torna justa uma declaração de guerra caso incorra nessa prática ilícita. Como estão as coisas, não havendo interdição moral contra o assassinato de inocentes, na disseminada cultura de ódio no Oriente Médio, termina-se tragicamente por ter de admitir que quem mata já não tem nada a perder.

A complacência moral pós-moderna, valendo-se ou não da dialética de Sartre, vê apenas o que quer ver: a justiça da causa e não o jus in bello, quando os meios são absolutamente imorais. Termina sofrendo de paralisia moral, desviando o olhar do assassinato de inocentes, que se tornam meros objetos ou alvos, ou alguém que ‘merece morrer’. Uma vez que se compara explicitamente o pobre brasileiro ao palestino, será preciso lembrar que nenhum tem direito de matar em vingança.

Será preciso lembrar, com Walzer, que

‘Israel, desde sua criação em 1948, vem sendo repetidamente atacado por guerrilheiros e terroristas palestinos que operam com base em Estados vizinhos, mas que não são afiliados formalmente a seus exércitos. Em resposta a esses ataques, as autoridades israelenses experimentaram ao longo dos anos praticamente todas as formas concebíveis de contra-ataque – testando, por assim dizer, a política e a moral da ação de represália. É uma história cruel e extraordinária, que fornece ao estudioso do assunto todos os exemplos que ele poderia desejar (e mais alguns). E, embora não sugira que as represálias em tempo de paz propiciem a paz, ela também não indica nenhuma resposta alternativa a ataques ilegítimos.

A maioria dos ataques palestinos é obra de terroristas, não de guerrilheiros; ou seja, de acordo com a argumentação dos dois últimos capítulos, eles foram dirigidos aleatoriamente contra alvos civis: agricultores que trabalhavam perto da fronteira, ônibus em estradas rurais, casas e escolas de lugarejos e assim por diante. Logo, não há nenhuma dúvida quanto a sua ilegitimidade, qualquer que seja a nossa opinião acerca do conflito árabe-israelense mais amplo. Também não pode haver nenhum questionamento quanto ao fato de os israelenses terem um direito de reagir de algum modo (…) Não obstante, reações específicas por parte de Israel foram sem dúvida questionáveis, pois é dificílimo saber o que fazer em casos semelhantes. Terroristas abrigados por Estados vizinhos com os quais não estejamos abertamente em guerra não se configuram como alvo fácil. Qualquer reação militar será assinalada por uma espécie de assimetria característica da represália em tempo de paz: a incursão original não é oficial; o contra-ataque é o ato de um Estado soberano, que desafia a soberania de outro Estado. Como julgar esse tipo de desafio?’ (Walzer, op. cit. pp. 369-370).

Também do ponto de vista árabe, o conflito que tomou corpo com a Guerra dos 6 Dias é apresentado como uma vitória justa de Israel, mas que deixa interrogações, do tipo formulado por Hourani:

‘O resultado mais importante a longo prazo foi a ocupação do que restava da Palestina árabe: Jerusalém, Gaza e a parte ocidental da Jordânia (geralmente conhecida como Margem Ocidental). Mais palestinos tornaram-se refugiados, e mais caíram sob o domínio israelense. Isso fortaleceu o senso de identidade palestina, e a convicção entre eles de que no fim só podiam contar com eles mesmos, e também colocou um problema para os israelenses, estados árabes e grandes potências. Devia Israel continuar ocupando o que conquistara, ou negociar a terra por algum tipo de acordo pacífico com os estados árabes? Devia haver algum tipo de entidade política para os palestinos? Como podiam as potências conseguir um acordo que não resultasse em outra guerra, à qual podia ser arrastadas?

‘ É possível que alguma iniciativa dos vencedores abrisse o caminho para a resposta a algumas dessas questões, mas a iniciativa não veio, talvez porque levou algum tempo para que os israelenses digerissem os resultados de uma vitória tão súbita e completa’ (Albert Hourani, Uma História dos Povos Árabes. Tradução de Marcos Santarrita. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. pp. 414-5).

Estados em guerra sofrem de medos, surtos histéricos e ansiedades, como indivíduos. Diante de conflitos em que é muito difícil situar onde exatamente começa e onde termina a razão de ambos os lados, e em que não saberíamos o que fazer para terminar a guerra se estivéssemos lá, o mais responsável seria manter um silêncio respeitoso. Mas a partir do momento em que surgem simplificações grosseiras de idéias sobre a guerra dos outros, que remexem o subterrâneo bárbaro de nossa própria sociedade, então é hora de formular mais perguntas, e não adiantar-se em respostas dogmáticas.

Seria normal esperar de Israel que, lutando pela preservação de sua integridade e soberania, em sério perigo, vencesse a guerra e tomasse a iniciativa de retornar à situação anterior, de risco?

O problema é que a situação mudou um pouco dos anos 70 para os dias de hoje, porque a aura de legitimidade da defesa israelense foi-se dissipando a partir do instante em que crescia a suspeita de instigação da guerra também por parte de Israel. Se a vitória israelense na Guerra dos 6 Dias foi justa, como de fato foi, é impossível não concordar também que, lá onde o espaço e água são escassos, a vitória também liberou, de uma hora para outra, ‘toda aquela terra’. Depois disso, também é impossível não ver que a praga do fundamentalismo vicejou no solo da democracia israelense, e é possível que alguns de seus governantes não busquem a paz e exponham seus próprios cidadãos a risco, como estratégia de conquista territorial do espaço mítico de Israel.

VI

É aqui que a compreensão dos conflitos pós-modernos se torna nebulosa, porque ela exige que se compreenda qual é a força ideal que move o caldeirão de ódio dos subterrâneos sociais, e semeia a guerra. Esse fenômeno, que ganhou espaço no mundo a partir do colapso das grandes ideologias seculares do nacionalismo e do socialismo, é o fundamentalismo, palavra que todo mundo usa e que por isso mesmo parece auto-explicável, quando pode envolver dificuldades.

Entre nós, o teólogo Leonardo Boff talvez terá sido o primeiro a tentar uma compreensão do que seja o fenômeno, em conferência pronunciada logo após o atentado terrorista ao World Trade Center, em setembro de 2001, mais tarde publicada. Ao encerrar sua conferência, Leonardo Boff faz uma invocação interessante, que subverte a tradição, quando afirma que

‘não faz sentido o lema clássico: Se queres a paz, prepara a guerra. Mas faz todo o sentido proclamarmos e vivermos: Se queres a paz, prepara a paz. (Leonardo Boff, Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. P.53).

Na percepção do fundamentalismo, porém, sua abordagem é mais retórica do que compreensiva. Boff permanece ligado ao paradigma do ‘fator econômico’ em última instância, ao dizer que a culpa pelo fundamentalismo é a palavra mágica, auto-explicativa, da ‘globalização econômica capitalista’. Sobrevoa pela história ao recusar-se a ver que todos os remédios radicais possíveis de abolição do mercado são letais à vida e à liberdade, e não devem ser repetidos. Há um ‘hiato’ entre a compreensão dos males do mercado quantificador e as novas soluções, que não serão as de abolição artificial do mercado, e é nesse ‘hiato’ que se compreende todo o problema do pensamento político ‘pós-moderno’, ausente na conferência de Boff. Daí não admira que retorne à ‘panacéia’ da educação e da utopia abstrata de um estado de confraternização mundial (‘justiça social mundial’, p. 88) que adviria da ‘consciência’ de que o perigo de aniquilação total da vida é concreto a partir do aumento de tecnologia. É uma utopia racionalista que não explica como vai convencer um fundamentalista, que, como o próprio Boff reconhece, não é muito sensível à razão.

O fundamentalismo em si, Boff conceitua de modo excessivamente generalista, como uma forma de pensamento dogmático ou unilateral, e assim mistura coisas diferentes, terminando por cair na armadilha que ele mesmo inicialmente reconhece: não se pode dizer que fundamentalismo é tudo o de que não gostamos.

Nem todo dogmatismo é fundamentalista, alguns são simplesmente autoritários. A autoritária Igreja Católica, ao contrário do que afirma Boff, ainda não é fundamentalista. O fundamentalismo é um fenômeno pós-moderno em que a Verdade está acessível a todos individualmente graças à imediatez da sociedade de massas. O conservadorismo da Igreja Católica, formulado pelo Cardeal Ratzinger, pode ser autoritário, mas não é fundamentalista. Seria, talvez, quando combinasse sua ortodoxia à pregação de massas de Padre Marcelo. De outro lado, se algumas correntes da Teologia da Libertação adotassem a cultura do ódio que hoje se infiltra no pensamento da esquerda radical, em substituição à desilusão com o crepúsculo de seus ídolos, então teríamos, também, um fundamentalismo católico, que ainda não existe. Mas aqui é discutível também se a Teologia da Libertação já não se parece mais com o protestantismo primitivo do que com o catolicismo. De qualquer modo, aproveitando as idéias de Leonardo Boff, que traz elementos importantes para a compreensão do fundamentalismo, podemos avançar um pouco no mesmo tema, definindo que o fundamentalismo não é só dogmatismo e também não é uma linguagem religiosa. É uma linguagem política demagógica que remexe esse caldeirão de ódio do subterrâneo social, cuja ética é essencialmente utilitária (porque o novo bárbaro não sente remorso em romper com interdições, como não sente culpa por assassinar inocentes): cada ser humano para o fundamentalista não só é ‘simples meio’ e jamais um fim em si mesmo, como é possivelmente um alvo e um degrau na escada de sua salvação pessoal ou coletiva. O fundamentalismo é linguagem política, no diapasão da democracia de massas, que se legitima sobre ‘citações’ de tradições religiosas. Agnes Heller, embora não cuide diretamente do assunto, em sua Teoria da Modernidade anota, em rodapé, que

‘A tradição não pode ser algo que simplesmente é retirado de uma gaveta para uso imediato: O Islã fundamentalista está mais próximo do Bolchevismo e do Fascismo (Mussolinismo) do que da religião’ (Agnes Heller, A Theory of Modernity, New York: Blackwell, 1999. 313pp. Aqui Pp. 249-250).

Ao contrário do que sustenta Boff, o fundamentalismo é um fenômeno de superfície social que remexe o subterrâneo bárbaro, e só pode ser contido pelo cultivo de mais democracia na superfície política, e não necessariamente pela ‘revolução’ na esfera da ‘infra-estrutura’ econômica. É preciso estabelecer mais e mais mediações, para que aqueles que se legitimam pela Verdade absoluta discutam com outros se não se enganaram na ‘leitura’ da vontade divina, e se essa vontade divina pode comandar o cultivo do ódio. Na fragilidade da democracia diante do fascínio fundamentalista, a situação de Israel não é muito diferente da situação de outros Estados na atualidade. O fundamentalismo é o problema real que já toma corpo até mesmo em nossa cultura brasileira da cordialidade.

VII

A repulsa absoluta ao meio absolutamente imoral do assassinato de inocentes por homens e mulheres-bomba não altera a justiça da resistência de outros palestinos que não estejam associados a grupos terroristas que assumem os atentados e com eles se autoglorificam. Nenhum povo tolera constantes agressões. Haim Hanegbi, jornalista nascido em Jerusalém, de pai sefardi e mãe asquenaze, cuja família viveu em paz por muitas gerações com os palestinos no Hebron, entrevistado por Flint e Sorj, um pouco antes de 2000, afirmava que:

‘Atualmente , em Hebron, lunáticos, vândalos e os ideólogos do Grande Israel dominam a parte ocupada da cidade e infernizam a vida dos habitantes palestinos (…) Moshe Dayan há mais de vinte anos expressou remorsos em relação a essa situação: Eu não cumpri meu dever como ministro da Defesa´, declarou, ´quando falhei em impedir a colonização em Hebron. Entendi as implicações dessa medida e sabia que se tratava de um desastre, e acho que deveria ter ameaçado renunciar’. Isso foi publicado, mas apenas em, abril de 1997, no jornal Yediot Aharonot.’ (p. 109). Sobre os colonos judeus nos territórios ocupados afirma: ‘Por mais de trinta anos, protegidos pelo governo e pelos militares, eles têm tratado os palestinos de Hebron com completa selvageria, e os israelenses têm se calado. Eles insultam, humilham, roubam e matam, e ninguém os impede. Eles falam sobre seus direitos à cidade, supostamente em nome da antiga comunidade judaica de Hebron, mas, na realidade, eles não têm nenhum direito em Hebron, não têm direitos humanos ou morais, não têm ao menos vestígios de direitos civis. Seu único direito em Hebron é pela força da ocupação violenta’ (Em Guila Flint e Bila Sorj. Israel – Terra em Transe: Democracia ou Teocracia? Trad. Yara Nagelschmidt. Fotos de Efrat Tordjman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 351pp. Aqui p. 109).

Hebron serve como exemplo do que representa a ocupação noutros locais, afirmou.

Por outro lado, reconhecer que Israel tem direito a sua integridade como Estado e ao exercício do dever de resguardo da integridade de seus cidadãos é reconhecer direito que não é sagrado, é cívico. Todos os Estados possuem igual direito. O conflito árabe-israelense não pode ser simplificado como pretende a dogmática associação da esquerda extremista no Brasil: não se pode dizer, como está no ar no pensamento esquerdista, que tudo se resume a uma ‘luta de classes internacional’ em que os ricos judeus querem a eliminação dos pobres palestinos, porque não é verdade. Uma inverdade como essa é mais imoral quando se sabe que ela pode ser a mão que põe a colher a remexer o caldeirão de instintos de morte do subterrâneo, onde vive a patologia social do anti-semitismo.

VIII

Muitas vidas já se perderam em Israel e na Palestina. Para fechar a cadeia de causalidade do terrorismo (fechar a roda da vingança) seria preciso estabelecer o ano zero em que se começaria a preparar a paz, sem perguntar quantos morreram de cada lado, ou quem começou. Tentar igualar aqui é seguir movendo a roda da vingança. A vingança é imediata (por isso parece eficiente), mas também chega o tempo em que ela esgota uma sociedade, porque ela consome mais e mais vidas e não termina nunca. As partes envolvidas teriam de abrir mão de julgar o que ocorreu quando não havia jus in bello, admitindo que ambas as partes tinham jus ad bellum: a população palestina tem direito à sua dignidade, ao passo que a população de Israel tem direito de não seguir sendo vítima de assassinatos organizados por grupos terroristas. Não estaria na hora de conformarem-se todos em honrar seus mortos com a justiça prospectiva, para que os filhos e filhos dos filhos não sigam se matando?

O estabelecimento do Estado palestino pode depender da exigência a quem não é soberano de exercer controle policial sobre seus cidadãos? A partir da instauração desse Estado, pelo menos não se torna justa uma declaração de guerra contra a Palestina, em que a morte de civis e inocentes não combatentes seja crime de guerra, e não ato de heroísmo nacional?

Quem quer a paz prepara a paz.

Leonardo Boff foi feliz na inversão do dito da tradição.

Mas também faz sentido afirmar que quem quer a paz prepara condições em que a guerra seja mais civilizada, em que existam e vigorem convenções de guerra, em que o terrorismo seja proscrito e não glorificado.

Não é impossível que a resistência democrática restabeleça em Israel um governo voltado para a paz. Como Israel é um Estado mais democrático do que os Estados árabes, a esperança é necessariamente depositada sobre seus ombros. A esperança é de que se volte a conversar a respeito da possível separação da Palestina a partir de acordos de paz que sejam justos para ambas as partes e factíveis, acordos que serão cumpridos, e que não sejam o adiamento dos problemas como parece que foram os acordos de paz até hoje. O problema é que a defesa de Israel não vem sendo, sob a batuta de fundamentalistas, completamente sincera. Se fosse apenas defensivo, até mesmo o muro de separação, que nos reporta a uma imaginário pré-moderno, pareceria justificado. Mas junto ao muro vem a constante agressão moral e discriminação, e agora são os ônibus que podem barrar suspeitos, e suspeitos são todos os palestinos. Eliminar apenas os focos de terrorismo seria uma defesa justa, mas quem consegue, sem matança geral, eliminar os focos de terrorismo? E quem consegue acreditar que a solução é duradoura, numa sociedade em que a cultura do ódio se enraizou a ponto de ser glorificado o assassinato de inocentes? Por acaso, os filhos dos líderes logo não reassumem os postos de batalha, recomeçando tudo de novo? E, contudo, podemos admitir que não exista solução, como na análise cética, e contudo plausível, de Samuel Feldberg, de que não haverá Estado palestino e nem segurança em Israel, e que:

‘Aos israelenses resta o consolo de que, tendo uma população muito maior que a liderança islâmica, esta tende a ser eliminada antes de atingir seu objetivo de esgotar a resistência do Estado judeu’ (Samuel Feldberg, Folha online/mundo/13/09/2003 ‘Análise: Nem Estado Palestino nem segurança em Israel’) ?

O próximo passo não seria sucumbir ao cínico dito de Frederico o Grande, de que ‘Deus fica do lado que tem o melhor batalhão’?

IX

O subterrâneo bárbaro das civilizações modernas não emerge sempre da mesma forma, mas emerge sempre a partir da força das idéias. As destruições do século 20, Auschwitz e Gulag, segundo a compreensão de Agnes Heller, emergiram da terrível união das idéias de ‘kairos cum apocalipse’, originárias da tradição grega e judeo-cristã:

‘Foi a união de Apocalipse e Kairos numa poderosa imagem mitológica que preparou a transgressão moral/ontológico/metafísica que conhecemos pelos nomes de Auschwitz e Gulag. Os homens atuaram como Deus aqui, eles prepararam o Apocalipse. Eles procuravam pelo exato momento e pelo exato lugar para ‘fazerem’ acontecer o Apocalipse, como se ele fosse apenas um evento, uma ação histórica entre muitas. Nesse sentido, as transgressões morais/ontológico/metafísicas do século 20 foram realizações das idéias que haviam sido refogadas nas aparentemente inocentes cozinhas de bruxos do século 19, durante o período do alto modernismo’ (A Theory of Modernity, p. 9)

O ódio volta a remexer o caldeirão.

Cada sociedade e cada Estado possuem a sua própria capacidade de resistência e seus próprios calcanhares de Aquiles de impotência diante da colher fundamentalista que remexe esse subterrâneo como ‘força vital’ para a morte de todos. Israel difere do Brasil porque lá o secularismo dos pais fundadores oprimiu demais o sentimento religioso, e ao mesmo tempo deixou flancos abertos para o retorno-violento-do-reprimido. Ury Avnery, ao falar sobre a fundação de Israel, é sincero ao afirmar que: ‘não tínhamos nenhum respeito pelos religiosos’: ‘Eram pessoas idosas, que falavam ídiche e iam rezar na sinagoga. Deixe que eles rezem, pensávamos, eles vão morrer e este será o fim da religião’ (Guila Flint e Bila Sorj. op. cit. p. 30). Quando tudo vai bem não se pensa no pior, e os que advertem para as dificuldades semeadas no presente são normalmente tratados como pessimistas não identificados com a causa e por vezes até mesmo traidores. Assim como era um erro reprimir manifestações de religiosidade, esperando pela promessa marxista de que a emancipação total dos homens e mulheres também traria o fim das religiões, era um erro considerar desnecessária uma constituição moderna e secular, cujos princípios fossem rígidos e que por isso pudessem exercer algum controle sobre maiorias parlamentares ocasionais (o que conhecemos como controle de constitucionalidade). Seriam necessárias ‘cláusulas pétreas’ na fundação (as mesmas que temos em nossa Constituição, e que todavia são hoje abusadas). Como observam Flint e Sorj:

‘Israel é um país sem uma Constituição escrita. O primeiro Parlamento eleito em 1949 deveria funcionar como uma assembléia constituinte, mas os partidos religiosos se opuseram à adoção de uma Constituição, argumentando que o povo judeu tem apenas uma lei suprema, a Torá. A reivindicação de uma Constituição democrática ou ainda de uma lei fundamental de proteção aos Direitos Humanos tem sido objeto de debates constantes na política israelense, particularmente nos últimos anos, quando o público laico passou a se sentir ameaçado diante da ampliação do poder dos ultra-ortodoxos’ (Flint & Sorj, op. cit. p. 13).

Mas lá, como aqui, o ódio segue sendo um sentimento socialmente cultivado, por meios racionais e pela força das palavras. Há pessoas que dominam a arte de fazer emergir em grupos sociais sentimentos bárbaros associados aos subterrâneos individuais e sociais. Na política, chamam-se demagogos os que dominam intuitivamente a retórica que faz efeito sobre os sentimentos contagiosos de massas, como as fobias em geral, a aversão e o orgulho nacional. Estados modernos não são imunes à demagogia. São talvez mais vulneráveis e suscetíveis à retórica demagógica à medida que mais imediatos se tornam os meios de comunicação de massa. Quem fala à massa fala na realidade a Um só, que por seu turno jamais responde, e às vezes assustadoramente obedece. O discurso do demagogo, como o dos mass-midia, é o monólogo. Esse calcanhar de Aquiles da resistência democrática já se universalizou.

Por isso precisamos desses espaços públicos de diálogo, como o que temos nessa discussão proporcionada pelo artigo ‘Desaviso’ de Marilene Felinto.

A luta em nosso Estado por segurança interna contra o poder criminal será tanto mais frutífera quanto mais democrático for o Estado. A luta de Israel pela segurança será tanto mais frutífera quanto maior for a capacidade de resistência democrática ao poder fundamentalista. Enquanto observadores interessados na paz no Oriente Médio, assistimos ao conflito com tristeza, perplexidade, mas ainda com a esperança de vitória, em Israel, de forças de resistência democrática, e de conciliação, que seja também uma vitória da justa causa palestina, ao mesmo tempo em que esperamos a derrota, pela autoridade palestina ou seja por quem for, de exércitos que não renunciarem unilateralmente ao meio absolutamente imoral do assassinato de inocentes.

A única semelhança real entre o conflito árabe-israelense e a Questão Social no Brasil é que aqui, tanto quanto no Oriente Médio, a esperança permanece mais viva quanto mais nos organizamos para a resistência democrática à tentação fundamentalista. No nosso caso, essa resistência exige que comecem a ser ouvidas as vítimas, e que as autoridades comecem a aprender a enxergar que a tentação das soluções de decreto e de panacéia só insuflam mais ódio, ao pretenderem fazer-nos acreditar que nossas vítimas são ‘necessárias’ se e enquanto não chegar a hora de ‘repartir o bolo’ e vivermos felizes para sempre.

Não é coincidência que esta seja a fórmula de final feliz de todo conto de fadas.

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(*) Procurador da República, mestre em Direito pela UFSC, e mestre em Filosofia pela New School for Social Research, Nova York