Num de seus melhores textos, intitulado ‘Sincronicidade’, Carl Gustav Jung (1875-1961) ensina a olhar mais atentamente para o que à primeira vista parecem meras coincidências: a observação acurada pode revelar latentes associações significativas entre fatos, em princípio independentes.
Assim, numa manhã qualquer, um atrasado leitor de jornal (por motivo de viagem longa) depara-se com o anúncio-manifesto de página inteira (pago por entidades patronais) sobre a progressão alarmante da criminalidade no Rio de Janeiro, juntamente com as indignadas reações de autoridades municipais e estatuais ao teor do texto; ao mesmo tempo, no jornal do dia em questão, o leitor vê na primeira página a foto de motoristas e policiais que se valem da mureta da Linha Vermelha para proteger-se dos tiros de bandidos; instantes depois, da fila de pagamento do mercadinho em frente à sua casa, ele vê passar o jipão com turistas em mais um tour de visita a uma favela da Zona Sul. Na porta do veículo, o brasão da empresa: Indiana Jungle Tours, ou seja, ‘excursões Indiana à selva’.
Por que invocar o discípulo suíço de Freud? Por que não registrar simples coincidências em três fatos que se sucedem no espaço de minutos, num contexto, o da violência no Rio, recorrente e conhecido por todos?
É que o terceiro fato, o do jipão, estabelece uma inesperada cadeia associativa com os dois primeiros, trazendo alguma luz para o fenômeno da escalada da criminalidade. São coisas suscetíveis de acontecer quando o leitor é capaz de imaginar outras possibilidades de pauta para as páginas do jornal a partir do que simplesmente entrevê em seu cotidiano. Esta capacidade só faz aumentar, na medida em que o jornalismo de internet abre oportunidades de várias naturezas para que o leitor interfira na pauta jornalística.
O percebido e o representado
A cadeia associativa de que falamos é mais ou menos o que Jung chama de ‘sincronicidade’, isto é, uma causalidade oculta para fatos desconexos entre si. É algo assim como estarmos pensando em alguém e subitamente avistamos num cartaz o prenome da pessoa e, logo depois, o sobrenome.
‘Coincidências’, alguém dirá, mas Jung não pensava necessariamente desta maneira e, dadas certas circunstâncias, tentaria demonstrar um nexo latente entre as ocorrências. Tudo isto pode ser muito especulativo, claro, mas aqui e agora nos serve para apontar a possibilidade de nexos entre fatos dispersos, devido a um contexto – muito mal trazido à luz pela cobertura jornalística – profundamente marcado pela prática e pela idéia da violência social.
Prática e idéia: é preciso bem acentuar a diferença entre uma e outra, porque, embora sejam reais e gritantes as proporções epidêmicas da criminalidade – não apenas na cidade do Rio de Janeiro (embora aqui as coisas sejam absurdamente específicas), mas em várias áreas metropolitanas do mundo –, a verdade é que existem ‘idéias’ sobre a violência de alcance maior do que a realidade factual.
Em outras palavras, uma coisa é a violência percebida ou representada, outra é a sua incidência prática. Em Londres, por exemplo, a violência é publicamente percebida e jornalisticamente representada como mínima (as advertências das autoridades visam basicamente os batedores de carteiras), quando se sabe, por numerosos relatos, que ali se registram assaltos na rua com o mesmo nível de ameaça do Rio, ou seja, com armas.
Ponto sensível
No Rio, a criminalidade e a violência são pintadas pela mídia em todas as suas cores, dos riscos das balas traçantes nos tiroteios das gangues nos morros até o vermelho-sangue dos que tombam no asfalto. Mas essa ‘pintura’ costuma isolar os incidentes, apresentando-os como faits-divers, isto é, como relatos que se auto-explicam, que não remetem a grandes causas além daquelas pequenas, relativas ao acontecimento em si.
É sabido, no entanto, que esses incidentes ocorrem sobre o fundo geral de um estado de coisas, uma mafialização continuada em que se interligam políticos, autoridades policiais e judiciárias, mas também toda uma sociedade que finge não ver a sua responsabilidade no que diz respeito ao consumo de drogas e a sua cumplicidade com uma série de ilegalismos.
Daí, o hipócrita escândalo de autoridades frente ao manifesto-anúncio da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro. Pode ser, não é desprezível a hipótese, que interesses eleitoreiros ali se fizessem presentes. O fato, porém, é que, pela primeira vez, representantes das setores dirigentes das esferas produtivas denunciam publicamente o óbvio: a violência urbana é hoje uma verdadeira questão social, assim como são questões sociais a terra, a fome e o emprego. Nas entrelinhas do anúncio-manifesto, detectam-se conexões que serviriam de bom pretexto para um jornalismo investigativo sério, se houvesse.
No silêncio geral sobre as conexões e as responsabilidades, abre-se para o leitor, entretanto, o espaço para a leitura sintomática das sincronicidades. O jipão com o letreiro ‘Indiana Jungle Tours’ em plena cidade do Rio de Janeiro, a caminho do morro com turistas de câmeras em punho, vem nos dizer que é comercializável o imaginário social (violência, perigo, aventura) sobre a favela.
O imaginário se constitui sempre como uma outra margem da realidade: o imaginário da Europa é a África. Mas por que não também a favela, ‘jungle’ sem elefantes, mas plena de fuzis Kalashnikov? Afinal, o imaginário da nossa confortável classe média também supõe que a realidade violenta dos traficantes de drogas seja uma ‘outra’ margem, com a qual a cidade legal e pagadora de impostos não teria nada a ver.
É mais ou menos isso a que nos acostumou a cobertura criminal dos jornais. Mas sabemos que não é bem assim, que é preciso invocar uma responsabilidade social mais ampla no que toca à questão da violência, que o anúncio-manifesto da Firjan tocou num ponto muito sensível. Quem for jornalista que lhe siga a trilha aberta.
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Jornalista, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro