Os grandes jornais brasileiros de hoje não têm do que se envergonhar pelo tratamento dado ao acontecimento que é manchete nos quatro cantos do mundo – o relatório da ONU sobre o aquecimento global, divulgado ontem em Paris [e cujos pontos mais fortes, antecipados pela imprensa de diversos países ao longo de janeiro, foram destacados neste blog em sucessivos textos nos últimos dias].
A Folha, ágil como sempre, saiu com um caderno especial de oito páginas que merece ser lido, pensado e guardado. O Globo, além de seis páginas de densa cobertura, foi o único a publicar também um editorial a respeito [leia abaixo]. O Estado foi mais modesto, com apenas quatro páginas. E sua manchete – ‘Aquecimento global é irreversível’ – contém um sério problema.
Ela é tecnicamente certa – e jornalisticamente discutível.
Certa porque o aquecimento global e os seus efeitos catastróficos já ocorridos e em vias de ocorrer não podem ser revertidos, afirma categoricamente o relatório científico da ONU.
O aumento da temperatura desde o século passado e o cortejo de desgraças que isso vem provocando e continuará a provocar são fatos consumados ou prognósticos com mais de 90% de chance de se confirmar.
Não há como desaquecer a atmosfera, ‘desderreter’ as geleiras, diminuir a frequência das ondas mortais de calor que se reproduzem em toda parte, baixar a intensidade dos furacões, ciclones e outras alterações dramáticas do clima terrestre. Assim como não dá para recolocar a pasta de dentes no tubo de que foi espremida.
Mas a manchete é problemática na medida em que induz o leitor a crer que o apocalipse já se consumou e não há nada mais a fazer se não esperar que se desenrolem as suas consequências, por causa das quais o mundo já não é nem será mais o mesmo – literalmente.
Compare-se o ‘Aquecimento global é irreversível’ do Estado, com ‘Painel científico da ONU diz que aquecimento global é inequívoco’, do New York Times. Ou com ‘Cientistas prevêem futuro sombrio para a Terra’, da Folha.
O termo ‘irreversível’ – usado também no sub-título da principal matéria do Globo sobre o relatório – é entendido pelo senso comum como uma fatalidade inexorável. Não é apenas o presente que não tem remédio: o futuro também não.
Ora, não é bem isso o que dizem os cientistas. Eles prevêem, sim, o ‘futuro sombrio’ destacado na apropriada manchete da Folha. Mas esse futuro pode ser relativamente pouco sombrio, médio sombrio ou muito sombrio, conforme os diversos cenários abrumadores traçados pelos climatologistas.
O futuro será muito sombrio se até o ano 2100 o aquecimento chegar a 4 graus; médio sombrio, se alcançar 2,8 graus; e menos sombrio se ficar em 1,8 grau. Vai sem dizer que cada resultado produzirá efeitos não só menos ou mais cataclísmicos, mas também qualitativamente diferentes para o futuro da natureza e da vida humana como a conhecemos. E vai sem dizer que mesmo a hipótese dita ‘otimista’ é deprimente.
Depende das pessoas, das sociedades e dos governos – pelo que fizerem ou deixarem de fazer principalmente nos próximos 10 anos, segundo os cientistas – que se concretize esse ou aquele cenário.
Ora, a palavra ‘irreversível’ pode ser entendida como um breve contra a ação, um convite à resignação. Em texto anterior, citei a advertência de Al Gore no filme ‘Uma verdade inconveniente’. O pior que pode acontecer, diz ele, é passarmos da descrença à desesperança.
Bem pensadas as coisas, a desesperança pode ser um bom negócio.
As megacorporações do petróleo – as que têm mais a perder com uma mudança rádical no padrão de uso de energia e no estilo de vida das populações – fizeram tudo que sabiam e mais alguma coisa para levar as pessoas a descrer do aquecimento global.
Quando isso já não deu, repetiram a dose para levar as pessoas a descrer que o aquecimento global fosse produto da ação humana.
Agora que perderam essa homérica batalha – como mostra hoje a mídia mundial, ao gritar que ‘O homem muda o planeta’ (Globo) – a indústria do petróleo, abraçada aos políticos, autoridades, governos, sistemas de informação e à infinidade de setores econômicos seus aliados agarra-se com todas as forças à esperança de fazer as pessoas se desesperar.
Já que é tudo ‘irreversível’ mesmo, para quê mudar? Vamos manter os padrões irracionais, mas brutalmente lucrativos, de produção, consumo e desperdício, até o Juízo Final. Que a orquestra continue tocando enquanto o Titanic afunda.
Em vez de lançar a proverbial profecia que se cumprirá por si mesma – ainda que inadvertidamente, como decerto foi o caso do mancheteiro do Estadão -, toda a ênfase possível e imaginável deve se concentrar no muito que ainda é possível fazer para evitar o pior do pior dos mundos.
E isso não é posição ideológica, doutrinação, ou coisa que o valha. É jornalismo objetivo.
Porque não são os fundamentalistas do verde, mas é o relatório em que trabalharam 2.500 cientistas de 130 países que diz, em muito mais palavras, o que o Globo resumiu em definitivas quatro, na primeira página e entre aspas: ‘É preciso agir já’.
Esse é o idêntico recado dos editoriais de jornais tão diversos como o Globo e o Guardian, de Londres. [Surpreendentemente, a página de editoriais do mais importante diário do mundo, o New York Times, hoje se omitiu.]
‘O diagnóstico está efeito e as dúvidas dissipadas: resta agir’, exorta o Globo. ‘O tempo para fazer isso’ [cortar as emissões de gás carbônico] é agora’, convoca o Guardian.
Eis os principais trechos dos dois textos. Primeiro, os do editorial brasileiro, intitulado ‘Sinal de alarme’:
‘[A conclusão dos cientistas] deixa claro o rumo a ser seguido – o mais estrito controle da emissão de gases – para que se possa contar em alguma proporção os resultados negativos do processo de aquecimento. […] É preciso comprender, contudo, que o prazo é cada vez mais curto. […] O relatório da ONU é um sinal de alarme. Os próprios cientistas que o elaboraram falam em situação, mais do que de crise, de emergência. Nas palavras do presidente Jacques Chirac, não é mais hora de meias medidas, mas de uma verdadeira revolução. […] Resta agir.’
Agora, as passagens mais significativas do editorial ‘Sem mais desculpas’, do Guardian.
‘Seria fácil ficar deprimido pelo quarto relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudança Climática. A linguagem usada no relatório, a destilação do trabalho de 2.500 cientistas, é muito mais carregada de maus presságios que o seu esforço de 2001. […] Mais assustador ainda, apesar do que argumenta o bando cada vez menor dos que negam a mudança climática, é a circunspecção do relatório. […] O que sabemos é simples: a mudança climática é muito provavelmente causada por emissões de carbono. A resposta é cortar essas emissões. O tempo para fazer isso é agora. Mesmo que nada se possa fazer em relação aos danos que já estão acontecendo, isso só deveria levar os que têm poder de decisão a redobrar os seus esforços.’
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