A lei da radiodifusão comunitária completou 13 anos em 19 de fevereiro de 2011, num momento em que as emissoras fortalecem sua organização em torno de entidades estaduais e nacional. A luta pelo acesso a canais radiofônicos tem, no entanto, uma história bem mais longa no Brasil. Começa, nas décadas de 70 e 80, em radiadoras instaladas em postes, árvores e torres de igrejas, e na coragem de alguns aventureiros ousando colocar, na Frequência Modulada (FM), rádios livres, isto é, sem autorização do poder concedente.
Na década de 1990, o movimento ganha novo impulso. O Brasil tem uma nova Constituição garantindo liberdade de expressão aos cidadãos. Também assina o Tratado de San José da Costa Rica sobre os Direitos Humanos, comprometendo-se a conceder autorização para associações comunitárias operarem rádios com até 250 watts de potência. O movimento social se anima, colocando no ar milhares de emissoras, muitas vezes apoiado pelo Judiciário, que concede liminares, cautelares e até sentenças.
Os grandes empresários da comunicação reagem pressionando o governo federal, que cede às ameaças não só legais, mas principalmente políticas. Não faltam policiais federais e agentes da Anatel para reprimir as emissoras. Centenas têm seus materiais, equipamentos, locutores e diretores detidos e são até vítimas de tortura e abuso de autoridade. Mas a resistência não cessa. Cada rádio fechada representa várias outras abertas. Só a repressão, se mostra uma ineficaz arma.
Bancada do movimento social
Então, quando não se pode com o inimigo, ‘alia-se’. Por esse motivo, passa a tramitar, no Congresso Nacional, a lei 9.612 que completou 13 anos no dia 19 de fevereiro de 2011. Articulada pela Frente de Deputados pela Radiodifusão, foi resultado do lobby de associações dos empresários de radiodifusão. O projeto traz proposições tão absurdas que só são compreensíveis quando se sabe que o objetivo é inviabilizar o serviço de radiodifusão comunitária. Ausência de proteção legal, potência de 25 watts, impossibilidade de propaganda, proibição de entrar em rede… as restrições predominam. Mesmo assim, a resistência persiste. Fundada em 1996, a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço) passa a buscar a unidade das emissoras para superar essa situação completamente desfavorável e precária. Sem recursos e objeto do novo coronelismo político (como demonstra a pesquisa de professor Venício Lima da Universidade de Brasília), muitas emissoras sucumbem às perversas intenções de políticos, pequenos empresários e igrejas evangélicas.
Mesmo assim, experiências ricas brotam nesse árido terreno. A promoção da participação popular, o fortalecimento da identidade e a conscientização para saúde, cidadania e meio ambiente são papéis que muitas emissoras tentam exercer, ainda que com todas as intempéries.
A força das rádios comunitárias se ganha mais visibilidade no final da primeira década do século 21, quando o movimento social começa a reivindicar a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). A mobilização e pressão pelo evento, a organização de debates, audiências e conferências livres sobre o tema contaram com a indubitável participação das lideranças da Abraço. O resultado foi, na Confecom, a maior bancada do movimento social formada por delegados das emissoras comunitárias. Vestidos com camisas amarelas, os delegados das rádios conseguiram até interromper com palavras de ordem o tom frio e formal, fora do habitual, do presidente Lula no discurso de abertura do evento. Lula reconheceu a importância do serviço, mas alertou sobre a ação de políticos picaretas nas emissoras.
Serviços fundamentais
Notando a força das rádios comunitárias e sua importância para o evento, representantes da Casa Civil, Secretaria da Comunicação Social e Ministério da Comunicação cederam aos apelos das lideranças da Abraço para assinar um termo comprometendo-se em atender as reivindicações de aumento de potência para as rádios comunitárias; criação da Subsecretaria de Radiodifusão Comunitária; abertura de aviso de habilitação permanente; agilização na tramitação dos processos; criação de representações estaduais do Ministério das Comunicações e revogação da legislação que considera crime a operação de emissoras sem a autorização; aumento do número de canais destinados às emissoras comunitárias, com a alocação de, no mínimo, três canais na faixa de 88 a 108 MHz; e destinação de publicidade institucional e de utilidade pública, considerando a lei e liberação de rede entre rádios comunitárias em casos de calamidade pública.
A promessa governamental parece que ficou, como historicamente acontece, só no papel. Durante o Congresso Nacional da Abraço, realizado nos últimos dias 20 a 22 de dezembro, com mais 400 delegados de rádios de 24 estados brasileiros, o secretário executivo do Ministério das Comunicações desconheceu a validade do acordo. Esse é o mesmo governo que prioriza a expansão da banda larga, ao invés de prosseguir com a regulação da comunicação, vítima do ilegal descaso que perdura três décadas.
No entanto, para quem há mais de duas décadas luta desafiando todas as intempéries possíveis e imagináveis, essa decepção está longe de abater o movimento que vive dois maiores desafios: produção qualificada e sustentabilidade. As rádios comunitárias precisam legitimar-se como emissoras de acesso público. Para isso, precisam prestar serviços fundamentais para o convívio social como a identidade local, o direito social à informação, a educação não formal e a expressão artística regional.
Porta de saída para uma deturpação
Para isso, é necessário romper com o profundo mal-estar, conceito do filósofo colombiano Jesus Martín-Barbero, arraigado na base da cultura latino-americana. Como usar tecnologias de comunicação, originadas das inovações científicas da cultura escrita, sem o acúmulo e hábito da leitura? Essa questão se desdobra, nas rádios comunitárias, das seguintes formas: como promover a educação não formal com acesso precário à escrita? Como produzir uma programação qualificada sem o hábito da leitura? Como planejar roteiros sem o costume da escrita?
Somente investindo numa formação participativa e plural dos comunicadores e gestores comunitários pode-se superar essa situação. Assim, essas emissoras podem exercer o papel de não só dá acesso popular ao rádio, mas também produzir as informações locais e a conscientização para a saúde, para o desenvolvimento sustentável e para a cidadania.
Todavia, não é só de formação que carecem as emissoras. Até mesmo para superar essa dificuldade é necessário pensar na sustentabilidade das emissoras. Sem patrocínio governamental para exercer um serviço de utilidade público, muitas rádios comunitárias são obrigadas a viabilizar-se com o apoio cultural do comércio local, submetendo-se à lógica empresarial. Outras se tornam alvo de igrejas e de grupos políticos eleitorais.
A pífia acusação de que o financiamento público das rádios comunitárias compromete sua autonomia editorial só pode ser pensada numa condição de completa usurpação do Estado pelos interesses particulares, quando o governo deixa de representar o público. E mesmo que essa situação seja frequente, o fortalecimento da comunicação comunitária pode ser uma porta de saída dessa deturpação.
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Jornalista, professor universitário e assessor de comunicação