‘A imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que a ameaça’. (Rui Barbosa)
Como já se disse, somente as crianças e os loucos dizem a verdade. Por isso, às primeiras se educa; aos segundos, interna-se…
Verdadeiro, queria Platão, é o discurso que diz as coisas como são; falso é aquele que as diz como não são. Ou seja, e com licença filosófica, verdade é a exata correspondência entre o conhecimento e a coisa.
Operadora dessa ligação entre a coisa e a correspondente ciência, a imprensa tem o dever de fazer com que a coletividade conheça as coisas como elas efetivamente são, e nunca como os jornais e os jornalistas – nesse ponto nada importando se de boa ou má-fé – gostariam que fossem. É o fato, não a interpretação dele, que os noticiários estão obrigados a transmitir. O fato é neutro, inodoro e insípido. A interpretação é subjetiva, odorante e sápida. Naquele, a tônica da isenção, a marca do relato factual; nesta, a paixão, o aplauso entusiasmado ou a enérgica reprovação, ainda que ambos descabidos e injustos.
No conhecido ensaio O Jornalismo como Gênero Literário, Alceu Amoroso Lima foi ao ponto: ‘O importante é manter contato com o fato. Tudo mais deriva daí: a informação do fato; a formação pelo fato; a atualidade do fato; o estilo determinado pelo fato. O fato, o acontecimento, é a medida do jornalista’ [LIMA, Alceu Amoroso. O Jornalismo como Gênero Literário.São Paulo, Edusp, 1981. p.65]. Tristão de Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, acrescentou: ‘O jornalista que divaga em torno do fato ou o deturpa, toma-o apenas como pretexto, generaliza facilmente, ou está mal-informado, não é um bom jornalista’ [idem, ibidem, p.66]. Concluiu meu saudoso avô: ‘O jornalismo é uma arte da inteligência, antes de ser da emoção’ [idem, ibidem, p.69], razão por que ‘o jornalista autêntico tem o dever de não fornecer ao público o ópio que ele possa pedir, mas a verdade de que ele sempre precisa’ [idem, ibidem, p.70].
Em 1920, quando da presidência do paraibano Epitácio Pessoa, e para favorecer uma instituição beneficente de Salvador, o Abrigo dos Filhos do Povo, editou-se A Imprensa e o Dever da Verdade, conferência cuja leitura, porque adoentado, o Conselheiro Rui Barbosa confiaria ao advogado João Mangabeira, o qual se iniciara nas artes da política censurando o degolamento de sertanejos fiéis a Antônio Conselheiro, e que, em 1947, se tornaria o primeiro presidente do recém-fundado Partido Socialista Brasileiro.
No mesmo ano da conferência, a Liga das Nações, precursora da ONU, realizava a sua primeira reunião. Uma emissora de Pittsburgh, nos Estados Unidos, ineditamente cobria a eleição que conduziria Harding à Casa Branca. Em Berlim, no que mais tarde seria imitado pelos hippies e pelos punks modernos, inaugurou-se a escandalosa Feira Internacional do Dadaísmo, onde os visitantes adentravam através de um banheiro, sendo recepcionados por uma menina que, trajada para a primeira comunhão, recitava poesias obscenas… Agatha Christie, ex-enfermeira do Exército Britânico, publicava o primeiro romance, introduzindo como herói Hercules Poirot, um detestável mas infalível detetive belga. Na Rússia, o aborto era legalizado, enquanto em Roma, para compensar, canonizava-se Joana D´Arc…
Entre nós, nasciam Celso Furtado, João Cabral de Melo Neto e Anselmo Duarte. A época era de prosperidade da cultura brasileira, passando os autores nacionais a liderar a vendagem de livros, desbancando os imbatíveis franceses. Uma escultura modernista, a Cabeça de Cristo, de Victor Brecheret, ocasionava acesa polêmica. No movimento sindical, que engatinhava, os anarquistas eram perseguidos, e expulsos do país vários trabalhadores estrangeiros. Na Bahia, depois de derrotado pela segunda vez para a Presidência da República, o nosso Rui Barbosa contestava a lisura da eleição, e os seus liderados, chefiados pelo célebre ‘coronel’ Horácio de Matos, lutavam nas ruas e assumiam o controle de várias cidades baianas, provocando a intervenção federal.
Critério jornalístico
Diante dessas circunstâncias subjacentes e, notadamente, da fraude eleitoral contra a qual tão bravamente se insurgiu, não é difícil entender a insistência de Rui em que ‘o mais inviolável dos deveres do homem público é o dever da verdade: verdade nos conselhos, verdade nos debates, verdades nos atos; verdade no governo, verdade na tribuna, na imprensa e em tudo verdade; verdade e mais verdades’; ao mesmo tempo, alertado para a corrupção governamental dos jornais, no habitual estilo castiço, Rui denunciava ‘os desonradores da mais nobre das profissões, os mercadeiros da mais ignóbil das mercaturas: os vendedores da imprensa ao poder.’ Em suma, ‘verdade e mais verdades’ cobradas a ‘essas casas de prostituição intelectual’ em que muitos órgãos de comunicação haviam se transformado era o protesto que, ditado pela retidão de caráter, formulava o grande brasileiro.
Dir-se-ão distantes esses tempos e, portanto, que as preocupações do Conselheiro não guardam utilidade contemporânea alguma, tão-só valendo como registro historiográfico, mero saudosismo ou ufania retórica, porque cuidaram de realidades decrépitas, totalmente sepultadas pelo tempo, sem nenhuma valia no Brasil do século XXI, onde a imprensa não ostentaria tais vícios e seria imune aos obséquios governamentais, sendo impossível a sua peita pelos ocupantes do poder.
Pois estão errados esses cegos e surdos que, atores de um ‘polianismo’ próximo à ridicularia, preferem ignorar as mazelas do mundo da comunicação social, imaginando que, assim agindo, os deuses encarregar-se-ão de sepultá-las. Ora, sabemos nós, esses vícios permanecem. Certamente não com a antiga desfaçatez, mas maquiados. Não são mais só as verbas publicitárias distribuídas às escâncaras, nem principalmente elas. Providenciou-se a substituição pelos financiamentos estatais quitados com o apoio político, pelas anistias tributárias que pagam o noticiário laudatório, pelos incentivos concentradores da atividade jornalística a grupos monopolistas; enfim, pelas mil e uma artimanhas de que é capaz a engenhosidade dessa eficiente parceria entre alguns maus jornalistas e agentes políticos.
Avançou-se, todavia, é pacífico. Rui, hoje, poderia ser menos cáustico, mais resignado e menos pessimista. Afinal, ao contrário da Constituição de seu tempo (a de 1891), a Lei Maior Republicana de 1988, além de repetir, como direito individual, a tutela à liberdade de informação e de opinião, dedicou todo um capítulo à comunicação social, nele inclusive inserindo o sempre esquecido preceito que garante ‘à pessoa e à família’ defenderem-se de programações da radiodifusão que negligenciem as finalidades educativas, culturais e informativas, ou aquelas que não promovam a cultura nacional. Esquecimento, por sinal, que parece representar fenômeno de amnésia coletiva, ou já estariam riscados das televisões vários programas de auditório e reality shows nos quais um outro valor acolhido na Constituição – ‘a dignidade da pessoa humana’ –, em monotonia monocórdica, é sistematicamente lançado às urtigas, sem piedade, sem rubores e sem constrangimentos.
O desejo dominante de descobrir a verdade é o mandamento maior da imprensa, ensinou Paul Johnson. E porque essa é a regra máxima, segundo o famoso ensaísta e historiador inglês, o mais grave dos pecados capitais da imprensa é o da ‘distorção’, proposital ou inadvertida. O editor não pode ser, como definia Adlai Stevenson, alguém que separa o joio do trigo, mas só publica o joio… Aos jornais não se reclamará a informação trêfega, superficial e risonha, como se o mundo se cingisse à Disneylândia, ao nascimento da simpática prole de ursinhos ou ao mundo das ‘Xuxetes’. Contudo, nem por isso será admissível transformá-los em cebolas impressas ou eletrônicas, que somente se prestem a extrair as lágrimas nascidas dos espetáculos atrozes, das negociatas públicas, das melancolias e angústias humanas.
Se a imprensa tem o dever de comunicar a verdade, tem, por conseguinte, o encargo de comunicá-la por inteiro, no que ostente de bom e naquilo que encerre de ruim. O homem não vive só de pão, mas, também, não apenas de circo. A realidade engloba o bem e o mal. Não somente as guerras, os assassinatos e os assaques ao Erário, mas por igual, com o equilíbrio que o honesto critério jornalístico afirmará, aquilo que de elogiável fizerem governos e pessoas. A verdade é tudo isso, não apenas aquela parte desse todo que possa agradar à calejada amargura de autores, leitores, ouvintes ou telespectadores.
Dever da verdade
A verdade tem compromissos constitucionais com a honra, com a imagem e com a privacidade. A verdade deve emanar da pesquisa isenta do fato a ser noticiado, para que, quando divulgada, a notícia efetivamente expresse o que aconteceu, ou está para acontecer, isto é, o ‘fato’, não a sua ilícita manipulação. Na imprensa, o pior inimigo da verdade é a vaidade do ‘furo’; é a urgência do ‘fechamento’; é a convicção da infalibilidade da única fonte ouvida; é a sensação de que, em se divulgando amanhã a versão do acusado de hoje, estará autorizada toda e qualquer imputação; é a ignorância, lamentavelmente tantas vezes assistida, da presunção de inocência, a transformar o repórter, a um só tempo, em investigador, promotor e juiz dos seus semelhantes.
Como tudo na vida, a verdade também tem a sua hora. Tenho assistido estarrecido àqueles que, sem a mínima inquietação com a segurança e a integridade de seqüestrados, e desrespeitando os aflitos pedidos de familiares e autoridades, correm a noticiar os crimes em curso. Há nisso, mais do que simples deformação de caráter ou impiedade repulsiva. Aqueles que assim agem – felizmente, a cada dia mais escassos – são inimigos da imprensa e de sua liberdade, porque desdenham os objetivos maiores do jornalismo e esquecem-se das responsabilidades inerentes a um serviço que, embora exercido por particulares, na essência e na imanência, é público e de relevantíssimo interesse social.
Em 2003 uma rede de televisão apresentou, urbi et orbi, a tentativa de suicídio de um policial, adicionando à dramaticidade natural o patético artificial que somente os sacrossantos intervalos comerciais conseguiam quebrar. Passava-se da cena pungente ao anúncio do sabonete, e àquela logo após tranqüilamente se retornava. Era verdadeiro o planejado suicídio? Sim. Mas, por isso, jornalisticamente legítima a sua divulgação em tempo real? Não, absolutamente, não. Na notável crítica logo após estampada em O Globo, em 1o de junho de 2003, Glaucio Dillon Soares verberou a prática, anotando que ‘detalhar, na mídia, um suicídio, não é apenas uma questão de mau gosto, de falta de respeito com o suicida e a sua família, num momento de muita dor; é também um estímulo a outros suicídios’, nesse sentido revelando impressionantes pesquisas da Academia de Ciências de Nova York e da Organização Mundial da Saúde. ‘Jornais, rádios e televisão selecionam e têm que selecionar. Publicam uma parcela ínfima do que acontece. Ninguém parece achar que não publicar os risos e as alegrias é uma forma de censura; mas eles raramente são notícia’, advertiu com lucidez e acerto o professor universitário.
A objetividade do noticiário, ponderava Danton Jobim, está na razão direta do processo educacional: ‘Educação do jornalista, sem dúvida, mas, sobretudo, educação do leitor’ [ JOBIM, Danton. Espírito do Jornalismo. São Paulo, Edusp, 1992. p.127]. Hoje, o juízo crítico médio é mais apurado. Em conseqüência, os destinatários das mensagens jornalísticas são mais cuidadosos e exigentes. Não lhes basta qualquer relato. O seu direito é à informação correta e veraz, desprovida de sensacionalismos ou apelos emocionais, mas nem por isso enfadonha ou maçante. A graça e a atratividade do fato noticiável residem nele próprio, dispensando acréscimos subjetivos e, por certo, recusando omissões graves ou deturpações dolosas. É dessa forma que a imprensa atenderá, como queria o nosso eminentíssimo prefaciado, ao dever da verdade.
Republicando a conferência do jurista Rui Barbosa, a Editora Papagaio presta ao Direito e ao Jornalismo excelente contribuição. Aliás, de nível e qualidade idênticas a um anterior relançamento do mesmo autor, a Oração aos Moços, que o meu querido amigo Miguel Reale Júnior prefaciou munido do costumeiro talento. Agora, equivocou-se apenas a editora na escolha do apagado prefaciador, cujo único pertinente mérito está na lembrança da ironia que, faz muito, leu no pára-choque de um caminhão: ‘Não conte a verdade a uma criança, ela envelheceria…’.
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Advogado, ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo e ex-conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil.