Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre um deserto de superficialidade

Uma vida insignificante necessita ser vista, senão pelo olho de Deus que tudo vê (ou via), pelos olhos de uma multidão (ainda que igualmente insignificante), disposta a ser docilmente manipulada, embora convidada a uma pseudo-participação interativa (diga-se, lucrativa para quem a produz), num duplo consumismo, de produtos comercializados e do próprio tempo (perdido).

Afinal, não há nada mais importante a se fazer nem reflexão alguma que resista ao vazio de janeiro em que se esgotam as férias e se retorna à rotina. Melhor não pensar em nada, enquanto se espera pelo Carnaval, diante da TV, espelho invertido em que se constroem mundos para uma plateia convicta de que a vida é feita disso, aparência e segundos de fama, angariados num jogo de vale-tudo televisivo (leia-se Big Brother Brasil), que ainda convida o telespectador a migrar para uma interatividade falsa, armadilha desses novos tempos para quem não saiba filtrar, selecionar o que de melhor as ferramentas tecnológicas possam nos oferecer.

E a essa aridez existencial acrescenta-se a lógica de mercado em seu oportunismo, transformando o sujeito em objeto de seu próprio desejo (ou falta), no esvaziamento de qualquer subjetividade em troca de uma frágil segurança ofertada por programas repetitivos, apenas repaginados ou tornados ainda mais cruéis ou grotescos a fim de satisfazer a avidez de um (in)distinto público – e perguntar-se por um sentido nisso tudo seria exigir demasiada metafísica. Se antes de se decretar a morte de Deus havia, ao menos, o consolo (não sem uma dose de expiação) de uma testemunha onipresente de todos os nossos atos, por mais corriqueiros ou insignificantes, agora o que nos dá legitimidade parece ser o YouTube e a TV.

O vazio de pensamento

Diluíram-se as fronteiras entre o particular, o privado e o que é público – o ser visto por uma multidão, traduzida em acessos na internet ou pelo Ibope, na televisão, basta para validar uma existência vazia, ou simplesmente comum. O olhar que nos falta também é o que sobeja, aquilo que nos torna iguais, espectadores em busca de um sentido, todos pertencentes à mesma trupe no deserto da superficialidade.

Reside justamente aí a perversidade desse universo – na falsa impressão da individualidade, de que somos livres e agentes de nossas ações, quando na verdade somos tangidos, conduzidos, a exemplo do Big Brother, personagens representando a si mesmas, sob as intervenções (e edições) da direção do programa, através de seu interlocutor/apresentador, respondendo às premissas do jogo com aparência de realidade.

Por debaixo dessa casca de superficialidade talvez se esconda mais do que a sociedade suporte olhar (ou negue-se a ver) – uma vida de pensamento alijado de qualquer subjetividade, o individualismo exacerbado cujo objetivo é o sucesso a qualquer preço, um mundo regido pelo consumismo, ditando suas próprias regras (atreladas ao estilo de vida ou a tudo que possa ser transformado em produtos para tais demandas), enfim, as contradições da própria sociedade na configuração de seus anseios diante das premências da vida moderna, da violência cotidiana, das novidades tecnológicas, das pressões econômicas, do poderio dos grupos midiáticos e, por que não, das próprias carências sociais e educacionais.

Um panorama que se descortina (pouco a pouco), deixando à mostra a nossa mísera condição – resta saber se vamos continuar a negá-la, se vamos continuar a fazer muito barulho para não ouvir o vazio de nosso pensamento ou, ao contrário, vamos decidir humanizá-la, construindo um olhar mais crítico e livre das banalidades midiáticas, um olhar de reciprocidade e solidariedade.

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Funcionário público municipal, Jaú, SP