A imprensa brasileira tem ligações perigosas com tudo o que é efêmero. E talvez sejam inumeráveis os jornais que, seguindo à risca a etimologia da palavra latina ephemeron, aplicada a flores e animais que nascem e morrem no mesmo dia, não duraram mais de um número, não havendo sequer uma segunda edição para os funerais dos veículos, vítimas da mortalidade infantil, que entre nós ataca também revistas e livros, além de crianças, naturalmente.
Foi para designar a tragédia original, a morte de crianças por fome ou doenças no mais das vezes, que foi inventada a expressão, há décadas indicador de desempenho socioeconômico que organismos internacionais utilizam para examinar a situação em que se encontram as nações.
O português trouxe a palavra do latim, que por sua vez foi buscá-la no grego ephémeron, de significado semelhante, o que serviu para designar a posição dos astros no firmamento, e de onde derivaram as efemérides, o registro do que foi relevante em determinado dia, mês, ano século, milênio, dependendo as épocas que sejam agrupadas.
Pois este janeiro tem, entre suas grandes efemérides, uma pequenina, mas muito relevante. A revista Argumento, bimestral, cujos editores são Marcus Gasparian e Nina Schipper, está completando um ano. O número é dedicado ao Rio, ‘à cidade do Tom, à cidade que viu surgir o jornalismo inigualável da patota do Pasquim, ao Rio de manifestações e pessoas que são modelos de dedicação e de carinho’, nas palavras do editorial desse número 6. ‘É com base nesses modelos que procuramos editar a revista’, acrescenta o editorial.
Pedaços com os amigos
Há vários destaques no número de aniversário, alguns antológicos, como o de Millôr Fernandes sobre Paulo Francis, e de Paulo Francis sobre Millôr Fernandes.
Escreveu Francis:
‘Não conheço quem escreva português melhor que Millôr. O pior de nosso jornalismo e literatura é que é em boa parte ‘pré-pound’, os profissionais parecem considerar a linguagem algo que se maneja de fraque e cartola, uma ‘Ilustríssima senhora’. Millôr foi um dos primeiros, ele e Rubem Braga, a tratar a ‘senhora’ como mulher, moça, gente, a coloquializá-la, a substituir os clichês sintáticos e gramaticais glorificados pelos dicionários, numa representação da linguagem falada, criada, experimentada pelo ser brasileiro. Todos aprendemos com ele.’
E Millôr escreve a Francis, em 16 de junho de 1986, para enviar-lhe um recorte de O Cometa Itabirano, que estava deixando a idade de inocência (7 anos), outra efeméride traçada pela Igreja na Idade Média. Diz Millôr:
‘É um bravo jornaleco. Tem e mantém suas opiniões contra os mandões locais. É o que sobrou do espírito do Pasquim. De qualquer forma eles gostarem de você é honroso. E quando eu ia te mandar o recorte é que me deu mais a saudade. Veja que a gente, queira ou não, vai deixando pedaços com os amigos, pedaços que nos ligam e entreligam.’
Destaque imperdível
O número de aniversário tem muito mais. Contudo os dois textos já o justificam. Não resisto a transcrever também o poema inédito de Antonio Cicero, linda e dolorosa síntese radiografando o Rio, sem meias palavras, e em poucas palavras:
‘O menino olha para o mar:/ lá no fundo ele se junta ao céu;/ mas atrás do muro aquém do olhar/ pulsam sangue e morro e mata e breu’.
Outros textos deliciosos: ‘Ao bater do martelo’, de Ruy Castro, narrando as peripécias de um empresário italiano que arrematou, sem querer, por R$ 51 mil, um disputado lote num leilão da Receita Federal: 101 caixões de luxo, procedentes da Indonésia. Devem estar fazendo falta lá, depois da tragédia do maremoto mais recente. ‘No mercado carioca de caixões de luxo, um exemplar do gênero vale quase R$ 10 mil. Como o empresário pagou cerca de R$ 500 por cada um, pode ter saído com um lucro considerável da brincadeira’, diz Ruy, para acrescentar com a verve que é marca de seu estilo:
‘Um verdadeiro comerciante teria uma alternativa mais criativa. Ficaria com os caixões por algum tempo, usaria pilhas para iluminá-los artificialmente por dentro e só então os venderia, por mais dinheiro ainda – para cadáveres com medo do escuro e que quisessem estar preparados para a possibilidade de um apagão’.
Moacir Werneck de Castro dá-nos o gosto de uma crônica bem carioca, ele que não o é de nascimento, considerando o desvio uma ‘injustiça histórica’. ‘Mas o sou por decisão íntima, pessoal e irrevogável’. Isso mesmo, Moacyr! Dois dos escritores mais cariocas da atualidade não são cariocas. João Antônio, já falecido, era paulista. E Rubem Fonseca, quem diria, é mineiro de Juiz de Fora, onde viveu os primeiros anos da infância, importantíssimos na vida de um escritor.
Outro destaque imperdível: Jaguar, com charges e um texto que revive os dias que a patota do Pasquim passou na prisão.
Enfim, é revista para ser lida de cabo a rabo. Uma verdadeira e múltipla efeméride.