A maior parte da grande imprensa pagou tributo à classe média, mais uma vez, ao tratar como principal assunto econômico, na sexta-feira (9/9), a trapalhada federal sobre o Imposto de Renda (IR). Os editores dos maiores jornais conhecem as angústias de sua clientela. A história foi noticiada em manchete pelo Jornal do Brasil e pela Gazeta Mercantil. Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e Globo deram chamada na primeira página e abertura da seção de Economia.
Valor e Jornal da Tarde foram exceções. Este mostrou na capa uma foto discreta de Gisele Bündchen nua e tatuada e um titulão: ‘Vasectomia de graça na rede pública de São Paulo’. Também é um tema econômico, pelo menos para famílias de baixa renda e alta fertilidade. Valor destacou uma grande história de negócios – a conquista, pelo Banco Itaú, de duas contas da prefeitura paulistana com movimentação total de cerca de 15 bilhões de reais por ano.
A confusão tributária valia o destaque, em primeiro lugar, por atingir o bolso da classe média. O governo havia anunciado na proposta orçamentária, mandada ao Congresso no fim de agosto, a redução da alíquota máxima do IR de 27,5% para 25%. No dia 8, os ministros do Planejamento e da Fazenda negaram a mudança. Uma correção seria enviada ao Legislativo, segundo informaram, e cerca de 2,9 bilhões de reais seriam acrescentados à previsão de receita para 2006. Havia, portanto, mais que uma boa história de interesse dos contribuintes.
Aspectos técnicos
A partir daí, abriam-se à cobertura dois caminhos evidentes e complementares. Seria preciso ver a reação dos interessados no corte do imposto. Repórteres teriam de ouvir contribuintes, sindicatos de trabalhadores e entidades empresariais, além, naturalmente, de advogados da área. Seria uma espécie de ritual, com desenvolvimento previsível. O pessoal da Força Sindical deveria espernear. Advogados falariam contra a perpetuação dos tributos provisórios. Empresários lamentariam a perda do poder de compra dos consumidores.
A segunda linha de cobertura teria resultados provavelmente mais interessantes. Seria necessário desvendar a história interna da grande trapalhada. Teria falhado a comunicação entre funcionários? Como podiam ter ocorrido, na área econômica do governo, duas interpretações de normas tributárias?
A primeira interpretação, usada para a mensagem orçamentária, privilegiou a Lei nº 10.828, de dezembro de 2003. Segundo essa lei, a alíquota máxima do IR cairia para 25% em janeiro de 2006. A segunda interpretação valorizou a Lei nº 11.119, deste ano, originária da Medida Provisória nº 232. Por esse entendimento, a alíquota de 27,5% passou a ser permanente e só uma nova lei poderá derrubá-la.
Não bastaria reconstituir a história da trapalhada. Isso daria uma narrativa divertida, mas faltaria expor o problema jurídico. A lei mais nova teria mesmo revogado a de 2003? Seria indispensável a revogação explícita? Advogados deram opiniões divergentes sobre o assunto.
De modo geral, os jornais percorreram as duas grandes linhas de cobertura, mas com ênfases diferentes. A Folha de S.Paulo explorou de modo mais completo e mais organizado os aspectos técnicos do problema e ainda mostrou, numa boa retranca, a dúvida que restava sobre o assunto. Conseguiu fazê-lo sem tornar a história menos atraente para o leitor mais interessado no próprio bolso.
Democracia madura
Uma história completa não se esgotaria na cobertura da grande trapalhada e das controvérsias legais sobre o assunto. O episódio do IR na proposta orçamentária de 2006 não é um caso singular. É mais um sintoma de um problema detectado muitas vezes. Esse problema não é apenas técnico.
O governo brasileiro tem tropeçado com freqüência em questões legais. Houve dúvidas, na equipe econômica, sobre a norma em vigor: qual das duas leis seria preciso seguir? Advogados citados pela imprensa divergiram sobre o assunto. Estaria ou não revogada a lei mais velha? É ridículo, em casos como esse, ter de recorrer a princípios de interpretação, como se estivesse em jogo um assunto de grande complexidade. Bastaria um pouco mais de cuidado na redação das normas.
O Tesouro teve de suportar, nos últimos dez anos, custos enormes de esqueletos acumulados em várias administrações. Durante o acordo com o Fundo Monetário Internacional, extinto em março, combinou-se até um cronograma de explicitação da ossada financeira. Esses problemas se amontoaram ou porque os governos desprezaram direitos ou porque não cuidaram da base jurídica de seus planos. Ou não souberam ou não julgaram necessário fazê-lo.
Esse descuido é a negação do Estado de Direito. Governos podem dispensar as sutilezas legais quando é mínimo o risco de contestação, ou quando podem renegar os compromissos de seus antecessores. No Brasil, as duas condições são historicamente confirmáveis. Os precatórios acumulados também são conseqüência disso.
As instituições têm mudado. Mas a transição para uma democracia madura só estará completa quando as autoridades brasileiras tiverem muito mais medo das sutilezas legais.
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Jornalista