Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo positivo operante

Bem feito.


Se o Estado não tivesse se fiado cegamente nos militares que desde a primeiríssima hora e sem base em fatos comprovados culparam os pilotos do Legacy pela colisão com o Boeing da Gol em 29 de setembro, não teria o desgosto de amargar hoje a vitória da concorrência – a primeira entrevista da dupla Joe Lepore e Jan Paladino a um jornal e a primeira a um órgão de mídia brasileiro.


Dias atrás, eles foram entrevistados pela rede americana de televisão NBC. Ao noticiar a entrevista à TV, o Estado informou que já pediu duas vezes para falar com os pilotos desde que voltaram para os Estados Unidos – e não foi atendido.


O jornal atendido é a Folha de S.Paulo, e a primazia é da jornalista Eliane Cantanhêde, da sucursal de Brasília, que os entrevistou sexta-feira em Nova York.


Ao longo destes quase três meses, nenhum jornalista, individualmente, garimpou mais do que ela – com absoluta isenção, salvo prova em contrário – a história da maior tragédia da aviação comercial no Brasil e a suas seqüelas, condensadas no termo apagão aéreo.


Esclarecimento imprescindível, partindo da premissa de que a verdade sobre a catástrofe ainda está para ser conhecida com todas as suas letras miúdas:


Se o Estado não tivesse embarcado numa tentativa de linchamento moral dos aviadores americanos – sutilmente criticada em editorial do próprio jornal – o privilégio obtido pela Folha poderia sugerir que ela fez um acordo espúrio com os advogados dos pilotos, entre eles o criminalista (e ex-colaborador do jornal) José Carlos Dias.


Mesmo tendo o Estado agido como agiu, a suspeita contra a Folha se justificaria, se a entrevistadora tivesse em algum momento levantado a bola para os entrevistados ou se os tivesse poupado da mais incômoda das perguntas – sobre a versão de que eles, para fazer piruetas ou por qualquer outro motivo indefensável, desligaram a antena do Legacy, o tão falado transponder, para o jatinho sumir dos radares do sistema de controle aéreo. [Eles teriam religado o aparelho depois da colisão.]


Sintomaticamente, em matéria ao lado daquela que reproduziu as principais passagens da entrevista à NBC, o Estado divulgou críticas corretas de militares brasileiros ao fato de o entrevistador ter passado batido pelo problema do transponder.


É claro que Eliane não teria chegado a Lepore e Paladino se os seus advogados achassem que a entrevista, conforme os rumos que tomasse, poderia prejudicar a sua defesa, caso o indiciamento da Polícia Federal se transforme em processo judicial. Ou, por outra, até pode ter partido deles a iniciativa de chamar a jornalista, fiando-se no seu retrospecto de objetividade no tratamento do assunto, em reportagens e artigos de opinião – para que os seus clientes pudessem dar a sua versão do acidente, com transponder e tudo mais.


Em qualquer hipótese, a leitura da entrevista não sugere um jogo de cartas marcadas, o que poderia acabar, além do mais, com a respeitável carreira da entrevistadora.


Para começar, Eliane revela que o advogado americano Robert Torrricella não só esteve presente à entrevista e tomou a iniciativa de responder a perguntas, mas ‘fez constantes sinais aos clientes, especialmente quando poderiam criticar o Brasil, as autoridades, ou o sistema de vôo’. Ele também não deixou que eles detalhassem a autorização que teriam recebido dos controladores de São José dos Campos para voar a Manaus a 37 mil pés [portanto, na contramão].


‘Isso está sob investigação, eles não podem reproduzir a conversa, está sob sigilo’, censurou.


Depois, a questão do transponder, levantada pela repórter, se estende por cinco perguntas e respostas, incluindo uma do advogado.


Ela não deixou barato: pôs na mesa a hipótese do desligamento irregular, confrontou os entrevistados com a certeza manifestada pela Polícia Federal de que a máquina passou 50 minutos desligada, insistiu que isso foi confirmado pelos investigadores aeronáuticos – e ainda pediu para que esclarecessem a versão da policia sobre um diálogo entre eles, registrado na caixa-preta, que confirmaria que tinham conhecimento de que o transponder estava fora do ar.


O advogado não deixou que eles respondessem. No fim, exigiu que as fitas do pingue-pongue ficassem com ele depois da transcrição para o português. ‘Assumiu compromisso de destruí-las, sem uso na investigação’, informa Eliane. Ela não conta se ele autenticou o transcrito. Sem isso, o advogado sempre poderá dizer que os seus clientes não disseram exatamente o que lhes foi atribuído – mas não é de crer que dê esse tiro no pé.


A entrevista saiu com o título ‘Rádio funcionava bem, dizem pilotos do Legacy’ e o sub-título ‘Jan Paladino e Joe Lepore reafirmam que seguiram plano ditado pelo controle de vôo’. A partir das perguntas e respostas não se pode nem condená-los, nem absolvê-los. Mas elas dão ao leitor brasileiro uma visão aparentemente mais matizada do que pode ter acontecido naquele malfadado 29 de setembro.


Isso é jornalismo positivo operante.


P.S. Assinantes da Folha ou do UOL podem ler a matéria clicando em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1712200601.htm e http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1712200605.htm


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