Seria fazer muito pouco de nossa imprensa imaginar que a ideia já não tenha ocorrido ao menos a um jornalista e não tenha corrido ao menos por uma redação, mesmo no clima de carnaval da vitória desses últimos dias.
A ideia é sobre a parte que cabe à mídia para tornar possível o que interessa acima de tudo na realização das Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro: a oportunidade sem precedentes até onde a memória alcança de mudar a cidade para mudar a qualidade de vida da população carioca.
Uma coisa é preparar a cidade para os Jogos em sentido estrito. Outra coisa, porque não quer dizer necessariamente o mesmo, apesar dos muitos pontos em comum, é fazer da cidade, aproveitando o embalo e os bilhões que vão rolar no processo, um lugar decente para todos quantos precisem disso, a começar dos pobres.
É razoável supor que o modo como a mídia participar da repaginação do Rio para atender aos compromissos assumidos pelo Brasil em Copenhague pode fazer diferença no campo social.
Pode fazer também diferença para a história do jornalismo brasileiro.
Claro que a incumbência primeira é do Globo – o único jornalão que sobreviveu no Rio. Ah, a falta que fazem o Jornal do Brasil de outros tempos, o Correio da Manhã… Mas isso não quer dizer que a Folha e o Estado de S.Paulo estejam confinados a serem figurantes nessa história.
Na TV e no rádio, o mesmo vale para as outras redes, além da Globo.
Mas, afinal, do que se está falando?
Está se falando de a imprensa se apetrechar para uma operação de longo prazo, absolutamente incomum portanto, que deveria ir além da melhor cobertura concebível do que o poder público decidir fazer e fizer para tornar o Rio uma cidade olímpica.
A operação começaria por revisitar sistematicamente as grandes mazelas cariocas. Imagine-se uma força-tarefa de jornalistas criada para planejar, coordenar e publicar a partir de 2010 a mais ambiciosa sequência de reportagens sobre o “estado da arte” dos conhecidos desastres cariocas – da crise dos serviços de infra-estrutura urbana à degradação ambiental e, naturalmente, à criminalidade.
Imagine-se o jornal, ao mesmo tempo, extraíndo o sumo do sumo dos melhores especialistas em cada um desses problemaços e recorrendo, por meio de tudo que a internet tem a oferecer, a todos quantos acreditem que tenham algo a dizer a respeito, não só para dissecar as questões, mas para apontar em cada caso as possíveis portas de saída – capazes de ser abertas no preparo do Rio para 2016 com as chaves douradas dos R$ 28,8 bilhões que o poder público promete gastar nessa empreitada.
Imagine-se ainda um trabalho também sistemático de confronto entre os projetos dos governos e os que a imprensa, pelo que tiver apurado, considerar que aqueles não contemplam (ou contemplam pela rama), sempre de uma mesma perspectiva: a dos ganhos sociais que devem proporcionar.
Por que um jornal, calçado nas melhores análises disponíveis e com a participação dos seus leitores, não deveria pressionar por mudanças nas decisões oficiais, se essas forem consideradas erradas ou insuficientes?
Imagine-se por fim (ou não necessariamente por fim) o jornalismo tomar para si, por intermédio de quem entende dessas coisas, a auditoria dos investimentos decididos – com base nas informações cuja divulgação a própria imprensa tiver conseguido assegurar, batendo nessa tecla desde a primeira hora: agora.
Gritar “pega, ladrão”, a mídia brasileira até que faz, valendo-se dos flagras do Ministério Público ou dos Tribunais de Contas. Mas, nesse cenário, o alarme, quando for o caso de acioná-lo, viria depois do alerta sobre as oportunidades que os governos estariam deixando de aproveitar (por uma pá de razões que também deveriam ser expostas) para transformar as condições de vida da maioria.
É um trabalho para durar, metaforicamente, até a chegada da tocha olímpica. Por aí já se vê a dificuldade: jornalistas não são de fazer planos – e cumpri-los – para um período desse tamanho. No Brasil, o futuro para o qual a imprensa se prepara é o das eleições do ano que vem. Depois dos resultados, ela vai planejar a cobertura dos primeiros meses do novo governo. Tais são os horizontes naturais da mídia.
Dá para estendê-los, ou assim o blogueiro quer acreditar, correndo o risco de passar por ingênuo, pensando numa analogia. Na área pública, existem políticas de governo e políticas de Estado – estas, feitas para sobreviver ao entra-e-sai dos governantes de turno. Seria absurdo um órgão de imprensa criar uma “política de Estado” – definições, metas, ações continuadas no universo da informação – para lidar com o formidável potencial de um evento como os Jogos do Rio?
Fica a provocação.