A julgar por uma de suas mais recentes edições, dificilmente o Estado perderia este ano para algum outro jornalão nacional um hipotético torneio de desperdício de espaço.
O seu duplo trunfo está na página da sua seção internacional de sábado, a metade de cima dedicada ao canoeiro inglês que se passou por morto para a mulher receber o seguro, e a de baixo à conversão do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair ao catolicismo.
Muito bem. Sabe-se por que. Às vésperas de um dos mais opulentos natais brasileiros, a chuva torrencial de publicidade engorda artificialmente as edições dos diários, que se desdobram em cadernos e mais cadernos compartilhados por material de propaganda e material jornalístico.
Com a diferença de que o primeiro é autêntico – sem entrar no mérito do conteúdo. O segundo muitas vezes é gato por lebre – exatamente por causa do conteúdo, ou melhor, da pobreza de.
Um dos primeiros magnatas da imprensa moderna, Lorde Beaverbrook, definia jornalismo como a arte de escrever nas costas dos anúncios.
Por esse critério, quanto mais numerosos os anúncios – e maior a submissão dos jornais do país aos anunciantes, que se recusam a ter os seus reclames publicados em cadernos à parte -, tanto maior a probabilidade de que a escrita nas suas costas seja ilegível jornalisticamente, se me faço claro.
Nesse sentido, a página do Estadão com aquele supra-sumo de irrelevância para o leitor brasileiro – para não falar da maioria dos leitores do mundo inteiro, descontados os britânicos – parece levar às últimas a inaptidão das nossas redações para preencher com assuntos significativos o espaço extra que a publicidade lhes impôs.
Além disso, meios de comunicação devem ser julgados não só pelo que trazem, mas pelo que omitem. É o caso então de perguntar por que – para ficar no departamento de importação de texos estrangeiros – o Estado não transcreveu um dos artigos mais relevantes e fortes da semana na grande imprensa dos EUA.
Relevante por tratar da revelação conjunta das suas 16 agências de espionagem – noticiada aqui pela rama – de que o Irã, já em 2003!, havia interrompido o seu programa atômico secreto. O anúncio oficial pôs a a nocaute a retórica bushista do imediato perigo iraniano, prelúdio para uma segunda aventura militar dos Estados Unidos no Oriente Médio.
E forte, de um lado, por ser quem é o autor do escrito, o estrelado colunista Thomas Friedman, do New York Times, e, de outro, por ter ele afirmado no artigo “Interceptando a avaliação iraniana da América”, de quarta-feira passada, o que se lerá logo a seguir.
O artigo inventa um relatório da espionagem iraniana sobre os Estados Unidos, que conteria as seguintes passagens:
“Nossa mais recente análise, de 1990, concluiu que, depois do colapso do comunismo, a América estava nos trilhos para se tornar a única superpotência mundial e o mais persuasivo exemplo para a juventude muçulmana – incluíndo a nossa. Estávamos errados. Temos agora ‘elevada confiança’ [a expressão é uma paráfrase do documento americano que motivou o artigo de Friedman] em que os Estados Unidos estão numa senda de auto-destruição, por três razões:
Primeiro, o 11 de Setembro tornou a América medrosa e portanto burra. A ‘guerra ao terror’ está hoje tão profundamente entranhada na psique americana que pensamos ser ‘altamente improvável’ [outra paráfrase semelhante de Friedman] que os Estados Unidos continuarão a exportar mais medo do que esperança e continuará a defender coisas como tortura e a prisão da Baía de Guantánamo e a favorecer [o ex-prefeito de Nova York e presidenciável republicano Rudolph] Giuliani, que aliena o resto do mundo.
Segundo, numa época em que as pontes, estradas, aeroportos e a internet de banda larga americanos ficaram para trás dos de outras potências industriais, incluíndo a China – e em que as campanhas para as primárias [que antecedem as escolhas partidárias de seus candidatos à Casa Branca] têm-se concentrado em ampla medida em casamentos gays, queima de bandeiras e se a Bíblia cristã é a verdade literal -, é ‘altamente improvável’ que a América consiga deter o seu declínio.
Terceiro, nos Estados Unidos todos os candidatos presidenciais estão se distanciando dos valores essenciais que fizeram o país tão poderoso e tão diferente de nós – em particular, o tradicional compromisso com o livre-comércio, imigração aberta e reverência pela pesquisa científica, seja lá aonde ela conduza. […]Concluímos, portanto, com ‘elevada confiança’ que é pouco provável que os Estados Unidos pós-11 de Setembro consigam, como eles dizem, se aprumar de novo em tempo previsível. Quem precisa de bombas A quando se tem essa espécie de América?”