Doha, 1996. A capital do emirado do Catar, pequeno país de menos de 1 milhão de habitantes, mas riquíssimo graças às reservas de petróleo e de gás, via nascer al-Jazira (‘A península’, em árabe), um novo canal de televisão all news dirigido ao mundo árabe. Financiada pelo emir do Catar, um aliado dos Estados Unidos, al-Jazira foi vista inicialmente pelos americanos como uma arma estratégica da política externa de Washington, que pretende democratizar progressivamente a região segundo o projeto ‘Grande Oriente Médio’. Mas o tiro saiu pela culatra, e o canal mais visto no mundo árabe tornou-se uma enorme pedra no caminho da política americana para a região.
Essa história do feitiço que se virou contra o feiticeiro é contada, com riqueza de detalhes que revelam uma sólida pesquisa, no excelente livro da cientista política Olfa Lamloum, Al-Jazira, miroir rebelle et ambigu du monde árabe (Al-Jazira, espelho rebelde e ambíguo do mundo árabe), recém-publicado na França pela editora La Découverte. Al-Jazira revolucionou o campo midiático árabe, com seus 450 jornalistas de 15 nacionalidades trabalhando em 23 escritórios pelo mundo, 70 correspondentes, 24 boletins de informação por dia e sete programas de debate ao vivo. Atualmente, o canal transmite exclusivamente em árabe, mas o site é bilíngüe, em inglês e árabe. Até o fim deste ano, al-Jazira vai inaugurar um canal inteiramente em inglês, o que promete ainda mais dor de cabeça para os americanos, pois sua audiência deverá crescer sensivelmente.
Grandes furos internacionais, preocupação com as diversas visões do mesmo acontecimento, independência editorial suficiente para pôr no ar dissidentes de todos os governos árabes. Não por acaso, a Jazira foi o único veículo de comunicação na lista das ‘100 personalidades mundiais mais influentes’, publicada em abril de 2004 pela revista Time. A revista justificou a escolha pelo ‘poderoso vento de transformação’ que o canal leva a um mundo árabe até então confinado à mídia que se limitava a repetir os discursos oficiais.
Avaliação caricatural
Com a criação do canal, cujo presidente do conselho de administração é ninguém menos que o primo do emir do Catar, os EUA perderam o monopólio da imagem na segunda guerra do Golfo. Esse monopólio fora exercido na primeira guerra, quando o mundo inteiro ficou dependente da versão da CNN, contada pelo repórter Peter Arnett, único jornalista autorizado a permanecer em Bagdá na época.
Na segunda guerra do Golfo, o tratamento da guerra e seu propósito tiveram novo filtro para os países árabes: Al-Jazira, o canal de televisão mais visto no mundo árabe fazia uma cobertura independente, com imagens exclusivas, e dava da guerra uma interpretação diferente da que a CNN e os demais canais americanos ofereciam. A ‘guerra de libertação’ se transformava em ‘guerra contra o Iraque’ e as forças americanas eram apresentadas como ‘forças de invasão’. Os efeitos colaterais da guerra, com a morte de milhares de civis, inclusive crianças, foram mostradas ao mundo pela Jazira, enquanto os jornalistas americanos embedded mostravam a versão oficial das batalhas. As imagens da guerra deixaram de ser um monopólio e al-Jazira começou a incomodar ao revelar que os ataques de pretendida ‘precisão cirúrgica’ faziam, na verdade, milhares de mortos civis.
‘Meu livro é de certa forma uma crítica da avaliação caricatural da rede feita na França. O estudo que fiz sobre o significado de al-Jazira é estimulante para explorar as evoluções, as brechas e os desequilíbrios do pós-Guerra Fria no Oriente Médio’, explicou a autora ao jornal L’Humanité.
‘O canal de bin Laden’
O slogan do canal de notícias 24 horas, ‘As duas versões do fato’, mostra que a Jazira pretende ter apenas compromisso com a notícia, dando todas as versões contraditórias. O canal quer que o telespectador tire suas próprias conclusões. E essa preocupação é tal que alguns países árabes de regimes mais fechados, como Tunísia, Síria e Arábia Saudita, não permitem a instalação de escritórios da Jazira, a primeira televisão árabe a escapar à censura dos regimes autoritários do Oriente Médio. Todo mundo já tentou calar a Jazira: depois do lançamento do canal, mais de 500 queixas contra ele já foram dirigidas ao governo do Catar. A rede chega ‘ao cúmulo’ de criticar a aliança do Catar com os Estados Unidos – que têm base militar no país – e apontar crimes contra os direitos humanos no próprio emirado. Liberdade de crítica nunca antes vista no mundo árabe, acostumado a verdades únicas e oficiais.
Essa independência só pode desagradar a gregos e troianos. Não foi por acaso que os escritórios da Jazira foram bombardeados pelas forças americanas em Cabul, em 2001, e em Bagdá em 2003. O escritório palestino de Ramala foi bombardeado pelo exército israelense em 2002. Dos dois primeiros bombardeios escapou por pouco o repórter Tayssir Allouni, uma estrela do canal, autor de uma entrevista exclusiva com bin Laden, exibida logo depois do 11 de setembro de 2001.
No dia 7 de outubro de 2001, menos de um mês depois dos atentados do 11 de Setembro e algumas horas depois do início dos bombardeios no Afeganistão, Tayssir Allouni, então correspondente em Cabul, anunciou ter uma fita de vídeo do inimigo número um dos Estados Unidos. Pouco depois, al-Jazira levou ao ar uma declaração de bin Laden, na qual o chefe da rede al-Qaeda jurava ‘por Deus que os Estados Unidos da América nunca mais saberão o que é segurança até que a Palestina se torne segura e que os exércitos ocidentais se retirem dos lugares sagrados’.
Essa imagem correu mundo e marcou a consagração mundial do canal. Acusada de ser ‘o canal de bin Laden’, por ter dado voz ao líder da al-Qaeda, al-Jazira apenas ‘autorizou-se a contestar o monopólio dos Estados Unidos e de sua representação midiática’, segundo a autora do livro.
Apoio da maioria
Aquela, no entanto, era a segunda entrevista que bin Laden dava à emissora. A primeira fora em 1998, para desmentir seu envolvimento nos atentados às embaixadas americanas do Quênia e da Tanzânia e para aprovar os dois atentados. Por pressão dos Estados Unidos, essa entrevista não fora mostrada na época. Foi divulgada apenas em junho de 1999 e reprisada em 2001. Em janeiro de 2001, al-Jazira mostrara seqüências exclusivas do casamento do filho de bin Laden, na cidade de Kandahar (Afeganistão). Segundo Olfa Lamloum, se al-Jazira ‘é a janela que permite a bin Laden falar ao mundo’ é porque existe uma concordância de interesses entre o canal e o chefe da al-Qaeda.
A partir do 11 de setembro de 2001, al-Jazira mirou na figura de bin Laden para se destacar e se impor regionalmente e internacionalmente. Com isso, ela se tornou a televisão mais controvertida do Hemisfério Sul e ganhou credibilidade entre o público árabe e muçulmano.
Pesquisa do Pew Research Center, de maio de 2003, confirmou a simpatia de que bin Laden desfruta em diversos países árabes: 71% dos palestinos o apontaram como a figura internacional que inspirava mais confiança; 49% dos marroquinos o apontavam em segundo lugar, 45% dos paquistaneses também o apontaram em segundo lugar. Para os jordanianos, bin Laden vinha em segundo lugar, com 55% dos votos, logo após Jacques Chirac, que teve 61% dos votos.
Outras pesquisas mostraram que no mundo árabe bin Laden e suas posições sobre a Palestina e o Iraque são apoiadas pela grande maioria das pessoas.
Processo na Justiça
Para al-Jazira, portanto, dar voz a bin Laden faz parte da promessa de seu slogan. Seu pan-arabismo impediu que al-Jazira elegesse os atentados do 11 de setembro e seu autor como o ‘Mal absoluto’. Bin Laden é o ‘chefe da organização al-Qaeda’, ela o define, uma das partes de um conflito internacional que deve ter direito a se expressar, exatamente como seus adversários.
Segundo o chefe do escritório de Washington do canal, al-Jazira jamais divulgou um vídeo de bin Laden sem ter nos seus estúdios de Washington uma autoridade americana, um analista ou editorialista para responder ponto a ponto a todas as acusações do ‘chefe da organização al-Qaeda’.
Para contrabalançar a mensagem de bin Laden, Colin Powell, Condoleezza Rice, Paul Bremer, Donald Rumsfeld falam aos correspondentes de al-Jazira a qualquer momento. O primeiro-ministro britânico, Tony Blair, recebeu o canal do Catar para entrevista exclusiva em sua casa, no número 10 da Downing Street, em 7 de outubro de 2001, dia em que os aliados começavam os bombardeios ao Afeganistão.
O jornalista Tayssir Allouni, autor da entrevista com bin Laden logo depois do 11 de setembro e correspondente na Espanha há alguns anos, está respondendo na Justiça a uma acusação do juiz espanhol Baltasar Garzón de cumplicidade com a nebulosa al-Qaeda.
Modelo vitorioso
O sucesso mundial de al-Jazira desencadeou a afirmação da identidade regional através de outras redes de televisão que foram sendo criadas.
Lançada em fevereiro de 2003, a al-Arabiya (a árabe), formada de capitais sauditas do Middle East Broadcasting Center (MBC), pretende concorrer com al-Jazira na cobertura dos acontecimentos mundiais com uma visão pan-arábica. Mas, por ser formada por capitais ligados à monarquia saudita, não pode ter a mesma liberdade da concorrente. Al-Alam (o mundo) é o canal de informação 24 horas controlado pela televisão pública iraniana. Lançado em fevereiro de 2003, tem sede em Teerã.
Depois de ter tentado em vão ter seus programas da Voz da América divulgados pela al-Jazira e para contrabalançar sua influência no mundo árabe, os Estados Unidos criaram um canal de informação em árabe chamado al-Hurra (A liberdade). Lançado em fevereiro de 2004, esse canal é alvo de todas as críticas do público antiamericano.
Um israelense estudioso da mídia árabe acha que todos os novos canais seguem o modelo vitorioso de al-Jazira: ‘O que existe é al-Jazira e suas irmãs. Ela criou um modelo que as outras tentam reproduzir. Até quando querem se afastar dele estão se posicionando em relação a ela, dentro de sua força de atração’.