Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Grandes golpes, pequenos achaques

Com direito a manchete e foto de primeira página no Globo, que a mostra se acomodando na traseira da viatura da Polícia Federal, a auditora fiscal e presidente do Sindicato dos Servidores da Linha de Arrecadação do INSS no Rio de Janeiro, Maria Auxiliadora – que não se perca pelo nome – de Vasconcelos foi presa sexta-feira sob a acusação de ter participado, com outros 13 funcionários já presos, de um esquema de fraudes que sangrou a Previdência em R$ 3 bilhões.


Empresas, supostamente indicadas por gente da Firjan (a Federação das Indústrias do Rio), pagavam gordos calabocas à gangue da Auxiliadora para não terem de pagar muito mais ao INSS. Em apenas nove empresas, a Previdência foi garfada em R$ 7,9 milhões em contribuições não recolhidas.


Quantas vezes você já leu revelações de ‘golpes milionários’ no INSS? Pode apostar sem susto que ainda lerá outras – menos mal porque indica que alguém está combatendo o crime organizado no sistema.


O que você dificilmente lerá serão reportagens sobre os pequenos achaques que ali parece que se cometem com acabrunhante frequência – e cujas vítimas se distinguem por duas características dos peixes graúdos auxiliados por Dona Maria e os seus 13 vendedores de indulgências previdenciárias.


Primeiro, por serem pobres. Segundo, por serem credoras e não devedoras do INSS.


No espaço de 10 dias eu soube de duas histórias verossímeis que obviamente não tenho como provar, mas que me foram contadas por pessoas que não teriam interesse e talvez nem o talento de inventar.


Um caso é o da empregada doméstica que se aposentou, começou a receber o benefício mensal, mas não o valor acumulado desde a data da entrada do pedido ao primeiro recebimento. A aposentada foi a uma agência do INSS em São Paulo. Perguntou quando depositariam o atrasado na sua conta. Uma funcionária lhe respondeu que não tinha a menor idéia. Mas – acrescentou com um sorriso – o dinheiro chegaria logo se ela pagasse R$ 5 mil. A aposentada falou um desaforo e se retirou.


Que mais ela poderia fazer? Dar queixa na polícia? Queixar-se ao bispo? E na implausível hipótese de que a funcionária fosse chamada às falas ela sempre poderia dizer que estava apenas brincando, tanto que disse o que disse sorrindo.


A vítima do segundo caso, também de São Paulo, é uma atendente de um consultório odontológico. Ela teve câncer de mama e precisou tirar um seio. A cirurgia tornou penosos alguns de seus movimentos. Dia desses, depois de uma consulta de controle, a médica do posto lhe deu alta. Espantada, a paciente falou de suas limitações. Ouviu da doutora que isso era problema dela e da dentista para quem trabalha.


Desde então vem tentando marcar uma perícia para avaliar a sua condição, na esperança de reverter a alta. Já mandaram que ela chegasse ao posto às 3 horas da madrugada. Mas nada de fazerem o exame. Comentando a história com o seu contador, a dentista patroa da moça ficou sabendo que ele conhecia um doutor do instituto que, por uma módica contrapartida em moeda corrente, não apenas realizaria perícia, mas dela faria constar qualquer coisa que a segurada quisesse.


Devia existir um meio de histórias como essas saírem sistematicamente em letra de forma, preservado o anonimato das vítimas, mas com a maior riqueza possível de detalhes, para deixar clara a improbabilidade de terem sido inventadas. A TV não costuma levar ao ar denúncias sem que se veja o rosto do denunciante e nem seja possível reconhecer-lhe a voz? Será que essas pequenas misérias – que nada têm de pequenas para os que delas padecem – não são notícia?


Ora, se dirá, mas o que são essas histórias perto da montanha de reais subtraídos do INSS? Gotas de água no oceano, sem dúvida. Mas, por serem quem são as vítimas e pela quase certeza de que os que estão atrás dos seus parcos reais não serão identificados, nem expostos, muito menos punidos, os episódios sensibilizam mais do que as grandes roubalheiras.