Nas eleições municipais de outubro do ano passado, uma vez mais deparamo-nos com a superficialidade e a inutilidade de que se reveste, cada vez mais, o conteúdo da maioria absoluta dos jornais impressos. Superficialidade e inutilidade principalmente das páginas dos cadernos destinadas ao noticiário político.
Em junho de 2004, abordei no artigo ‘Múmias de celulose e tinta’ [remissão abaixo], neste Observatório, a questão da perda crescente de credibilidade dos jornais impressos e suas causas. O artigo repercutiu, provocando acalorados debates entre profissionais da imprensa. E críticas, claro, de proprietários de jornais. Mas, de prático mesmo, pouco, ou quase nada, de toda a discussão afetou o cotidiano das redações. Seis meses depois, aquelas mesmas preocupações ainda vigem, mais avolumadas e incômodas que antes.
A cobertura – ou seria melhor dizer ‘descobertura’? – das eleições municipais pela mídia, com ênfase para a imprensa, comprovou que o processo de afastamento do jornalismo atual do interesse público é mal crônico, gravíssimo, mas incapaz de provocar reações maiores que mal-estar circunstancial e passageiro a quem dirige e trabalha em veículos impressos.
A leitura diária das matérias do noticiário político durante o processo eleitoral constituiu-se, para mim, em fermento que fez crescer a massa ácida do inconformismo com o jornalismo que se vem praticando em meu país, em meu estado, em minha cidade.
Desinteresse geral
Na maior parte das vezes, ao terminar de ler as notícias, fiquei mais desinformado e mais confuso sobre quem eram, verdadeiramente, os candidatos a um possível voto meu, tal a desimportância atribuída pelos jornais às idéias, aos ideais políticos, partidários e às fichas pessoal e profissional dos postulantes aos cargos eletivos. Impressionou-me a displicência dos editores, dos pauteiros – será que eles ainda existem e resistem nas redações? – e dos repórteres na cobertura dos bastidores dos partidos, das coligações, dos comitês eleitorais, onde realmente acontecem os fatos que interessam, de fato, aos leitores-eleitores.
Senti falta, especialmente, de reportagens de fundo sobre as articulações que levaram à configuração de cada coligação. Onde foram parar as reportagens sobre as implicações de uma aliança entre o PFL e o PT, como se fez em vários municípios, tão esdrúxulo quanto seria o resultado do cruzamento de um elefante com uma formiga? Por que não li nos jornais, por exemplo, quanto, realmente, custou e de onde veio o dinheiro que pagou o megashow da dupla Zezé di Camargo e Luciano no comício do candidato do PT à prefeitura de Cuiabá, capital de Mato Grosso? E, ainda, por que não interessou a nenhum repórter, pauteiro ou editor de política dos jornais mato-grossenses a ausência dos líderes máximos do PSDB no palanque do candidato tucano – vitorioso afinal, apesar do abandono a que se viu largado pelos maiores expoentes de seu partido – ao executivo da maior cidade do estado? São perguntas cujas respostas, quando dadas, vêm carregadas de desculpas tão inverossímeis quanto as notícias que encheram páginas e mais páginas entre julho e outubro do ano passado.
Esse desinteresse pelo cerne dos fatos, evidentemente, não é uma exclusividade da imprensa de Mato Grosso. Nos chamados ‘grandes jornais’ a realidade tem sido a mesma, excetuando-se algumas fugas da praxe aqui e ali e sempre em situações pontuais. Ninguém, nos jornais, parece querer saber além do aparente, do declarado, do proposto pelos news promotors e news assemblers aos quais se refere Nelson Traquina ao citar os estudos de Molotch e Lester sobre a organização do trabalho jornalístico e sobre a influência da imprensa na política e desta sobre a imprensa.
Sanidade comprometida
Se quem tem a informação como meio de sobrevivência não considera a essência desta importante, é legítimo que se pergunte então: para que publicar, divulgar, massificar qualquer fato? E também: para que servem os jornais? A resposta o leitor já vem dando de forma contundente ao deixar que jornais e revistas envelheçam em bancas e pontos de venda.
Para os donos de jornais nestas plagas interioranas do Brasil, a redução do número de leitores é tema-tabu mais que no litoral, creio eu. Aqui se estabeleceu como regra pétrea não-escrita o segredo sobre o número de assinantes, de exemplares impressos e sobre toda informação que possa levar à simples estimativa de quantos são os leitores de cada veículo. Protegidos assim, os jornais da capital e os de maior regularidade de edições no interior do estado seguem vivendo de publicidade e benesses do governo do estado, da Assembléia Legislativa e das prefeituras. E não competem entre si por absoluta falta de necessidade, já que todos se mostram satisfeitos com os quinhões que recebem dos patronos públicos. Nesse contexto, paradoxalmente, os leitores, a quem os jornais deveriam unicamente servir, acabam alçados à condição de elemento estranho e incômodo, de ruído, na cadeia de comunicação imprensa-política-imprensa-sociedade.
Esse fenômeno impõe a necessidade de uma reflexão mais apurada sobre o papel que a mídia impressa passará a desempenhar, em espaço relativamente curto, na sociedade deste começo de século. Se até o fim da primeira metade do século 20 a imprensa, conforme registrou Ciro Marcondes Filho em seu excelente A saga dos cães perdidos, espelhou com rara exatidão a sociedade, nestes primeiros anos do século 21 ela dá sinais de que a ‘síndrome de Narciso’ que a acomete está lhe comprometendo seriamente a sanidade. Ou não é uma espécie de loucura os donos de jornais e jornalistas insistirem em ignorar os leitores para não desviarem um segundo sequer a atenção de seus próprios umbigos?
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Jornalista, presidente eleito do Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso