Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Meios de comunicação e o regime democrático

Em primeiro lugar, quero cumprimentar a todos os presentes e agradecer o convite para estar aqui. É para mim uma honra extrema poder falar em minha língua a um público internacional na terra de onde há 200 anos saíram meus ancestrais, que foram à Bahia fundar um dos primeiros jornais editados em terra brasileira e àquela altura iniciaram uma vocação que, geração após geração, tem atraído Servas ao jornalismo.

O poeta maior dizia ‘minha pátria é minha língua’ e por isso ouso dizer que somos cidadãos da mesma pátria. Ao mesmo tempo, sinto que somos ainda mais próximos, juntados dentro da grande pátria lusófona pela atividade do jornalismo, uma província dentro da nação-língua. Assim, não temos só a mesma nacionalidade, mas também a mesma naturalidade jornalística. E quiçá logo faremos parte também de uma mesma aldeia, a dos jornalistas plenos de liberdade de expressão e opinião.

Fui convidado a falar sobre os meios de comunicação e o regime democrático. Meu estudo sobre essa relação tem feito de mim um pessimista. Mas antes de começar a relatar as coisas que me levam a esse diagnóstico, quero deixar claro de antemão que não confundo as agruras do exercício do jornalismo em condições políticas adversas e os problemas que se colocam dentro do regime democrático.

Assim, tendo começado no jornalismo em 1978, quando o Brasil vivia a fase final, de decadência do regime ditatorial, vejo com admiração as liberdades que temos hoje no país garantidas em Constituição e salvo exceções raras, preservadas pelos poderes.

Então, não quero parecer o pessimista que não percebe os matizes entre os problemas do jornalismo na ditadura e na democracia.

Meu trabalho de pesquisa está consubstanciado em dois livros, o primeiro chamado Babel, a mídia antes do dilúvio, de 1997, e o segundo, Jornalismo e desinformação (publicado em 2001). Sobre este livro, eu e meu editor debatemos algum tempo se deveríamos assumir a provocação apenas sugerida no título mas explicitada no conteúdo do trabalho, e denominá-lo ‘Jornalismo é desinformação’.

O livro é muito influenciado pelo trabalho como correspondente na guerra da Bósnia, no início dos anos 1990, embora não seja um trabalho sobre esse tema. Nesse contexto, uma passagem é seminal para a compreensão do texto. Trata-se de uma citação do escritor norte-americano Robert Kaplan sobre o líder político Milovan Djilas, preso durante a maior parte do governo do marechal Tito e que o autor americano conheceu quase ao fim da vida. Kaplan está admirado diante da capacidade que o político sérvio tem de estar sempre certo, até mesmo de prever o futuro. Até concluir, de forma nada lisonjeira para nós jornalistas, que ele era capaz disso porque não acompanhava o noticiário, ‘ignorava os jornais diários e só pensava historicamente’.

Banditismo e eleições

Ao meu ver, as árvores do noticiário jornalístico impedem a visão da floresta da história. Faltam no jornalismo de hoje as relações entre os fatos, as localizações das notícias no longo curso dos acontecimentos e no curso da história.

Esse vício, em verdade, é um aspecto totalmente presente, tão enraizado e característico do jornalismo contemporâneo que se pode pensar que é essencial.

Em meu trabalho procuro classificar os defeitos do jornalismo conforme o impacto que eles podem provocar sobre o leitor na compreensão da notícia. São várias categorias de problemas, desde a mais simples, omissão (uma lacuna impensada), passando por sonegação (uma falha previsível ou consciente) e submissão da informação (quando um fato é confundido com outro por justaposição ou outro motivo).

A submissão se dá quando dois fatos do noticiário, muitas vezes por força da quantidade de notícias disputando o espaço do jornal e a atenção do leitor, se confundem. Uma submete a outra a seu contexto. É o caso da chamada ‘guerra do futebol’, entre Honduras e El Salvador, às vésperas da Copa do Mundo de 1970. Há muito pouco de futebol na guerra entre as duas ditaduras de bananas, mas assim passou à história.

Chamo de deformação à submissão que leva a uma compreensão errada de um noticiário. Cito dois casos: na eleição presidencial de 1989 no Brasil, o seqüestro do empresário Abílio Diniz, um dos mais ricos do país, foi desvendado no dia da votação, dividindo o espaço dos jornais com o fato de maior importância da história recente do país, em que se defrontavam um candidato de direita e um de esquerda. Até aí haveria uma submissão. Mas o fato de que os seqüestradores usavam camisetas do PT, o partido do candidato de esquerda, gerou uma associação imediata entre o seqüestro e a esquerda. Um caso de banditismo (praticado por ex-militantes de esquerda) apareceu como crime político. Não se consegue até hoje avaliar exatamente qual foi o efeito do seqüestro sobre o eleitorado.

Casos comuns

Alguns meses depois, o direitista vitorioso, Fernando Collor, assumiu a presidência e detonou um choque econômico violentíssimo, deixando todas as pessoas com um saldo bancário ínfimo. Àquela altura, corria a campanha para a eleição peruana em que um candidato arrivista como Collor (esse era Fujimori) se candidatava contra um candidato de coligação de partidos liberais, em uma plataforma contrária ao establishment populista que governara o país. Imediatamente o decreto de Collor foi associado às plataformas liberais de Vargas Llosa, com efeito negativo sobre sua candidatura, afinal derrotada.

O mundo hoje vive os primeiros sinais mais dramáticos do chamado efeito-estufa, que deverá aumentar os movimentos dos ventos e dos mares nas próximas décadas. Isso, dizem vários cientistas, já é sensível no aumento do número de tufões no Caribe e mesmo a ocorrência de ventanias com força inédita no litoral sul do Brasil. Imagino se um tufão afetasse hoje a região do Caribe, como ele seria imediatamente confundido com o tsunami da Ásia. Ainda que essas duas ocorrências essencialmente sejam muito diferentes e a compreensão da diferença seja realmente o fundamental para o leitor hoje.

Casos de omissão, sonegação, submissão e deformação são comuns no jornalismo. O problema da sociedade da informação contemporânea é que a proliferação de notícias leva esses problemas ao paroxismo. Não preciso lembrar aqui que uma única edição do New York Times hoje contém mais informações do que um homem médio do século 15 ficou sabendo em toda a sua vida. O New York Times de domingo é um jornal que chega a ter em uma única edição cerca de mil páginas.

Efeitos da saturação

O conjunto de informações que se impõe aos consumidores de notícias é tão grande que gera a chamada saturação: os fatos se submetem uns aos paradigmas dos outros, sem distinção. Não há estudos conclusivos sobre o efeito dessa saturação na memória e na compreensão do noticiário. Mas há indicações.

Nos anos 1960, o sociólogo Jean Baudrillard estudou o efeito da impregnação (o termo é dele) publicitária, exatamente o fogo cruzado de diversas mensagens comerciais, muitas delas de concorrentes com mensagens opostas entre si.

Diz ele:

‘A injunção e a persuasão (objetivos da publicidade) levantam todas as espécies de contra-motivações e de resistências (racionais ou irracionais…), em suma, a publicidade dissuade ao mesmo tempo em que persuade’.

Eu entendo que efeito semelhante ocorre também na compreensão do noticiário, o que faz com que o noticiário ao mesmo tempo que informa, desinforma.

Em outras palavras, o efeito do excesso de informações é a neutralização da compreensão de cada uma delas pelo consumidor de notícias.

Esse efeito inclusive é bastante explorado por agentes propagadores de notícias, hoje. Uma ação bem simples mas clara é a atitude tão comum de políticos acusados de alguma falha ou delito que imediatamente passam a acusar seus concorrentes de outra falha ou delito, ao mesmo tempo. Ou empresas que geram notícias em certo momento, para criar um contravapor sobre noticiário favorável a seus concorrentes.

Dito isso, penso que não preciso ser muito mais detalhista sobre os efeitos negativos que a saturação provoca no consumidor de notícias ao exercitar sua condição de cidadão.

Esse não é o único dos riscos que corre o jornalismo neste momento, mas é certamente um dos mais dramáticos por abater de forma sistêmica a sua capacidade fundamental de informar e formar a consciência dos cidadãos dentro do regime democrático.

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Jornalista, diretor do iG (www.ig.com.br) e criador do jornal online Último Segundo (http://ultimosegundo.ig.com.br/)