Enquanto o mundo acompanhava atentamente a revolta na Praça Tahrir, no centro do Cairo, e o papel desempenhado pelas novas mídias, a China silenciosamente removeu a palavra ‘Egito’ da lista de termos que podem ser acessados na rede do país. O Egito colocou em evidência os desafios que devem ser enfrentados pela próxima geração de líderes chineses, igualmente preocupada com os rumos do futuro.
Uma piada atualmente popular na China fala de um piloto que diz aos passageiros ter boas e más notícias: ‘A boa notícia é que estamos adiantados; a má notícia é que estamos perdidos.’ Para esta potência econômica em rápido crescimento, os desafios abrangem desde o reequilíbrio da economia e a superação do abismo entre a China rural e a China urbana, até as medidas contra a mudança climática e a redistribuição atual do poder global. De acordo com um número cada vez maior de relatos, o maior destes desafios pode ser o efeito, no longo prazo, o das crescentes complexidades do relacionamento entre o partido-Estado e a sociedade civil, catalisadas principalmente pela mídia cibernética.
Segundo muitos observadores, o fenomenal crescimento da sociedade civil na rede foi, até o momento, bastante favorável ao Partido Comunista, e não à sociedade civil. A China tornou-se um Estado autoritário interligado no qual o partido monitora, controla e determina a opinião pública valendo-se de recursos ilimitados em termos de mão-de-obra – incluindo-se aí os mecanismos humanos de busca – e de tecnologia, empreendendo um esforço de mineração de dados que atinge as profundezas da sociedade.
A melhor foto jornalística
Uma vasta literatura sobre o tema veio à tona com livros excelentes, como The Power of the Internet in China – Citizen Activism Online (O poder da internet na China – ativismo cidadão na rede), publicado em 2009 por Guobin Yang e, mais recentemente, After the Internet, Before Democracy – Competing Norms in Chinese Society and Media (Depois da internet, antes da democracia – normas conflitantes na sociedade e na mídia da China), publicado em 2010 por Johan Lagerkvist, e Changing Media Changing China (Mídia em mutação alterando a China), de Susan Shirk (2010).
Em muitos casos ocorridos desde 2004, a internet alterou dramaticamente o rumo dos acontecimentos, obrigando o partido a manobrar entre resposta e repressão. Tomemos como exemplo o caso do oficial Li Gang, da polícia provinciana, e a morte de uma estudante, atropelada por um carro dirigido por seu filho embriagado. Depois de ser flagrado por pedestres, o filho se gabou: ‘Duvido que ousem registrar a ocorrência. Meu pai é Li Gang.’ Logo as palavras de Li Júnior estavam em blogs de toda a China, incorporadas à história das cinco mansões de luxo do pai, tão comentada na internet. Tornou-se inevitável levar Li Júnior a julgamento. O caso também levou o partido ao banco dos réus. Em 30 de janeiro, Li foi sentenciado a seis anos de prisão.
Outro caso, envolvendo as irmãs Zhong, recebeu menos atenção internacional, mas consiste num exemplo mais significativo. Em setembro, o governo estava pronto para demolir o lar da família Zhong, na província de Jiangxi, quando uma das filhas, a mãe e um tio atearam fogo a si mesmos. O tio morreu por causa dos ferimentos. Quando duas das irmãs tentaram embarcar num voo para Pequim com o objetivo de contar sua história num programa de TV, representantes do governo local as ameaçaram no aeroporto. As jovens fugiram para o banheiro e telefonaram para um jornalista de sua confiança. Em questão de minutos, o caso estava no microblog mantido pela sina.com. Jornalistas de Pequim telefonaram para as irmãs no banheiro e transmitiram a conversa ao vivo pela internet. O incidente tornou-se notícia em toda a China e uma foto da irmã que sofreu graves queimaduras sentada no colo de outra das irmãs ganhou o prêmio chinês de Melhor Foto Jornalística de 2010.
Expansão da mídia
As autoridades não tiveram escolha senão dialogar com a família. Oito funcionários do governo estão sob investigação. A equipe do sina.com, sob intensa pressão, apagou do blog todas as reportagens e comentários sobre o incidente. Mas a história se espalhou, tornando-se um marco na história da internet na China. Os microblogs tornaram-se plataformas para opiniões críticas sobre a corrupção e das injustiças sociais – e diz-se que milhões de mensagens sobre estes temas são publicados todos os dias.
Estes dois casos individuais fazem parte de um dramático avanço nas comunicações. Os livros de Lagerkvist e Susan apresentam um contexto analítico, trazendo um riquíssimo material sobre como a indústria chinesa da mídia está crescendo e como o partido-Estado tenta lidar com isso e controlar este processo. Lagerkvist concentra-se na internet, enquanto Susan se dedica a uma abordagem mais ampla da mídia num volume que traz contribuições de estudiosos chineses e personalidades da mídia como Hu Shuli, fundador da revista Caijing, e Zhan Jiang, um reformador da mídia. Em ambos os livros, a internet constitui para o partido a mídia mais ameaçadora.
As estatísticas da expansão quantitativa da mídia na China são impressionantes: mais de 400 milhões de usuários da internet, 220 milhões de blogs, 800 milhões de assinantes da telefonia celular, mais de 2 mil jornais e 9 mil revistas, cerca de 2.200 emissoras de TV e – o mais incrível – tudo isso cada vez mais comercializado. Ainda assim, o partido continua no controle.
‘Opiniões e informações mais livres’
Em termos quantitativos, tanto Lagerkvist quanto Susan descrevem uma situação de concorrência cada vez mais acirrada entre normas sociais já estabelecidas e as normas emergentes, bem como os desafios crescentes enfrentados pelo partido-Estado. Em seu livro, Susan – que ganhou reconhecimento internacional com sua obra sobre a China enquanto superpotência frágil – aprofunda-se mais do que Lagerkvist, sugerindo que o partido se vê agora obrigado a ceder parte do controle e, como diz em seu capítulo Xiao Qiang, do China Digital Times, um reequilíbrio de poder estaria ocorrendo na sociedade chinesa.
Lagerkvist mostra-se preocupado diante do grau de influência do otimismo nas teorias ocidentais sobre a China. Ele diz que o partido-Estado chinês ‘é bastante robusto, confiante e capaz de suportar instabilidades no curto prazo’, ‘pluralizando a internet em proveito próprio’ e enchendo a mídia de ‘idiotenimento’ imobilizante. Mas ele afirma na sequência que há ‘uma erosão se aprofundando no poder do partido-Estado por conta da ação da sociedade civil’, transmitindo a ideia de um ativismo crescente e da formação de novas normas e valores da sociedade, tanto na rede quanto fora dela.
Lagerkvist analisa transformações observadas dentro do partido entre funcionários do Estado burocrático, conforme eles mesmos passam horas na internet quando não estão trabalhando, diante de telas em seus próprios lares. Eles também são cidadãos da rede e as normas sociais seguidas por eles acompanham essas transformações. Lagerkvist escreve que ‘o golpe final contra o vasto regime de censura do partido-Estado se dará como resultado da maior sensibilidade despertada nestes atores em relação a temas como a liberdade pessoal, a privacidade online e a necessidade de uma disseminação de opiniões e informações mais livre’.
A quinta geração
A censura é uma parte orgânica do partido-Estado e sem dúvida continuará a ser uma arma crucial, mas seu uso é cada vez mais denunciado conforme a sociedade chinesa na internet ganha consciência do quanto os interesses do partido determinam os limites do seu acesso à informação. Como consequência, a ideia de um ‘direito a saber’ está tomando forma na sociedade civil online chinesa, em rápido crescimento, e isso poderia, na análise de Susan, tornar-se ‘o grito de guerra da próxima revolução chinesa’.
Apesar de estarmos longe de uma declaração de liberdade para a internet na China, com o tempo a sociedade civil e as novas tecnologias vão empurrar os limites para além das fronteiras axiomáticas definidas pelo partido-Estado. Nas palavras de Lagerkvist, o momento crítico chegará quando a demanda por mudanças fora da rede se tornar forte o bastante para mudar o jogo.
Talvez o controle do partido já tenha sido ‘perdido’ e testado, mas isso não significa que ele esteja prestes a desabar em chamas. A quinta geração, que assumirá o governo em 2012, deve tentar formas mais deliberadas de autoritarismo e novas combinações de resposta e repressão enquanto luta para manter seu monopólio de poder numa sociedade que muda rápido demais para ser acompanhada pelo partido. [Publicado com autorização da Yale Global Online, Yale Center for The Study of Globalization.]
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Ex-embaixador da Suécia no Vietnã (1994-97) e na China (2002-06); publicou o livro China – Drama de nossa época e atua como coordenador do Fórum Chinês de Estocolmo