Em dezembro de 2007, um cientista da computação alemão trocou de emprego e de nome movido pelo ideal de tornar o ‘mundo melhor’. Daniel Domscheit-Berg deixou o cargo numa empresa americana de segurança da informação para assumir o sobrenome Schmitt e tornar-se porta-voz do WikiLeaks, o site de vazamento de dados sigilosos que revelou recentemente mais de 250 mil telegramas da diplomacia americana. Entre suas funções estavam negociar parcerias com a mídia alemã e aumentar a credibilidade da organização na Europa. Sua devoção ao projeto e ao seu fundador, o australiano Julian Assange, era tanta que Domscheit-Berg até tatuou o logo do WikiLeaks nas costas.
Tanta devoção, contudo, não impediu que fosse expulso por Assange em setembro do ano passado, acusado de traição. Domscheit-Berg discordava dos rumos que o WikiLeaks estava tomando – priorizar o vazamento de dados sobre os Estados Unidos, descuidar dos cuidados com a segurança das fontes, afirmar que a acusação de assédio era armação do Pentágono, entre outros – e enfureceu Assange, que teria chegado a ameaçar ‘destruí-lo’. O número 1 do WikiLeaks começou a denegrir Domscheit-Berg em entrevistas, afirmando que ele era um ‘doente mental’, um ex-funcionário enraivecido. Domscheit-Berg decidiu dar o troco em duas frentes: abriu um site de vazamentos rival chamado OpenLeaks e decidiu dar sua versão dos fatos no livro Os bastidores do WikiLeaks (editora Campus/Elsevier), lançado ao mesmo tempo em 15 países, entre eles o Brasil. Nesta entrevista exclusiva a Época, Domscheit-Berg faz várias acusações a Assange e revela se vai apagar a tatuagem que fez em homenagem ao site.
***
‘Um monte de mentiras e meias-verdades’
O senhor diz que seu objetivo ao escrever o livro era trazer a público algumas informações sobre o WikiLeaks. O ressentimento por ter sido expulso da organização ou a necessidade de dar a sua versão não foram motivos mais fortes?
Daniel Domscheit-Berg – É uma tentativa de explicação, mas não de vingança. Durante três anos, Julian [Assange] e eu fomos as pessoas públicas do WikiLeaks que lutaram pela credibilidade da organização. Especialmente aqui na Alemanha e em outros países da Europa foi um trabalho muito duro, que levou tempo. Em setembro de 2010, depois de um mês sentindo que o WikiLeaks havia se tornado irresponsável e que eu não poderia mais apoiá-lo, senti que tinha que dizer ao público que eu estava saindo e por quê. Então, dei uma entrevista muito diplomática para a revista alemã Der Spiegel. Eu me sentia mal de fazer críticas publicamente porque ainda era fiel ao projeto. O que aconteceu depois que dei essa entrevista foi que Julian me desacreditou em todas as oportunidades que teve. Ele disse às pessoas que era o chefe e que eu era apenas um ex-funcionário que estava com raiva por ter sido demitido. Li nos jornais alemães que ele disse que não excluía a possibilidade de eu estar sendo pago pelo FBI para criticá-lo. Estava espalhando um monte de mentiras e meias-verdades que me desacreditavam. Então pensei se não deveria ser mais incisivo do que fui naquela entrevista ao contar o que realmente aconteceu e como aconteceu. Comecei a sentir que tinha a obrigação de contar a história para que as pessoas pelo menos ouvissem o meu lado. Muitas pessoas me disseram que havia a necessidade de esclarecer o que havia acontecido. No domingo (13/2), Julian disse à mídia britânica que eu era um doente mental e que ninguém deveria acreditar no que eu estava dizendo. Foi exatamente esse tipo de coisa que me levou a escrever o livro.
‘Quem o criticasse ou desafiasse era excluído’
Essa foi a reação de Assange ao seu livro?
D.D.-B. – Essa é a resposta dele a qualquer crítica. No WikiLeaks, ele disse às pessoas com quem trabalhávamos que eu tinha transtorno de personalidade, que era paranoico e esquizofrênico. Nem minha família nem meus amigos reclamam de mim ou acham que tenho esse tipo de problema. Não sei de onde ele tirou essa conclusão. Minha teoria é que ele tenta sempre desacreditar quem o critica.
O senhor descreve Assange como gênio e paranoico, como adorável e insuportável. Depois de tudo isso, ainda consegue ver o lado positivo dele?
D.D.-B. – Ele é brilhante, muito inteligente. É muito bom em analisar sistemas sociais e de computadores. Pode fazer tudo o que quiser. A única coisa que mudou é que o acho incapaz de lidar com pessoas.
O senhor diz no livro que Assange se tornou tão corrupto quanto os regimes que ele critica. Por quê?
D.D.-B. – Basicamente, Julian se tornou o que ele odeia. Ou o que ele diz que odeia. Já não tenho mais certeza de que tornar mais transparentes governos corruptos tenha sido sua principal motivação um dia. Essa é a nossa experiência: o segredo corrompe. Em sigilo, você é avaliado de maneira independente, não recebe críticas. Está fechado em si mesmo, sem controle externo. Isso foi o que aconteceu ao WikiLeaks. Era apenas Julian que sabia de tudo, que sabia o que era certo e quem quer que duvidasse, criticasse ou desafiasse sua liderança era excluído.
‘As pessoas não sabem em quem confiar’
A transparência de informações sigilosas pode ter efeitos positivos e negativos. Alguns dizem que o WikiLeaks ajudou a fortalecer a ditadura de Mugabe no Zimbábue. Outros, que ajudou a derrubar a de Ben Ali na Tunísia. Diante dos acontecimentos, o senhor acredita que o WikiLeaks e sua política de transparência radical só têm benefícios ou podem trazer prejuízos também?
D.D.-B. – É possível que, ao publicar algo, você cause dano a alguém. Mas nunca sabe se, ao deixar de publicar, estará causando ainda mais prejuízos. É uma questão muito hipotética que não pode ser respondida de maneira genérica. É possível apenas dizer que a verdade é a verdade e o que acontece, acontece. E quanto mais entendermos o que acontece e seus resultados, melhor é. O fato de publicar algo dar mais força a algum regime não torna a informação inverídica. Talvez tenhamos que repensar a maneira como lidamos com aquele regime. Em geral, a transparência é tremendamente importante para o futuro.
Mas não é função do jornalismo informar as pessoas da verdade?
D.D.-B. – WikiLeaks e jornalismo são duas coisas completamente diferentes. Conheço algumas pessoas na área de direitos humanos na América do Sul e elas me dizem que é preciso escolher bem a quem repassar a informação para não se queimar. Há quem não se interesse, quem seja corrupto. O mesmo acontece na Alemanha, talvez em outra escala. Se você quer contar uma história, com quem você fala? Como acha aquele jornalista que se interessa por você como fonte de informação? Na maioria das vezes, a fonte tem uma longa relação com o jornalista, tem um cargo dentro da administração e passa informações de vez em quando. Mas há uma imensa quantidade de pessoas que têm informações e gostariam de passá-las adiante, mas não sabem com quem falar e têm medo de falar com a pessoa errada e se prejudicarem. É por isso que projetos como o WikiLeaks e o OpenLeaks, em que estou trabalhando, têm tanto apelo. As pessoas querem se manter anônimas e o processo garante isso a elas. É por isso que as pessoas usam esse tipo de canal: porque não sabem em quem confiar. Um segundo motivo é que se você, como fonte, der informações para um jornalista, ele não vai passá-las adiante. Vai escrever uma reportagem sobre ela, pode até ficar muito famoso por isso, mas não vai dar o documento que você deu a ele a outros jornalistas. Mas você tem interesse, como fonte, de que o maior número possível de pessoas fale sobre o assunto. É por isso que você prefere dar a uma organização que vá espalhá-lo.
‘Assange está apenas ganhando dinheiro’
Um dos pontos fortes do WikiLeaks seria justamente proteger a fonte da informação. Mas Bradley Manning, o militar americano acusado de vazar os dados sobre a guerra do Iraque e os 250 mil telegramas diplomáticos, foi preso. No livro, o senhor diz que Assange pouco fez para ajudar na defesa dele. Por quê?
D.D.-B. – Pessoalmente, acredito até hoje que ele não se importa. Uma das poucas que realmente levei a sério em tudo aquilo foram as muitas vezes em que ele me mandou calar a boca dizendo que eu não tinha direito de saber sobre os advogados de Manning. Ele não mandou nenhum advogado, na verdade. A única conclusão a que consegui chegar é que ou ele não ligava ou não conseguiu ligar com a tarefa. Estava muito ocupado e era muito difícil para que conseguisse resolver. De qualquer maneira, acho que ele não se importava o suficiente. Quando as acusações de assédio sexual na Suécia vieram à tona, ele nos perguntou o que havíamos feito para conseguir para ele advogados e acomodação. Queria que fizéssemos mais para protegê-lo de acusações de cunho pessoal do que ele fez por qualquer um de nós, do que fez por Manning.
O senhor acusa o WikiLeaks de não ser transparente com o que faz com o dinheiro que recebe de doações.
D.D.-B. – Sabe o que descobri depois de escrever o livro? Algumas outras pessoas com quem trabalhei leram o livro e me perguntaram por que a informação não constava do livro, eu disse que não sabia do que estavam falando e elas me contaram. Quando nós recebemos o vídeo sobre o assassinato de civis na guerra do Iraque, Assange tentou vendê-lo por US$ 1 milhão. Outras pessoas dentro do WikiLeaks disseram-lhe que não deveria fazer aquilo, que era idiotice. Que deveria editar o vídeo para a publicação porque era importante, sem se preocupar com quem ia pagar mais por ele. Isso é muito ruim. Ele está tentando lucrar com o WikiLeaks. Tenho certeza de que, agora, ele faz pelo dinheiro. O WikiLeaks virou mais recebimento de doações do que qualquer outra coisa. E não consigo saber o que estão fazendo com o dinheiro. Algumas semanas atrás havia um artigo em um jornal suíço dizendo que o WikiLeaks perdia 460 mil euros por semana. As pessoas pensaram que a organização estava perdendo todo esse dinheiro porque estava constantemente sendo atacada e tinha que pagar por advogados. Mas 460 mil euros era a estimativa de quanto receberiam em doações se os serviços do PayPal e do Mastercard estivessem funcionando normalmente, e não o tanto que a organização gastava toda semana. Isso é totalmente errado, é fazer dinheiro. Me deixa muito frustrado. O mundo pensa que Assange é um cavaleiro que veste a armadura brilhante da ética, mas ele está apenas ganhando dinheiro.
‘Aprendi coisas para o resto da minha vida’
O senhor diz que Assange sempre se preocupou em ser a única figura pública do WikiLeaks. Isso trouxe mais benefícios ou prejuízos à organização?
D.D.-B. – Ele danificou a imagem do WikiLeaks. Se o WikiLeaks tivesse dez caras não seria tão fácil atacá-lo. A devoção dele em ser o único fez, em primeiro lugar, muita gente deixar a organização. Ele é um megalomaníaco que age como na revolução bolchevique da Rússia, em que um único indivíduo detinha os direitos da revolução, embora todo mundo a quisesse. Isso não é OK. É prejudicial. Quando os casos da Suécia vieram à tona, Julian abusou de seu poder no projeto para proteger-se de acusações pessoais.
No livro, o senhor afirma não acreditar que as acusações das duas mulheres suecas possam ser parte de uma operação do Pentágono, como Assange alega.
D.D.-B. – Não estive com ele nem com elas, mas o que vejo hoje é que duas mulheres alegam que Julian não usou camisinha. E que essas duas mulheres, depois de fazer sexo desprotegido com ele, pediram a Julian para fazer um teste de HIV e ele se recusou. Por que ele não tem a dignidade de respeitar essas mulheres e fazer esse teste? No cerne, tem a ver com a ignorância de Julian. Ele poderia ir ao médico e dizer a elas para não se preocuparem. Se ele tivesse tido essa atitude, nada teria acontecido.
O senhor se arrepende de ter trabalhado tanto tempo para o WikiLeaks e tentado ser amigo de Assange por tanto tempo?
D.D.-B. – Nem um pouco. Foi uma experiência incalculável. Aprendi coisas para o resto da minha vida, coisas que não saberia de outro modo e me ajudam a evitar erros no futuro.
‘É possível saber se alguém está lendo a página’
O senhor tatuou parte do logo em forma de ampulheta do WikiLeaks nas costas. Pensa em apagar o desenho?
D.D.-B. – Não, jamais. Quando decidi fazer a tatuagem, o WikiLeaks já representava uma parte tão grande da minha vida que eu achei apropriado lembrá-la para sempre. Não sou uma pessoa que quer esquecer parte da minha história.
Assange quer fazer crer que suas críticas ao WikiLeaks são puro ressentimento, mas o senhor conta no livro que há razões técnicas para a discordância, como a falta de segurança para o envio para as fontes de informação.
D.D.-B. – Hoje, não é possível enviar nada [no site há um aviso de que o sistema está sendo reformulado], mas há outras questões, como o fato de que é possível saber se alguém está lendo a página sobre que tipo de material é possível vazar para o site. Isso não poderia acontecer porque quem lê isso é uma fonte em potencial.
‘Trair a cultura do segredo pode ser positivo’
O senhor lançou em janeiro um site para vazamento de informações chamado OpenLeaks. Qual a diferença dele para o WikiLeaks?
D.D.-B. – A diferença é a segurança do sistema. Não é um projeto popular para solucionar todos os problemas do mundo. Uma das tendências que observamos é que todo mundo tenta se tornar o maior, a maior empresa, a maior rede social, o que for. Mas acho que a melhor coisa é ser pequeno. O mundo precisa de pequenas soluções para problemas bem específicos. E você só consegue resolver um problema se não tenta resolver cem ao mesmo tempo. O maior problema é que as fontes têm que se manter anônimas ao enviar documentos. E é isso que faremos: forneceremos a tecnologia para meios de comunicação, ONGs, sindicatos para receber essas informações.
O jornal The New York Times está planejando uma plataforma para receber informações sigilosas sem passar pelo WikiLeaks.
D.D.-B. – Sim, estou em contato com eles e com a rede de TV Al Jazira, que já lançou sua plataforma. Queremos dividir o conhecimento de como fazer isso de maneira apropriada. Somos uma solução pequena que pode se expandir para centenas de outras organizações e ajudar a solucionar muitos outros problemas. O GreenLeaks, na Dinamarca, por exemplo, quer focar em questões ambientais, por exemplo.
O senhor acredita que o WikiLeaks ajudou a criar uma cultura de vazamento de dados sigilosos?
D.D.-B. – Este é o grande legado do WikiLeaks e do Julian: trazer a questão do vazamento para o noticiário da TV. E pessoas que nunca haviam pensado em problemas e questões que são muito importantes para o futuro começaram a pensar que trair a cultura do segredo pode ser positivo.
******
Jornalista