Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ameaça da imprensa ‘corporate’ – 1

‘Nossa Republica e sua imprensa vão crescer ou desaparecer juntas.’ (Joseph Pulitzer, 1904)

‘Uma imprensa cínica, mercenária e demagógica vai produzir, com o tempo, um povo parecido com ela.’ (Palavras do mesmo autor, gravadas na entrada da Columbia Journalism School)

Quando estávamos, ainda, em um mundo bipolar onde as duas grandes forças divergentes atuando sobre a política mundial moderavam-se uma à outra e o capital obedecia a controles muito mais rígidos que os de hoje, a principal ameaça contra a liberdade individual vinha, em geral, do abuso do poder do Estado.

Hoje a realidade é bem outra. Desaparecida a União Soviética, instalou-se a incontestável hegemonia norte-americana que, neste momento, mostra ao mundo, no Iraque, a sua face mais espetacular e agressiva.

Mas não é esta a que mais me assusta.

Neste mundo onde – independentemente da desproporção das forças em choque – guerra nenhuma pode chegar ao fim sem que se contemple a aniquilação de populações inteiras, a expressão militar da hegemonia norte-americana pode, e provavelmente será detida pela força da sua própria opinião publica, no momento em que o custo em sangue para mantê-la ultrapassar os níveis de tolerância dados pela sensibilidade média da população.

O que, sim, parece irreversível são os efeitos negativos da expressão econômica da hegemonia norte-americana, dos quais nem seus próprios cidadãos escapam.

Num mundo em que as comunicações instantâneas puseram abaixo as fronteiras físicas e políticas e transformaram as antigas economias nacionais num sistema de vaso-comunicação planetário e único, literalmente ninguém escapa da imposição de um novo ritmo de vida determinado pelas mudanças ocorridas na economia líder do mundo.

Eles, lá, resolvem andar mais rápido, e todos nós, cá fora, temos de acelerar o passo. Trata-se, sem duvida, de uma drástica redução da nossa liberdade de escolha…

Mas ha outras ameaças potencialmente mais graves nessa mudança geral de padrão. Se no país institucionalmente melhor preparado para enfrentar seus efeitos nocivos, o impacto dessas mudanças enseja justas interrogações até sobre o futuro da democracia, a imposição desse padrão ao resto do mundo pode ter, para muitos países institucionalmente muito menos amadurecidos, um impacto devastador.

O rebaixamento geral da proteção antitruste na economia norte-americana desencadeou, nos Estados Unidos e no resto do mundo, uma nova onda de competição desenfreada e predatória e uma incoercível tendência ao açambarcamento de todos os setores por corporações gigantes. Como corolário desse processo, a quantidade de dinheiro detido ou manipulado por essas corporações se multiplicou exponencialmente e, com isto, o seu poder de corrupção. Esse efeito, somado ao estreitamento do numero de financiadores privados de campanhas eleitorais tornou explícito um perigoso jogo de cooptação entre essas corporações gigantes e o poder político.

E em nenhum setor esse fenômeno é mais visível e perigoso que no da mídia.

O ovo ou a galinha?

No subconsciente de cada homem está fixada com clareza a idéia de que na competição sem limites, ha um único ganhador. Todos os demais são perdedores. E isto explica porque, mesmo com a nova onda de afluência proporcionada por esse processo nos países melhor preparados para o novo ritmo de competição, não existe uma só pessoa, os norte-americanos incluídos, que não se sinta desconfortável e insegura com o rumo que as coisas estão tomando nessa nova economia global onde o valor relativo do indivíduo tende a ser reduzido a pó e o dinheiro é a única medida de todas as coisas.

E, no entanto, mesmo nas mais sólidas democracias, esse processo segue inexoravelmente o seu curso, à revelia de todos.

O que foi que falhou?

No caso dos Estados Unidos não ha nenhuma duvida: falhou principalmente a imprensa, que é – ou foi – a alma da democracia americana.

O processo de ‘corporatização’ da mídia nos Estados Unidos é, ao mesmo tempo, causa e consequência do exagero do processo de ‘corporatização’ da economia norte-americana como um todo e, por contaminação, do processo de ‘corporatização’ da economia global.

Só uma economia no mundo tem peso suficiente para arrastar para seus padrões de desenvolvimento todas as outras economias do mundo: a norte-americana. E só uma sociedade conta com uma democracia suficientemente forte e organizada para deter ou regulamentar esse processo: a norte-americana. Mas a imprensa – o ‘Quarto Poder’ –, ferramenta essencial de acionamento da participação do cidadão no processo decisório dos Estados Unidos, traiu a sua função essencial quando chegou o momento de debater e promover a critica de um processo do qual ela se tornou parte interessada.

A mídia foi agente, por omissão, do processo de demolição da legislação de proteção à diversidade de opiniões – talvez o segmento mais importante da legislação anti-truste dos Estados Unidos – que levou a onda avassaladora de fusões de empresas de informação e entretenimento que acabou resultando no desvirtuamento do papel da imprensa na sociedade norte-americana.

Como deter ou reverter esse desvio é problema dos mais intrincados.

A instrumentalização da mídia num ambiente que não favorece a diversidade de opiniões é um fator insidioso de subversão da moral publica que se aprofunda e se auto-alimenta, de geração em geração. E como a lógica da imprensa ‘corporate’ tende a se impor ao mundo a partir da economia líder do planeta, ela pode se transformar, com virulência proporcional à força da economia daquele país, num padrão mundial que, temo, pode vir a ser conhecido pelos historiadores do futuro como o grande ‘turning point’ que desviou a humanidade, novamente, para um rumo de servidão…

De 1975 ao Telecommunications Act

A legislação que restringia o crescimento sem limites das empresas proprietárias de rádios, TVs e jornais nos Estados Unidos foi reforçada em 1975 pela Federal Communications Comission, um órgão criado nos anos 1930, não para se preocupar com conteúdos, mas para regular o uso das concessões de frequências de rádio e, mais tarde, também de TV.

Como nos Estados Unidos a mídia começou a se organizar em redes, de jornais, primeiro, e de rádios e TVs mais tarde, desde o início do século 20, a compra de umas pelas outras começou cedo a desenhar cenários preocupantes, de controle de regiões inteiras do país por um único grupo de mídia. A legislação de 1975 – que permaneceu formalmente inalterada até junho de 2003 – visava preservar a diversidade de opinião, considerada fundamental para o fortalecimento da democracia no país, e estabelecia alguns parâmetros simples e eficazes para a consecução desse objetivo:

** Proibia que um mesmo grupo fosse proprietário de jornais e de televisões num mesmo mercado;

** Nenhuma empresa podia ser proprietária de canais de televisão que atingissem mais do que 35% da audiência nacional;

** Uma mesma empresa só podia ter dois canais num mesmo mercado se fossem canais de audiência pequena e se houvesse pelo menos mais oito canais disputando esse mesmo mercado;

** Uma mesma empresa não podia possuir mais que uma das quatro grandes redes de TV aberta numa mesma praça;

** Proibia as fusões entre as quatro grandes redes de TV;

** Limitava o numero de estações de rádio que um mesmo proprietário podia ter num mesmo mercado e impedia a montagem de redes nacionais.

Mas a idéia de que o negócio de informação, sendo um negócio que envolve poder político, deveria ser tratado de forma diferente dos outros, que sustentava o regulamento da FCC, começou a ser erodida ainda no final dos anos 1970, quando a idéia de ‘infotainment’, misturando informação e entretenimento, começou a tornar as coisas menos claras no mundo do negócio da informação e serviu de pretexto para que começassem as pressões dos grupos proprietários de mídia contra as regras de 1975.

Mais adiante, Mark Fowler, o titular da FCC de Reagan, sempre dentro do espírito geral do ‘quanto menos governo, melhor’ foi o autor da frase de que ‘as TVs não passam de torradeiras com imagem’, significando que não requeriam mais regulamentação do que elas.

Foi na esteira das mudanças aprovadas naquele momento que Rupert Murdoch montou o primeiro embrião da Fox, comprando uma série de TVs locais.

O Telecommunications Act, de Clinton, em 1996, colocou o andamento do processo de erosão dos controles sobre a propriedade da mídia em outro ritmo. Com as novas tecnologias de telefonia e internet bombando a ‘new economy’ e a ignorância e a insegurança generalizadas sobre a natureza e as implicações dos novos meios de comunicação alimentando desenfreadamente a ‘bolha’ de Wall Street, o presidente, um tanto ingenuamente, acelerou o processo de desregulamentação do setor, na expectativa de aplainar o caminho para a aceleração do desenvolvimento.

As normas mais profundamente alteradas naquela ocasião foram as relativas ao rádio. O setor passou por uma verdadeira ‘razzia’. Desde então, as operações de fusão e incorporação já envolveram 10 mil emissoras, no valor de mais de US$ 100 bilhões. Mais de 1.100 rádios foram fechadas entre 1996 e 2002, quando apenas três grandes cadeias já controlavam 80% dos ouvintes e do mercado publicitário.

Mas não pararam aí as alterações da ‘era Clinton’. Ainda dentro do espírito da ignorância geral a respeito da ‘new mídia’ (e da vergonha de confessá-la), o Telecommunications Act de 1996 introduziu um verdadeiro ‘cavalo de Tróia’ na cidadela da regulamentação da propriedade da mídia. O controvertido parágrafo 202 inverteu o ônus da prova e determinou que a FCC revisse suas regras sobre propriedade da mídia a cada dois anos ‘modificando as que não conseguisse demonstrar serem de interesse publico’.

Por essa brecha o Judiciário entrou no circuito. Desencadeou-se uma onda de processos das companhias interessadas no levantamento das barreiras à sua própria expansão. Era a época do ‘crescer ou morrer’. E cada regra que caia, beneficiando uma corporação, obrigava as demais a seguirem o mesmo caminho. A cada nova fusão, tornava-se mais fácil para o próximo candidato justificar seu pleito demonstrando que seria impossível se manter competitivo sem conseguir economias de escala iguais às do concorrente.

Para a FCC, em contrapartida, era cada vez mais difícil demonstrar a necessidade de preservar as restrições. O argumento básico das corporações era que a multiplicação dos ‘sites de informação’ na internet contrabalançava mais que suficientemente o desaparecimento em massa dos jornais e rádios locais independentes, vítimas das fusões sucessivas. Afirmava-se que eles seriam ‘competidores’ válidos dos grandes conglomerados que iam se formando. Na verdade, hoje se vê com maior clareza, a maior parte dos ‘sites de informação’ não passam de reproduções virtuais do vozerio desorganizado das ruas, incapazes de fazer qualquer coisa que se pareça com o tratamento sistemático dado à informação pelos profissionais do ramo ou, no máximo, de centros de informação e armazenamento de dados sobre temas específicos. A maior parte dos grandes ‘sites’, capazes de ‘competir’ de fato com produtos profissionais de informação são, em geral, extensões virtuais deles próprios e pertencem a esses mesmos conglomerados…

No front judicial da luta pela demolição da legislação de propriedade da mídia tornou-se célebre o chamado ‘D.C. Circuit’, tribunais de Washington chefiados por juizes conservadores ligados aos republicanos, onde a FCC sofreu as maiores derrotas com base no parágrafo 202. Sinalizado que por ali havia um caminho para furar as normas, ele passou a ser usado cada vez mais recorrentemente.

Sob as vistas grossas dos órgãos responsáveis pela legislação antitruste e o silêncio cúmplice da mídia, diretamente interessada em quebrar as barreiras, as fusões e incorporações iam acontecendo sem discussão. E cada uma que era aprovada na Justiça criava um precedente que justificava mais e maiores violações dos limites de 1975. Rapidamente, essa política de fatos consumados criou uma realidade inteiramente incompatível com esses limites, e isto virou mais um fator de pressão pela mudança para regras ‘mais realistas’…

A ‘era Bush’

Com Bush, um novo padrão de relacionamento entre o governo e as grandes corporações se instala no país. A promessa de subsídios setoriais é uma ferramenta explícita da campanha eleitoral e as denuncias de relações espúrias com grandes grupos econômicos se multiplicam. Depois da mais controvertida de todas as eleições da história dos Estados Unidos, o governo se instala sob crise de legitimidade que só seria superada pelos atentados de bin Laden, e debaixo de acusações de favorecimento pela Fox na cobertura dos lances até hoje mal explicados da votação na Flórida. (A Fox foi a primeira a anunciar a misteriosa reversão do resultado da contagem de votos no Estado governado pelo irmão de Bush que, até aquele momento, dava vitória a Al Gore).

Com a nova administração, Michael Powell, o filho de Collin Powell, chega à FCC, aos 39 anos. Ex-militar, como o pai, ele abandona a carreira das armas depois de um grave acidente de jipe quando servia na Alemanha que o põe um ano no hospital. Sai de lá para um curso de advocacia com especialização na legislação antitruste. Formado, passa a trabalhar como auxiliar de um dos juizes do ‘D.C Circuit’.

Sem currículo que justificasse tanto, torna-se o chairman da FCC em 2001.

Para cumprir os prazos legais, Powell anuncia seus planos de reforma radical das regras de 75 desde o primeiro momento. Os argumentos que usava para explicar o que pretendia fazer eram pouco inovadores:

1. que a multiplicação das fontes de informação na internet tornavam pouco importantes as regras sobre a propriedade dos meios tradicionais;

2. que as queixas contra a concentração eram, na verdade, queixas contra a qualidade da programação; e qualidade da programação não deve ser assunto do governo.

Cumprido o prazo legal, ele convoca, em 2 de junho de 2003, a votação das mudanças pelos cinco membros da FCC:

** Cai o embargo à propriedade cruzada de jornais e TVs;

** O limite para as TVs passa a ser de 45% da audiência nacional;

** Alteraram-se as exigências para a propriedade de múltiplos canais (e tipos) de TV, de tal forma que o monopólio se torna possível em quase todas as cidades do país, com exceção das megalópoles onde o limite também foi ampliado.

Só a restrição à fusão das quatro grandes redes e as regras para rádios permanecem inalteradas.

O processo todo rolou em meio à mobilização para a guerra no Iraque, acontecimento que, sozinho, já forçou mesmo a mídia independente a moderar sua posição crítica em relação ao governo Bush. Isso facilitou a omissão da imprensa ligada aos grandes conglomerados de sua obrigação de proporcionar o debate nacional da decisiva questão das regras de propriedade da mídia.

A ‘patrulha do silêncio’ que se exerceu sobre o tema foi concretamente medida pelo Project for Excellence in Journalism e outras instituições dedicadas ao monitoramento da mídia. E tomou proporções impressionantes. Alguns jornais independentes fizeram a exceção que confirma a regra. Mas na mídia de massa, a única que é capaz de mobilizar os políticos, ninguém quebrou o silêncio. As três grandes redes de TV mencionaram o assunto pela primeira vez nas vésperas da votação e, mesmo assim, em matérias pouco menos que protocolares. Tanto que 75% dos norte-americanos confirmaram que ouviram falar pela primeira vez no assunto quando as mudanças foram aprovadas. As únicas forças que se mobilizaram de fato contra as mudanças foram ONGs – em geral relacionadas a interesses minoritários – que trabalharam diretamente sobre o Judiciário e o Congresso, debaixo do lema geral de que ‘quanto maiores e mais orientados para o mercado se tornarem os conglomerados de mídia, menos espaço haverá para a veiculação de qualquer coisa que não sejam as preferências da maioria’.

O trabalho não foi em vão. A crescente adesão às manifestações por elas promovidas obrigou as televisões a dar alguma cobertura ao assunto.

Em 24 de julho de 2003, diante da pressão crescente sobre o Congresso, a Câmara aprova, por 400 votos a 21, um adiamento para a autorização de TVs atingindo mais de 35% da audiência nacional.

Em 3 de setembro de 2003, a Corte Federal de Apelação da Pensilvânia barra todo o pacote de mudanças até o julgamento do mérito de uma ação proposta pela National Rifle Association.

Em 9 de março de 2004 a Comissão de Comércio do Senado bloqueia as mudanças da FCC por 12 meses.

Enfim, essa batalha ainda não terminou e as mudanças determinadas pela FCC ainda terão de ser ratificada nas duas casas do Congresso.

[Fim da primeira parte deste texto. Clique abaixo em PRÓXIMO TEXTO para ler a segunda e última parte da matéria.]

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Jornalista, diretor do Grupo O Estado de S.Paulo