Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O drama da verdade (ou discurso sobre alguns mitos da informação)

1. Introdução

O símbolo do herói moderno, para o filósofo italiano Umberto Galimberti (Il Gioco Dele Opinioni), deveria ser Ulisses, rei de Ítaca, por ter inventado o cavalo de Tróia – em cujo ventre, acreditando no que aprendemos na escola, se esconderam soldados que à noite abriram as portas da cidade. Porque seria Ulisses portador dos valores básicos que se exigiria de uma sociedade moderna – mentira e astúcia. Retraduzindo essas palavras, para dar-lhes mínimos de dignidade, temos então que astúcia passa a ser a ‘capacidade de encontrar o ponto de equilíbrio entre forças contrárias’. Enquanto mentir significa ‘habitar a distância que separa aparência e realidade’; e, também, ‘escapar da ingenuidade dos que acreditam que as coisas são, sempre, o que aparentam ser’. Com Ulisses inaugura-se a dupla consciência da realidade e sua máscara. E revela-se, em sua tragédia renovada, o drama da verdade.

A imprensa, assim a definiu Chesterton, é ‘a arte de dizer que Lord Jones morreu a quem nunca soube que Lord Jones existiu’. Mas era 1912. E, com o tempo, passou essa imprensa a dizer que Lord Jones disse o que Lord Jones nunca disse; ou não dizer que Lord Jones disse o que Lord Jones disse; ou fazer de conta que nunca existiu um Lord Jones; ou até dizer que Lord Jones disse o que Lord Jones disse mesmo. Tudo a um público cada vez mais informado e com uma eficiência que poucos teriam sonhado. Mas esse tempo é pré-história.

Estamos nos convertendo em uma civilização impressentidamente nova. Provavelmente, nem pior nem melhor que as anteriores, apenas diferente. Talvez ainda não sejamos capazes de compreender, em toda sua extensão, o ‘mito da idade da informação’, tão duramente descrito por Bill Mckibben (The age of missing information). São outros os valores, outros os padrões de organização social, outros os processos de transmissão de conhecimento. Com alteração nas bases tradicionais da economia, da religião, da história, da própria cultura. Tudo muda, continuamente. A questão já nem é saber se as novas tecnologias da informação vão alterar nossa maneira de viver, mas como o farão.

Esses extraordinário desenvolvimento, que atinge os meios de comunicação, tem duas dimensões óbvias. Uma técnica, que corresponde à melhoria crescente na quantidade, na qualidade e na velocidade de transmissão da informação. Outra cultural, interferindo em nossos jeitos de viver. Realidade e fantasia – que François Brune (A comunicação social vítima dos negociantes) chama de ‘mercantilização do imaginário’.

Nesse caso estão nossas cinderelas de subúrbio – sonhando secretamente, nas telas da TV, com o fausto implausível de uma outra vida que nunca terão. Suspirando escondidas, em seus quartos humildes, à espera do príncipe encantado em que se converte diariamente o galã da novela das 8, tão próximo e tão inatingível. Condenadas a viver vidas paralelas, como se a miséria de suas existências exigisse o contraponto de um ‘Eldorado’ a que se chega apenas girando um botão.

O problema é que esse desenvolvimento tem também uma terceira dimensão, institucional, menos óbvia e não obstante relevantíssima – com implicações nos modelos de organização de nossa sociedade. Interferindo, hoje, na própria soberania dos países.

É certo que meios de comunicação representam a melhor garantia de ampla expressão do pensamento e de fiscalização das ações públicas. Mas, à margem dessa matriz emancipadora, em que a informação funciona como instrumento de liberdade, temos também as implicações de suas disfunções – quando restam à disposição dos grandes interesses. De alguma maneira se poderia mesmo dizer que, assim como não há democracia sem meios de comunicação livres, igualmente não há democracia com meios de informação livres. No tanto em que cumpre definir limites democráticos ao poder brutal dos grandes conglomerados de comunicação.

2. Limites

Discutir ‘independência’, ‘segredo’ e ‘autocensura’ exige compreender mais amplamente o verdadeiro significado de ‘independência’, em um mundo crescentemente interdependente e inter-relacionado. O verdadeiro significado de ‘segredo’, a partir de uma realidade em que o próprio interesse coletivo lhe confere sentidos positivos e negativos. E o verdadeiro significado da ‘musa da autocensura’, como a ela se refere George Steiner, em um mundo de múltiplos interesses em conflito.

Proponho que esse debate se faça, não na busca da essência desses conceitos; mas, em sentido diverso, pela definição de limites. Nos seus contornos. Com a esperança de que, definidos esses limites, estarão automaticamente conformados os sentidos mais íntimos de cada um desses conceitos.

3. ‘Indepêndencia’ e ‘autocensura’

São como que dois lados de uma mesma moeda. Numa, os limites vêm de fora; noutra, do próprio emissor de opiniões. Por razões, evidentemente, bem diferentes. De parte algumas situações isoladas, uma análise madura deveria começar com a compreensão de que o jornalista é um assalariado. No que isso tenha de bom e de ruim. Para aqueles que não são capazes de compreender essa relação, entre grandes interesses e grande imprensa, Claude Julien até apresenta uma curiosa explicação psicológica – ‘seria uma insuportável introspecção que faria correr o risco de desvendar-lhes a própria servidão’. Levando a que, nos dias que correm, nem sempre valha como está escrito o sonho de Pulitzer – ‘Exatidão! Exatidão!! Exatidão!!!’.

Devemos ainda compreender que a idéia da informação, como valor absoluto, não é senão um mito. A própria Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, condiciona o exercício dessa liberdade de informação (art. 10) a deveres e responsabilidades; concernentes à privacidade (art. 8.2.) e à liberdade de pensamentos, consciência, religião (art. 9.2.), reunião e associação (art. 11.2). É certo que a democracia tem fundamento, político e ético, no direito de livre aceso à informação: à notícia – como fato terminal – e a suas fontes primárias. Mas esse livre acesso vê seus limites sendo progressivamente definidos, em todas as legislações modernas.

A vida em comunidade é, toda ela, construída a partir de controles sociais. Temos interferências na vida econômica, com a definição de cada uma das políticas setoriais – de educação, saúde, habitação; em práticas sociais compensatórias; na definição dos preços públicos; na vedação de monopólios e oligopólios. Em todos os setores. No tráfego, por exemplo, só podemos dirigir com carteira de habilitação, o carro deve ser emplacado, o cinto de segurança é obrigatório, o sinal vermelho deve ser respeitado, temos contramão, estacionamento proibido, velocidade máxima permitida; e nunca ninguém pensou que esses limites possam violar a liberdade de locomoção, sagrada na Constituição como direito individual e cláusula pétrea (art. 5°, XV).

Mesmo no campo da representação política ele está presente: na limitação ao financiamento de campanhas eleitorais, na exigência de registro prévio de candidatos, na proibição do uso de televisão paga nessas eleições, quando se impede que parente de ocupante de cargo executivo ou condenado por crime possa ser candidato. Empresários ou sindicalistas, em princípio, poderiam pretender ser livres para financiar seus candidatos no montante que quisessem; mas não podem, por determinação legal (para não sermos ingênuos, não podem oficialmente). E ninguém dirá que essas proibições constituam violência contra as liberdades dos cidadãos. Porque são apenas instrumentos do interesse coletivo, inseridos em mais vasto quadro de controle consensualmente observados, nas sociedades democráticas. Não havendo nenhuma razão para deixar de exercer esse poder de controle democrático também sobre os meios de comunicação.

A pretensão de que meios de comunicação devam ser a única atividade livre desses controles democráticos, ignora a presença crescentemente dominante do setor na vida social; e é ingênua, quando não compreende que um modelo institucional que permita direta ou indiretamente o monopólio da informação não será capaz de produzir nenhum controle eficiente sobre esse monopólio. E aqui já estamos falando no terceiro conceito deste seminário.

4. ‘Segredo’

A sociedade contemporânea, de alguma maneira, relaciona informação e democracia. É um erro. Democracia é, freqüentemente, não informar. Padres não revelam o conteúdo da confissões. Médicos e advogados estão submetidos a reserva legal. Nenhum país informa efetivos de forças armadas, planos militares, documentos sobre fronteiras, correspondências de outros países. A polícia não informa a hora em que vai fazer uma operação, em um bairro qualquer. É assim em toda parte.

Dos Estados Unidos nos veio a lenda de que não pode haver qualquer limitação ao poder de informar. A partir de vedação constitucional a qualquer tipo de censura – supostamente contida na primeira emenda do Bill of Rigths (nome coletivo das dez primeiras emendas à Constituição americana), a saber: ‘Congress shall make no law … abridging the freedon of speech, or the press …’. Mas, mesmo ali, a Suprema Corte estabelece limites à livre expressão, desde 1919 – com a doutrina do clear and presente danger¸ sagrada no caso Schenck x United States; confirmada em 1924, com a doutrina do gravity on evil – que reconheceu não ser absoluta essa liberdade, comportando seu exercício limites em função da ordem pública ameaçada.

Em 1945 a doutrina da free speech lhe deu contornos ainda mais amplos, definindo que ‘a liberdade de expressão não seria um direito absoluto, confrontando-se com outros direitos constitucionais, como a privacy. Princípios esses todos renovados, e alargados, em 1982 – com a doutrina, hoje dominante, das unprotected speech, estabelecida no caso New York x Ferber.

Em livro polêmico, e não obstante pouco lido (The end of history and the last man) Francis Fukuyama faz observação interessante. Diz que, se perguntarmos a um político latino-americano o que é democracia, a resposta virá incontinenti – ‘imprensa livre e Congresso funcional’. Para ele não é assim. Os elementos matriciais de uma democracia verdadeira seriam ‘classe média ampla e educação universal e abrangente’. Que uma democracia apenas formal, fundada em diferenças econômicas evidentes, representa uma sociedade fundamentalmente autoritária. Mas estamos, todos, impregnados desse formalismo. Levando a que o tema das relações entre informação e democracia resulte, hoje, turbados por três preconceitos principais. A saber:

5. Primeiro preconceito

O de que um acesso democrático ao fato deve ser imediato, amplo e incondicional. Não é assim, no mundo. Por exemplo, na Suécia, há vasto conjunto de temas protegidos por reserva legal’: a) segurança do reinado e relações internacionais; b) política monetária e de comércio exterior; c) atividades de agências de controle e inspeção; d) prevenção e repressão a crimes; e) interesses econômicos do estado e da coletividade; f) proteção da vida privada; g) salvaguarda da fauna e flora. Na França temos: a) política exterior; b) crédito público; c) segurança pública; d) segredo de deliberações do governo; e) infrações fiscais; g) segredos da vida privada.

Nos Estados Unidos há nove categorias de reserva; inclusive quando constituem ‘atentado não justificado à vida privada’, ou ‘ revelem a identidade de uma fonte de informação confidencial’. Sem contar documentos médicos, psiquiátricos, e proteção a documentos profissionais.

Na Austrália são documentos reservados aqueles relativos a: a) segurança nacional; b) governos Estrangeiros; c) documentos internos, de trabalho do gabinete; d) proteção da saúde; e) que afetem interesses financeiros: f) que afetem a economia nacional.

Mesmo no Direito Comunitário temos reserva em: a) segurança do país; b) economia do país; c) segurança pública; d) defesa da ordem e prevenção de infrações penais; e) proteção à saúde; f) proteção de direitos individuais. E nada sugere que não haja democracia, nesses espaços. Sendo essa reserva sempre determinada pelo interesse coletivo.

6. Segundo preconceito

O de que é inconstitucional ou antidemocrático toda regra que autorize o acesso imediato a toda informação. Também não é assim. Na França, o prazo médio de reserva é de 30 anos. Mas há exceções: a) 60 (da data de produção do fato) para segurança do Estado e vida particular; b) 100 (do encerramento do caso) para assuntos jurídicos; c) 120 (da data do nascimento) para informações pessoais; d) 150 (da data de nascimento) para informações médicas. Só em 2.154 saberemos de que morreu Arafat.

Na Itália, o prazo médio é de 50 anos (da data de sua produção) e 70 anos para documentos reservados relativos a situações privadas. Na Suécia esses prazos variam entre 2 a 70 anos; mas, na vida privada, ficam entre 50 e 70 anos. Nos Estados Unidos, se dá ‘pelo tempo que as considerações de segurança nacional requererem’. Definindo a Suprema Corte em 1991, no caso O´Connor x United States, que o governo pode bloquear informações. Assim foi, inclusive, com as do Vietnam.

Em Portugal, até Portaria de 21/8/1987, não eram facultados ao público documentos da vida privada; podendo, uma Comissão de Avaliação, desbloquear ditos documentos. De tudo resultando que certo distanciamento, entre o fato histórico e ao acesso à informação, corresponde ao interesse coletivo.

7. Terceiro preconceito

O de que o governo tenha sempre o poder de estabelecer restrições à livre circulação da informação. Mais uma vez não é assim. Com esse poder de desbloquear essas informações restando, freqüentemente, à margem do Poder Público: à livre discrição da Comissários da informação (Canadá); Ombudsman e Comissões Administrativas (Suécia); Comissão de Acesso a Documentos Administrativos (França); Comissão sobre Segredo de Pesquisa (Noruega); Corte Administrativa Suprema (Finlândia); Administrative Appeals Tribunal e Ombudsman (Austrália); District Courts, sem prejuízo das Civil Service Comissions (EUA).

Especial atenção deve ser reservada a documentos sobre episódios históricos específicos. O Brasil inclusive experimenta, hoje, essa expectativa, às vésperas da abertura dos arquivos sobre a Revolução de 1964. Do Chile nos vem bom exemplo, com o Decreto n° 355, de 25 de abril de 1990 – que criou a Comissão Nacional de Verdade e Conciliação. Ao definir, em seus considerandos, o próprio sentido de sua criação – o de reconhecer que ‘apenas sobre a base da verdade será possível satisfazer às exigências elementares da justiça’; e o de que ‘apenas o conhecimento da verdade reabilitará a dignidade das vítimas e permitirá reparar, em alguma medida, o dano causado’.

8. Em resumo

O conceito de segredo, como instrumento democrático, tem sentido apenas quando compreendido em um cenário mais amplo, de controle democrático à circulação de informações. E submetido, sempre, ao interesse coletivo da informação.

9. Tudo muda

Assim como aquele 1912 de Chesterton era pré-história, todo esse discurso de agora corre o risco de também se converter em passado. Por conta de um risco mais amplo, de internacionalização da informação. Houve tempo em que produzir ferro ou petróleo também era. O mesmo com energia elétrica. Hoje, o nome do jogo é informação. É instrumento de cultura. É preservação de nossa identidade, como nação. É soberania.

Estudantes brasileiros assistem TVs do Brasil, em seus cursos no exterior. Brasileiros morando fora se sentem mais próximos de sua terra. Mas é também parte de um conjunto de interesses mais amplos. Na Guerra do Golfo tínhamos, ao lado dos gigantes da comunicação norte-americanos, também gigantes árabes – al-Arabyia, al-Jazera. A versão árabe era também ouvida, no mundo. Amanhã, alguma grande potência poderia pretender que a Amazônia acabasse internacionalizada – para preservar a última grande floresta tropical do planeta, o patrimônio genético de sua flora, água doce, etnias. E precisaríamos também ser ouvidos. Os meios de comunicação nacionais devem estar preparados para exercer esse papel. Em toda parte.

Tanto mais grave porque está em curso um processo de mundialização dos meios de comunicação. A Federal Communication Comission (FCC) americana, por exemplo, acaba de aprovar a revogação da ‘broadcast newspaper cross-ownership rule’ [Seção 75.3550(D)3 do Commissions Rule], em vigor desde 1970. Apoiando a formação de fortes conglomerados de mídia. O jogo se jogará fora dos Estados Unidos, pois. Seremos, no resto do mundo, palco desses interesses. E talvez não estamos preparados para (re)agir. A realidade, hoje, é de mudança extrema. A lógica dos meios de comunicação mudou. Os mercados são outros, os interesses são outros. E talvez não estejamos nos preparando para essa mudança.

Por fim, devemos decidir se vamos jogar o jogo internacional da mídia, ou se continuaremos no papel passivo e subalterno que até agora exercemos, resignados à mediocridade. Decidir se estamos dispostos a enfrentar esse quadro de extraordinárias transformações prometidas pelos meios de comunicação eletrônica, especialmente a internet. Decidir se conspira a favor da democracia essa presença concentrada da mídia, conformando o cenário do novo tempo em que vivemos.

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Advogado em Recife (PE), primeiro presidente do Conselho de Comunicação Social