Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que o leitor deveria saber e o que ele quer saber

Boa idéia, a do Estado, de chamar a atenção do público brasileiro para o formidável evento de mídia que tem sido a história do desaparecimento – seqüestro? filicídio culposo ou doloso? – da menina Madeleine McCann, na noite de 3 de maio, quando estava para fazer 4 anos.

Para quem acabou de chegar de Marte:

Madeleine é – era? – a filha mais velha de um casal de médicos escoceses, Gerry e Kate McCann, radicados em Londres. Eles têm um par de gêmeos, com 2 anos.

Madeleine sumiu em Portugal, mais exatamente do resort Ocean Club, em Portimão, no Algarve, onde a família passava férias. Na versão dos pais, eles deixaram as crianças dormindo e foram jantar com vizinhos. De tempo em tempo, davam um pulo em casa para checar se estava tudo bem. Quando voltaram de vez, só encontraram os gêmeos.

Moveram mundos e fundos, literalmente, para encontrar – “encontrar”? – a pequena Madeleine.

Coisa de duas semanas atrás, a polícia portuguesa os declarou suspeitos do desaparecimento, por causa de fluidos corporais e cabelos achados no porta-malas de um carro que o casal alugou 25 dias depois do sumiço.

Ontem, no Estadão, a jornalista Marina Chiavegatto escreveu que “o caso transformou-se no maior fenômeno de mídia das últimas décadas”.

A rigor é o segundo maior. O primeiro continua ser a história da inglesa Diana Frances Spencer, que começou como um conto de fadas midiático quando ela se casou com o príncipe Charles, em 1981, virou folhetim quando o casamento fez água, uns 10 anos depois e acabou em tragédia apoteótica em 1997, quando ela morreu em acidente e foi alçada aos céus pela imprensa de massa como a “princesa do povo”.

Tudo o que ela fez nesses anos foi em parceria tácita com a mídia. Para a mídia.

Gerry e Kate McCann, apoiados por um aparato de marketing que Lady Di reconheceria na hora, foram adotados pela mesma mídia britânica que canonizou a ex-mulher do filho da rainha que a detestava.

E essa mídia é um caso único no mundo. Nem os Estados Unidos têm tantos diários de circulação nacional como as Ilhas: uma dúzia, entre jornais de qualidade como o Financial Times e o Guardian, e pasquins como o Sun – por sinal, o mais lido diário em língua inglesa do globo.

Enquanto os McCann mediatizavam em escala dianesca o desaparecimento de Maddy – a lourinha da primeira página de todos os tablóides, a filhinha de uma nação inteira – tudo seguia nos conformes.

Para a imprensa, o único risco que rondava o negócio – uso a palavra de propósito – era um dia sem fatos novos vir depois de outro igual e anteceder mais um. Desse perigo, porém, a mídia foi salva pela polícia portuguesa.

A salvação tem custado aos editores noites insones. O motivo é a virtual impossibilidade de saber como lidar com os pais oficialmente sob suspeita. Continuar a tratá-los como vítimas inocentes – e acusar os portugueses de incompetentes, quando não de preconceituosos? Ou comprar a acusação com anzol e tudo, e partir para o velho e bom linchamento de que o tabloidismo britânico é mestre?

A primeira alternativa tinha um inconveniente: perder os vazamentos “em off” proporcionados pelos policiais de Portimão com a prodigalidade dos seus colegas federais brasileiros. A mídia sensacionalista portuguesa, a propósito, está a fazer uma festa.

A segunda era uma roleta-russa: vai que acham a menina e nesse caso o prejuízo dos linchadores pode ser catastrófico.

Claro que a terceira via é não fazer nem uma coisa nem outra, mas noticiar os fatos ostensivos e tentar apurar criteriosamente. Só que a imprensa em geral está habituada desde criancinha a funcionar sob o signo da polaridade: o preto e o branco, o mocinho e o bandido.

Como falar de um casal que pode ser o supra-sumo da criminalidade familiar ou pai e mãe que há quase meio ano talvez vivam o inferno de não saber o paradeiro da filha, tendo tudo para temer o pior?

Sem esquecer que eles já se tornaram “gente de casa” para todo um país.

Disso se ocupa o colunista Jonathan Freedland, do Guardian, cujo artigo de quinta passada a respeito o Estadão teve o estalo de dar domingo junto com a matéria “Caso Madeleine é fenômeno de mídia”. [Adiante, a íntegra dos dois textos.]

Jornais sérios como esse enfrentam ainda um outro dilema. Como atrair as pessoas para os assuntos que elas precisam acompanhar quando estão hipnotizadas pela tragédia familiar dos McCann?

Eis um permanente desafio para os jornalistas que se dão o respeito, ainda mais num setor em crise e, por isso mesmo, engolfado por feroz competição, como na Grã-Bretanha.

Na grande ordem das coisas – eles sabem perfeitamente bem – muito mais importante, na semana passada, por exemplo, foi o fiasco do enésimo relatório oficial americano, este do general David Petraeus, querendo tapar com a peneira esgarçada as verdades do horror iraquiano. Mas o diabo é que os seus leitores não estão nem aí para isso: o que eles querem, sem cessar, são as coisas mais mínimas sobre os McCann.

É disso – e não do Iraque – que os leitores falam. E esse é um critério para decisões editoriais que se pode abominar, mas tem tudo a ver com a vida real.

Jornalisticamente, a história de Madeleine leva às últimas consequências as tais das situações labirínticas em que convivem oportunidades e riscos, umas e outros de bom tamanho.

Para tirar proveito das primeiras, há um caminho errado e um caminho certo. O certo é tentar contornar os riscos. O errado é ignorá-los. A imprensa britânica tateia entre uma coisa e outra.

A reportagem do Estado

“A garota britânica Madeleine McCann desapareceu na noite de 3 de maio, às vésperas de completar 4 anos, de um quarto do Resort Ocean Club na Praia da Luz, no sul de Portugal. Seqüestro, homicídio, morte acidental – seja qual for o desfecho, o caso transformou-se no maior fenômeno de mídia das últimas décadas. Gerry e Kate McCann, os pais da menina, conseguiram mobilizar a imprensa mundial, governos de três continentes e celebridades como o jogador David Beckham e a escritora J.K. Rowling para o drama. Criaram um site com fotos da filha para centralizar informações e arrecadaram mais de US$ 2 milhões em doações para buscar pistas da menina. Até o papa Bento XVI foi filmado ao lado do casal, abençoando uma foto de Madeleine no Vaticano.

Há dez dias, quando passaram a ser considerados oficialmente suspeitos pelo sumiço de Madeleine, a imagem de pais obstinados de Gerry e Kate começou a ruir. A polícia portuguesa investiga a hipótese de que a menina tenha sido morta acidentalmente pelo casal. Segundo versões da imprensa portuguesa e britânica, Madeleine teria sido sedada pelos pais – como os irmãos gêmeos de 2 anos -, para que pudessem jantar com três casais no restaurante do resort.

Para tentar fazer as atenções voltarem-se novamente para as buscas por Madeleine, a família, que diz acreditar que ela esteja viva, lançará uma campanha de anúncios em TVs e jornais europeus, que custará US$ 160 mil. Financiados com parte das doações recebidas, os anúncios ´recordarão a todos que Madeleine ainda está desaparecida´, disse ontem seu tio, John McCann.

Antes de serem apontados como vilões, Gerry e Kate tinham conseguido algo raro – manter o caso no primeiro plano da mídia mundial por quatro meses consecutivos, apesar da falta de informações novas. Seu drama, afinal, não era inédito: centenas de crianças desaparecem todos os anos em vários países. No site de busca Google, Madeleine é citada em mais páginas do que ídolos do esporte como Fernando Alonso, Maria Sharapova e Roger Federer. Uma explicação está no perfil dos pais. Gerry e Kate, de origem escocesa, são um casal típico de classe média. Ambos são médicos e têm 39 anos. Eles se conheceram em Glasgow quando trabalhavam na mesma clínica. Casaram-se em 1998 e, depois, se mudaram para Leicestershire, no centro da Inglaterra. Os três filhos nasceram após fertilização in vitro.

O silêncio da polícia portuguesa sobre as investigações contribuiu, involuntariamente, para a repercussão do caso. Irritados com essa linha de atuação – a polícia recusou-se a divulgar até a roupa que a menina usava quando desapareceu -, os pais decidiram buscar ajuda no exterior. No dia seguinte ao sumiço da filha, telefonaram para Jill Renwick, uma amiga na Escócia, que contactou a TV Sky News.

Dois dias depois, a empresa dona do resort enviou um porta-voz, Alex Woolfall, para ajudar o casal. Por duas semanas, ele foi responsável pela estratégia de comunicação dos pais de Madeleine. Foi dele a iniciativa de mobilizar celebridades como Beckham, que gravou um vídeo pedindo ajuda para localizá-la. Passados alguns dias, fotos da menina eram espalhadas pela Europa. Gerry criou um site para colher informações sobre a filha (www.findmadeleine.com).

Enquanto isso, em Glasgow, a amiga Jill conseguia se aproximar de um vizinho importante, John Brown – irmão do então ministro das Finanças, Gordon Brown. A atuação do governo britânico foi decisiva. Primeiro, com o envio de uma experiente porta-voz, Sheree Dodd, no lugar de Woolfall. Depois ela foi substituída pelo ex-repórter da BBC Clarence Mitchell – que conseguiu tornar os McCanns presença obrigatória nos telejornais. Quando a falta de novidades ameaçava esfriar o interesse da mídia, Mitchell criou braceletes amarelos com a inscrição ´Encontre Madeleine` e pôsteres da menina que podiam ser comprados pelo site – que teve 50 milhões de acessos em dois meses.

Foi dele também a idéia de levar o casal para um tour por Espanha, Alemanha, Holanda (países de onde vieram turistas hospedados na Praia da Luz), além do Marrocos. O encontro com o papa, por sua vez, foi articulado por meio de autoridades católicas em Londres. Os McCanns foram a Roma no jato emprestado pelo empresário Philip Green.

Em julho, Gerry e Kate trocaram mais uma vez de assessoria de imprensa. David Hughes e Justine McGuinness assumiram em meio aos primeiros rumores de que o casal estaria por trás do sumiço da menina. Após o indiciamento, no dia 7, Gerry e Kate voltaram à Inglaterra para preparar a defesa e tentar reorganizar a vida. Na quinta-feira, a principal assessora de imprensa, Justine, pediu demissão alegando ´sobrecarga de trabalho´.”

O artigo do Guardian

“Visite o website da Sky News e você verá, no menu de tópicos, o título “Madeleine” entre as “Notícias da Grã-Bretanha” e as “Notícias do Mundo”. A história cresceu tanto que mereceu uma categoria só para ela, com a mesma importância das notícias de política ou economia. Não há, obviamente, necessidade alguma de fornecer um sobrenome ou qualquer outro detalhe: Madeleine refere-se a algo que se está convertendo, sem dúvida, na maior reportagem com apelo humano da década.

Não são apenas as atualizações de hora em hora no noticiário da TV ou os programas de rádio que põem no ar a opinião dos ouvintes. Um indicador mais confiável é o falatório nos escritórios, pontos de ônibus ou metrô. Graças à espantosa reviravolta dos últimos dias, a conversa coletiva britânica é sobre o desaparecimento de Madeleine McCann, uma história cada vez mais estranha.

Antes mesmo das revelações da semana retrasada, o caso já estava no centro das atenções. É o que sempre ocorre com o rapto e assassinato de crianças. Tememos esses crimes como nenhum outro; eles acordam medos profundamente enraizados no solo cultural. O seqüestrador de crianças é uma criatura mitológica, vinda das mais antigas lendas gaélicas, de Chapeuzinho Vermelho ou João e Maria. Em maio, quando surgiu a notícia de que uma criança havia desaparecido de sua cama num resort português, todos esses medos familiares foram despertados.

A idéia de que um estranho havia raptado Madeleine era aterrorizante, mas descomplicada: sabíamos como nos sentir. No entanto, a decisão da polícia portuguesa de considerar suspeitos os pais da menina obriga-nos a encarar não um medo antigo, e sim um tabu sombrio: o infanticídio.

A dura realidade, sem dúvida, é que histórias de pais que matam seus filhos pequenos são muito comuns. O namorado que espanca o filho da amada até a morte virou um ingrediente pavoroso do boletim de notícias, normalmente em segundo plano. A tentação da classe média nesses casos é confortar-se com o pensamento de que essas famílias são problemáticas, não são iguais às suas. A qualificação dos McCanns como suspeitos não permite essa resposta preguiçosa. Sua campanha teve tanto apoio da imprensa em parte porque eles são o próprio modelo de um casal de classe média, profissional: ambos são médicos, pertencendo assim ao grupo mais confiável aos olhos da sociedade. De fato, a partir de maio, a cena de uma perturbada Kate McCann agarrando o gato de pelúcia de Madeleine tornara-se a própria imagem do amor materno. O mero pensamento de que o casal é suspeito de matar a filha já é motivo de dissonância cognitiva.

É por isso que as pessoas não sabem como reagir. De uma hora para outra, temos de sustentar dois pensamentos completamente contraditórios. Pois agora os McCanns podem ser duas coisas: vítimas do destino mais cruel que se pode imaginar – não só perder inocentemente a querida filha, mas também serem acusados publicamente de um crime repulsivo – ou culpados da mais elaborada e abominável impostura da História, conquistando fraudulentamente a simpatia e a confiança da mídia global, de um primeiro-ministro britânico e até do papa, para não mencionar a opinião pública internacional. Uma dessas duas afirmações extraordinárias descreve a verdade.

Os tablóides agora cobrem a história com ambas as possibilidades em mente. Notem as manchetes da imprensa sensacionalista britânica, cuidadosamente cercadas de condições e qualificativos, caso a alternativa oposta seja a verdadeira.

Não é esse o desenrolar normal de histórias como esta. Normalmente, os jornais populares, em particular, têm um palpite sobre o culpado (e com muita freqüência acertam). Desta vez não. Os jornalistas que acompanham o caso McCann estão aparentemente divididos em dois campos, a favor e contra o casal. Alguns repórteres recusam-se a falar com os colegas do outro lado. Um editor de um tablóide está mudando de opinião sobre os culpados “de hora em hora”.

É fácil entender o motivo. Na terça-feira, informou-se que a polícia portuguesa encontrara não só o estranho rastro de DNA no porta-malas do carro que os McCanns alugaram semanas depois do desaparecimento de Madeleine, mas também quantidades substanciais de cabelos e até fluidos corporais da menina.

De repente, uma história completa constrói-se sozinha, a partir de informações vazadas e fragmentos especulativos. Essa história diz que os McCanns sedaram seus filhos a fim de jantar com amigos sem serem perturbados (o que explicaria o fato de os dois filhos mais novos do casal não terem acordado apesar do caos da noite de 3 de maio). Ao voltar, eles encontraram Madeleine morta.

Temendo perder a guarda dos gêmeos se confessassem a verdade, eles esconderam o corpo de Madeleine e, mais tarde, guardaram-no no compartimento do estepe do carro alugado, até finalmente enterrá-lo em algum lugar. Mas onde? A versão contra os McCanns tem resposta até para isso. Afirma-se que a polícia portuguesa planeja buscas na Igreja de Nossa Senhora da Luz, na Praia da Luz, onde o casal rezava regularmente e do qual obtivera as chaves, para visitar o templo a qualquer hora. Segundo as notícias, detetives querem escavar a área em torno da igreja – incluindo uma rua que estava em obras quando Madeleine desapareceu.

A história se sustenta até que comecemos a fazer perguntas. Como duas pessoas sob vigilância constante da mídia poderiam ter carregado e escondido o corpo da filha sem ser notadas? Se o casal realmente tivesse guardado um corpo no carro, o cheiro não seria óbvio? Como duas pessoas sem conhecimento da paisagem local poderiam ter encontrado um esconderijo que, meses depois, continua secreto? Seria plausível imaginar que, nos momentos seguintes ao trauma da morte de uma criança, duas pessoas concebessem um plano de acobertamento, executassem-no friamente e permanecessem inabaláveis desde então? Alguém conseguiria manter essa fachada, uma mentira global, por tanto tempo sem desabar?

Discussões como essa ocorrem em toda parte. Os McCanns certamente estão odiando, mas não podem dizer-se surpresos. Por razões totalmente compreensíveis, eles optaram por transformar a perda da filha em propriedade pública, recrutando a mídia para sua causa. Portanto, agora somos moradores reunidos na praça da vila, dando palpites sobre os misteriosos acontecimentos que envolveram uma família nas trevas.

Como essa história acabará? É isso que a torna tão tristemente irresistível: ninguém sabe. Até que se saiba, a justiça básica exige que os McCanns sejam considerados inocentes. A decência exige o mesmo. Pois se eles, no fim das contas, forem culpados, haverá tempo de sobra para condenações. Mas se eles forem inocentes, presumir o contrário é cometer um segundo crime contra pessoas que já sofreram o bastante.”

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