Na semana passada, o jornalismo da Rede Globo se redimiu da escorregada da semana anterior, quando comprou a lista preparada pelo deputado Rodrigo Maia (PFL-RJ), contendo apenas nomes de petistas entre os beneficiários por depósitos de Marcos Valério. Do mar de denúncias que inunda jornais e revistas, o departamento de jornalismo da emissora em São Paulo solucionou dois casos – e com jornalismo investigativo, que não se limita à reprodução de gravações feitas por arapongas. O primeiro caso foi o da descoberta de que o ex-secretário-geral do PT, Silvio Pereira, tinha mentido quando disse que estava pagando as prestações de seu Land Rover. O segundo mostra os passos, por São Paulo, do assessor parlamentar da Assembléia Legislativa do Ceará, José Adalberto Vieira da Silva, o do dólar na cueca, antes de ser preso no aeroporto de Congonhas. Na comparação direta entre os dois, a reportagem que desmascarou o ex-secretário geral do PT, sobrepõe-se à investigação sobre o roteiro do assessor pego com dólar na cueca em São Paulo. Num caso, o trabalho dos repórteres foi o de conseguir gravações dos sistemas de vigilância onde José Adalberto Vieira da Silva se hospedara. Nas imagens, vê-se o volume da mala do assessor, antes e depois de ser recheada com R$ 200 mil, e o receio do assessor ao sair do elevador com a bagagem milionária. No outro, houve trabalho duro, momentos de desânimo, alguns acasos que salvaram o trabalho e até mesmo indícios de que mais coisa pode vir por aí. A apuração sobre o automóvel que Silvio Pereira ganhou do amigo da empreiteira GDK exigiu duas semanas de investigação do jornalista Luiz Malavolta, com mais de 30 anos de profissão. Falando a esse blog, ele conta que sua maior inquietação, quando o escândalo do mensalão começou a provocar espanto, foi a de que não se via, afinal, o rastro real do dinheiro. ‘Havia apenas uma suspeita genérica de beneficiamento para figuras do PT, mas não se tinha nenhuma história concreta’, diz. A ponta da meada era levantar o modo de vida dos petistas que estavam no epicentro do furacão. Qualquer indício que pudesse indicar o que os promotores costumam chamar de ‘sinais exteriores de enriquecimento’. Enfim, a lição que Mark Felt, o ‘Garganta profunda’ do escândalo Watergate, ensinou aos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein: ‘Sigam o dinheiro!’ (‘Follow the money!’). A checagem primária, conta Malavolta, foi tentar descobrir como vivem e onde vivem as pessoas que estavam sendo denunciadas. ‘Como toda investigação inicial deve apurar, fomos atrás de dados em cartórios de imóveis e registros de propriedade de veículos no Detran’, conta o jornalista. O Diretório Nacional do PT, em São Paulo, de imediato tornou-se um dos locais ideais para a coleta de informações. Ali estavam se encontrando os envolvidos na crise. Três nomes mereceriam atenção – o ex-tesoureiro, Delúbio Soares; o ex-secretário-geral, Silvio Pereira; e o ex-diretor de Comunicação, Marcelo Sereno. Nada se descobriu no início, além da predileção dos dirigentes petistas por aluguel de carros de luxo. Marcelo Sereno, entretanto, chamou a atenção de um dos motoboys que estavam dando apoio à equipe da tevê. Enquanto esperava a fita para sair voando rumo à sede da emissora, ele viu que Sereno chegou de táxi à sede do partido depois de deixar um Land Rover em um estacionamento, a pouco mais de uma quadra. Ao sair, o ex-dirigente repetiu a encenação: tomou um táxi na porta do partido, deu a volta na quadra e voltou para pegar o automóvel no estacionamento. O motoboy seguiu o táxi, mas Sereno percebeu. Já na porta do estacionamento, tentou despistar e tomou outro táxi. Horas mais tarde, segundo relato dos funcionários do estacionamento, ele voltou ao local para pagar o Land Rover. ‘O comportamento de Marcelo Sereno levantou suspeita. Fizemos levantamento da placa do carro para descobrir a quem pertencia’, lembra Malavolta. Fuça daqui, fuça dali, descobriu-se que o Land Rover que Sereno havia deixado no estacionamento estava em nome de uma empresa de comunicação instalada em um trecho de uma rua sem saída da Vila Madalena, em São Paulo – a Quanta. Depois de vários telefonemas aparentemente infrutíferos, descobriu-se que o endereço, na verdade, era de uma residência e que nela morava um senhor chamado Ivan. A reportagem ainda tentou saber o nome completo do dono da casa, e se batia a informação de que ele tinha um Land Rover, conforme revelara a consulta ao Detran. Vários telefonemas foram feitos atrás de Ivan, mas, do outro lado da linha, a reportagem topava sempre com a mesma voz feminina, cada vez mais nervosa com a insistência dos repórteres. Após várias checagens, descobriu-se, finalmente, o nome completo do dono da empresa que constava no registro do veículo: Ivan Guimarães, ex-subtesoureiro do PT e ex-presidente do Banco Popular, criado pelo governo Lula em setembro do ano passado. A passagem de Guimarães pelo banco está sob suspeita: durante um ano e sete meses, ele conseguiu a proeza de gastar mais em publicidade – R$ 24 milhões – do que em empréstimos – R$ 20 milhões – para correntistas de baixa renda. Nome da agência contratada pelo Banco Popular: a própria DNA, de Marcos Valério. ‘Ao saber que estava sendo procurado pela Globo de São Paulo’, conta Malavolta, ‘ele mandou seu assessor de imprensa me procurar para dizer que estava descansando em Minas Gerais, em local sem telefone, e que emprestara o carro a Sereno’. O repórter não se convenceu. Em nova checagem, descobriu que o carro havia sido adquirido por um contrato de leasing assinado junto ao Bradesco, e que Sílvio Pereira também tinha um carro idêntico. ‘Com essa pista e com a internet a nosso favor, levantamos a placa do carro do Sílvio e em seguida, com os préstimos de um despachante, foi rápido levantar o cadastro no Detran, quem era o dono anterior do veículo, de quem o petista comprara e qual a real situação do veículo, isto é, se havia sido totalmente pago ou financiado, conforme Silvio Pereira deu numa primeira versão para explicar a posse do Land Rover’. As novas informações levaram Malavolta a contatos com a empresa que havia vendido o carro para Sílvio Pereira – sem muito sucesso. O dono da revenda, da cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, negou-se a dar informações, mas deixou escapar uma pista: o carro, na verdade, havia sido repassado para outra revenda, a Paito, de Araras, próxima a Ribeirão Preto. ‘Na loja de Araras, o dono falou um pouco mais, mas alegou ter ética nos negócios e, portanto, não daria nenhum dado sobre essa transação’, lembra o repórter. Todo o trabalho realizado até aquele ponto parecia perdido, quando um telefonema surpreendeu Malavolta. Uma voz masculina disse: ‘Recebi orientação do meu ex-patrão, dono da revenda, para contar o que sei, porque a empresa não quer se envolver em negócios errados’. A fonte sabia muito, e iria recolocar a investigação nos trilhos. Sua agenda guardava o registro do número de telefone e do nome da pessoa que intermediara a compra da Land Rover, modelo Defender, por R$ 73.500, em novembro do ano passado. Conta Malavolta: ‘O número do telefone era de Salvador, Bahia. Quando liguei e a telefonista atendeu dizendo ‘GDK, boa tarde’, senti que estava no caminho certo. Perguntei pelo José Paulo (José Paulo Santos Reis, como se viria a saber depois), e fui informado que ele estava de licença, pois se casara. Na lista telefônica de Salvador, o mesmo José Paulo tinha apenas um telefone. O número estava instalado dentro da GDK. Quando, enfim descobri que ele era assessor da diretoria, conclui que realmente havia ali algo ilegal: um dirigente partidário, ligado ao governo, ganhara um carro de uma empresa que tem negócios com o governo. Novas checagens foram feitas – e revelou-se a história completa da Land Rover’. Mas a pressão tornara-se insustentável. No dia seguinte à denúncia, o próprio César Oliveira, mandou carta para a Globo dizendo que era amigo de Sílvio Pereira e que o presenteara com o veículo que, segundo ele, era um desejo de consumo do ex-secretário-geral. ‘Quando recebi o documento confirmando, em três parágrafos, toda a história que havíamos apurado, minha primeira reação foi de desconfiança’, revela Malavolta. ‘O papel usado não tinha timbre da GDK e eu não conhecia a assinatura do empresário. Liguei para sua assessoria e pedi que confirmasse o teor do documento. A assessoria desconhecia. Mandei um fax para a assessora com a cópia do documento. Ela me ligou em seguida dizendo que era a assinatura do dono da GDK e que ele acabara de lhe confirmar que fora a um escritório de advocacia e após as orientações ditara o texto e o assinara’. Encalacrado pelas mentiras e omissões anteriores, Silvio Pereira acabou confirmando que recebera ‘de presente’ o carro do amigo César Roberto Oliveira, mas sem nada lhe dar em troca. Mas sua palavra, a essas alturas, não valia um real. O fato concreto é que a empresa que respondeu ao seu desejo de consumo venceu licitação para um contrato junto à Petrobras que agora será investigado pela CPMI. Suspeita-se que o Silvio Pereira usou do cargo que detinha para influenciar na contratação da GDK. ‘Não ficarei surpreso se outros casos parecidos virem à tona nas próximas semanas. Tudo leva a crer que o PT está se autodestruindo’, acredita o repórter.
A denúncia de que a GDK havia comprado um carro para Sílvio Pereira foi veiculada no Jornal Nacional no mesmo dia em que o ex-secretário estava depondo na CPMI. Nesse dia, pela manhã, o deputado Antonio Carlos Magalhães Neto (PFL-BA), foi o primeiro a falar após as inquirições do relator. Dizendo que há quase um mês estava investigando os negócios da GDK com o governo federal, disparou: ‘o senhor conhece César Oliveira?’. Ao ver citado o nome do dono da GDK, Silvio Pereira tremeu, mas escorou-se no direito de não falar. Saiu pela tangente, dizendo que não trataria de seu patrimônio pessoal, seguindo orientação de seus advogados.