Há dois tipos de mensagens que interessam às seções destinadas à publicação de cartas dos leitores: aquelas oriundas dos que concordam com o que é publicado e as dos discordantes, desde que o profissional de imprensa responsável pela carta contestadora possa responder com algum argumento desqualificador do leitor/missivista inconformado.
Como não sou leitora passiva, costumo me manifestar sobre as matérias que me são expressivas, principalmente aquelas que abordam temas dos quais tenho algum conhecimento, como os temas jurídicos, de sorte que procuro apresentar algum dado técnico que acrescente, reforce a matéria veiculada, ou a corrija.
Todavia, observo há muito tempo que as redações dos jornais não têm muita receptividade para a carta – hoje via e-mail – do leitor que apresente algum dado denunciador de falha de conteúdo da notícia objeto do comentário. Parece que o profissional da imprensa não aprecia muito quando seus erros são evidenciados, principalmente aqueles denotadores de falta de pesquisa por parte do subscritor do artigo jornalístico.
Há muitos anos, à época em que era responsável pela seção das ‘Notas e Informações’ do jornal O Estado de S.Paulo um intelectual da área da ciência política da Universidade de São Paulo (quando não havia esta comunicação em tempo real), mandei carta observando que um determinado editorial fora desenvolvido por força da inclusão da palavra inexistente em inciso de artigo do Código Penal, relativo à exceção da verdade em caso de crime contra a honra. O editorialista, estupefato pela vedação da exceção da verdade, que não existia, desenvolveu todo o raciocínio sobre grave delito envolvendo figuras de proa da política de então, que ficaria impune.
Em minha carta, transcrevendo o inciso do dispositivo penal comentado, alertava para a circunstância de, naquela hipótese, estar expressamente autorizada a exceção da verdade. Em carta-resposta, o editorialista agradecia a minha observação, dizendo que o equívoco se devera a uma leitura açodada do referido dispositivo legal. Ou seja, com base em leitura nada cuidadosa, desenvolvera o jornalista texto nada diminuto, passando ao leitor leigo em direito uma falsa informação – ou melhor, uma desinformação.
Só que o jornal não publicou uma linha sequer para desfazer a desinformação. Ademais, eu não necessitava do reconhecimento do erro, justamente por tê-lo apontado, mas o leitor leigo em Direito Penal, sim. Vigorou o produto de uma leitura açodada.
Abrir as cortinas
Nem por isto deixei de enviar minhas cartas aos jornais, sendo que, muitas vezes, entenda ser até um dever.
Já tive cartas só parcialmente publicadas, o que teria acontecido por questão do tamanho do texto, o que é avisado aos leitores/missivistas, autorizando-se o jornal a fazer publicação reduzida.
Mas já li cartas imensas, que não sofreram quaisquer cortes. Tal acontece, segundo parece, principalmente quando, ao depois, o responsável pelo artigo contestado na carta pode vir desqualificar o leitor contestador. É aquele segundo tipo de carta ao qual referi-me no início.
O que aqui afirmo me é reforçado por força de matéria assinada pelo jornalista Luís Nassif, na Folha de S.Paulo (29/2/04), sob o título ‘J’accuse’ [veja reprodução abaixo].
Só tomei conhecimento do artigo dias depois, no sábado (8/1), vez que à época da publicação me encontrava fora do país.
Enviei, então, em 10/1/05, à Folha, a mensagem abaixo transcrita:
Sr. Diretor de Redação,
Por me encontrar fora do país quando da publicação da coluna do jornalista Luís Nassif, em 29/12/04, sob o título ‘J´accuse’, só tomando conhecimento do referido artigo ao retornar ao país, em 08/01/05, por meio de conversas com amigos leitores desse jornal, só agora posso me manifestar a respeito, vez que sou uma das três procuradoras regionais da República responsáveis pelo oferecimento das denúncias dentro da denominada Operação Anaconda.
Sou conhecedora da mensagem enviada pela colega Dra. Luiza Cristina Fonseca Frischeisen ao Ombudsman desse jornal, na mesma data da publicação do apontado artigo. Sei, também, que o jornalista Luis Nassif conversou por telefone com a colega acima nominada, bem como com a Dra. Janice Ascari, ambas também responsáveis pelos processos afetos àquela investigação.
Ocorre que ainda vigora na memória dos leitores a versão da coluna, no que se refere ao Juiz Federal Ali Mazloum, além das suspeitas lançadas pelo jornalista contra a seriedade dos trabalhos desenvolvidos, como se, em nome do apurado no bojo das investigações da Operação Anaconda, houvesse deliberação de se manter acusação injusta. A essa suspeita acresçam-se outros tantos dados não verdadeiros constantes do mesmo artigo.
Espero que esse jornal, comprometido com a correta informação, tenha a dignidade de publicar esta mensagem.
A tentativa de estabelecer paralelos com o Caso Dreyfus é de todo inadequada. De imediato devo observar que o jornalista Luís Nassif, para assinar o apontado artigo, não seguiu o exemplo de Emile Zola. Com efeito, não procedeu o jornalista à verdadeira investigação tal qual fez Zola para chegar à redação do importante e histórico documento. Zola não se limitou ao que lhe narrou Dreyfus. Ouviu muitas pessoas e teve acesso a documentos. Portanto, a carta ao Presidente da França é fruto de profunda e intensa busca de informação.
A pretendida comparação entre a acusação formulada pelo MPF, contra o Juiz Federal Ali Mazloum e o caso Dreyfus, é descabida por vários aspectos. O primeiro, porque se tratava, no caso denunciado por Zola, de processo militar, que correu em sigilo – huis clos como consta do próprio texto de Émile Zola – dentro da caserna, do Exército Francês. Todas as ações penais afetas à denominada Operação Anaconda, se tramitaram em segredo de justiça, o foi no interesse dos acusados, conforme previsão da Loman, hoje abolida com a edição da Emenda Constitucional n. º 45, dentro da Reforma do Poder Judiciário.
O devido processo legal, diversamente do que se deu no caso Dryfus, foi rigorosamente observado nas ações penais nas quais o Juiz Federal Ali Mazloum figurou como réu, como que faz prova a mais de meia centena de habeas corpus impetrados, e sem sucesso, por todos os réus. O direito de defesa foi exercido intensamente, resvalando até para o abuso, por todos os acusados, inclusive o Juiz Federal Ali Mazloum, assistido por um dos mais renomados advogados criminalistas do país. Portanto não há nenhum ‘inocente sendo massacrado, sem direito a defesa’, usando-se a expressão do jornalista.
As pretensas coincidências apresentam, inclusive, dados incorretos. A denúncia, a acusação contra o Juiz Ali Mazloum, foi formalizada em 13 de outubro de 2003, e não em 2004. Parece que faltou revisão do texto.
A primeira defesa do Juiz Ali Mazloum foi feita nos próprios autos, muito antes do artigo do juiz aposentado Américo Lacombe – o que deve ser filtrado por se tratar de ex-magistrado –, sem contar as diversas mensagens publicadas no jornal eletrônico Consultor Jurídico, tão logo tornado público a existência das denúncias formuladas pelo Ministério Público Federal.
Quanto às atuações da procuradora da República Karen Khan e do procurador da República Cristiano Valois estão essas sendo tratadas na instância competente da Instituição.
O Juiz Federal Ali Mazloum não foi ‘apanhado pelo vendaval da Operação Anaconda (…), devido a um grampo’. Cumpre observar que a terminologia usada pelo jornalista Luís Nassif é incorreta, o que é compreensível por ser leigo em direito. A palavra grampo é utilizada para denominar a escuta telefônica feita ilegalmente, ou seja, sem autorização judicial. Nenhum juiz federal foi investigado via escuta clandestina. No caso específico, a referida conversação não foi registrada no curso de interceptação telefônica autorizada pelo juízo do feito. Os fatos chegaram ao conhecimento do MPF via representação dos policiais rodoviários, dando conta das conversas e ameaças feitas contra eles pelo Juiz Federal Ali Mazloum.
Outra inverdade contida no artigo refere-se à declaração de ter o Juiz Federal Ali Mazloum ‘solicitado escutas telefônicas em cinco Estados’. As escutas autorizadas judicialmente, no curso das investigações da denominada Máfia dos Combustíveis e nas envolvendo quadrilhas de contrabando de cigarros, foram determinadas pelo Juiz Federal da 10ª Vara Federal da Brasília, onde se iniciaram as investigações. Ocorre que somente parte das interceptações feitas por ordem do juízo federal da Brasília era pertinente aos processos envolvendo Ari Natalino e o delegado federal Alexandre Crenite, e não Criniti como constou da coluna ora comentada, sob a jurisdição do Juiz Federal Ali Mazloum.
O material afeto ao caso sob a jurisdição do Juiz Federal Ali Mazloum foi enviado em 05 de setembro de 2003, pelo Juiz Federal Hélio Nogueira, da 6ª Vara Criminal Federal, onde tramita a ação penal envolvendo José Eleutério, o vulgo Lobão. Ocorre que o Juiz Federal Ali Mazloum mostrava-se interessado em gravações que teriam ocorrido em outro período que não o de interesse para o processo sob sua jurisdição. Por sua conduta abusiva valendo-se de ameaça contra os policiais rodoviários, na tentativa de retirar deles provas realizadas por determinação de outro juízo, o MPF o denunciou pelo crime de formação de quadrilha, previsto no art. 288 do CP, e pela prática dos delitos descritos no art. artigo 147 do Código Penal e artigo 3°, alínea j c/c artigo 6°, § 4°, ambos da Lei nº 4.898/65. Da imputação da prática do delito de formação de quadrilha, o Juiz Federal Ali Mazloum conseguiu ordem em habeas corpus, junto ao STF, para trancar a ação penal. Aquela Corte, contra toda a doutrina e jurisprudência, fez exame de matéria fática, mesmo distante dela, concluindo que aquele magistrado não teria cometido o delito imputado.
Ainda tramita, perante o Órgão Especial do TRF-3, aquela outra ação penal contra o Juiz Federal Ali Mazloum pela prática dos delitos de ameaça e de abuso de autoridade.
Como não mais vigora a obrigatoriedade de tramitar em sigilo processo envolvendo juízes, espera-se que as cortinas desse jornal sejam abertas para apresentar correta informação sobre tão importante processo judicial que nada tem a ver com o caso Dreyfus, pelo menos para os que conhecem realmente o texto de Emile Zola e para os que conhecem efetivamente o que contém o processo judicial em que é acusado o Juiz Ali Mazloum.
Se o jornalista confiou exclusivamente em sua fonte, não procurando obter maiores esclarecimentos até mesmo nas matérias publicadas a respeito do assunto neste jornal, prestou-se a um desserviço à informação correta e de conteúdo, função da imprensa responsável e independente.
Ana Lúcia Amaral, Procuradora Regional da República
Regra de ouro
Passado mais de uma semana, é de se supor que a carta não será publicada, como já suspeitava. Poder-se-ia argumentar que já transcorreu muito tempo desde a publicação do artigo; que a minha carta ela é longa etc., etc., além do que o Ombudsman e o próprio jornalista já teriam contatado as outras procuradoras regionais da República, também responsáveis pelo processo em questão.
Mais uma vez a manifestação do jornal a respeito da matéria contestada se faz tão-somente e diretamente ao leitor, e/ou pessoas eventualmente vinculadas aos fatos objeto da matéria, e não a todos os leitores, como seria o correto, e no mesmo espaço. Bem possivelmente, tal assim se dá por não ter o jornalista como vir, depois, desqualificar o conteúdo da carta enviada ao Ombudsman da Folha.
Os demais leitores ficaram apenas com a opinião deturpada do jornalista, que usa sua função tal qual fosse um privilégio, um poder, podendo escrever o que bem entender vez que tem à sua disposição espaço diário em veículo de grande circulação. Para contestá-lo, somente em juízo. Como o tempo do processo é outro, nada servirá eventual direito de resposta.
Essas situações fazem-me pensar que a regra de ouro do profissional de imprensa, que imaginava eu fosse ouvir sempre o outro lado, não é devidamente observada no dia-a-dia das redações. Estaria errada?
No exercício diário do pretenso poder, o jornalista, em poucas linhas, busca desqualificar o árduo trabalho de muitos profissionais de área que lhe é totalmente estranha – vez que leigo em direito –, e que pode ser conhecido nos mais de cem volumes de autos processuais. Busca desqualificar, sobretudo, uma instituição, o Ministério Público. E, para tanto, satisfez-se o jornalista com a versão da parte acusada – que, como todo e qualquer réu, se apresenta como inocente, a vítima da mais abominável injustiça.
Considerando-se o princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se incriminar, recusar responsabilidade pela prática de delito do qual se é acusado (o que permite ao réu até mentir) é o exercício do sagrado direito à ampla defesa.
Entretanto, do profissional de imprensa se espera a responsabilidade na busca de dados que lhe permitam formar sua opinião, de forma isenta, através da regra de ouro: ouvir todos os lados. A toda evidência não se verifica, da apontada matéria, a observância de fundamental regra à prestação de informação correta e de qualidade.
Todavia, o leitor consumidor da desinformação nada pode fazer. Desinformação não colabora na formação do pensamento dos cidadãos, de sorte que suas escolhas se façam minimamente corretas dentro de processos decisórios chaves em democracias desenvolvidas.
Enfim, terminando como comecei, indago: os jornais devem prestar serviços a quem: aos jornalistas ou aos leitores?
(*) Procuradora regional da República, associada do IEDC – Instituto de Estudos ‘Direito e Cidadania’
J´Accuse
Luís Nassif
[Copyright Folha de S.Paulo, 29/12/2004]
O capitão do Exército Alfred Dreyfus foi acusado de ter acobertado ações de inimigos do Estado em 13 de outubro de 1894. O juiz Ali Mazloum foi acusado de integrar uma quadrilha de manipulação de inquéritos policiais em 13 de outubro de 2004.
A primeira defesa do capitão foi o artigo ‘J´Accuse’, de Émile Zola, publicado no jornal ‘L´Aurore’. A primeira defesa do juiz foi do desembargador aposentado Américo Lacombe, em 13 de abril, na Folha. Zola tinha 57 anos na época; Lacombe, 67 anos, mas a idade saiu, por engano, como 57. A principal testemunha de defesa de Dreyfus foi o grande rabino da França Zadoc Kahn. A principal testemunha de Mazloum é a procuradora federal Karen Kahn. E há enorme possibilidade de que, assim como Dreyfus, Mazloum seja inocente.
O juiz foi apanhado pelo vendaval da Operação Anaconda, um marco na história das investigações do país, devido a um grampo, no qual teria feito ameaças a três policiais rodoviários para que lhe entregassem a íntegra de uma escuta telefônica, realizada em Brasília, sobre o empresário Ari Natalino, um dos mentores da chamada ‘máfia dos combustíveis’. O caso estava sob sua jurisdição. Mazloum havia solicitado escutas telefônicas em cinco Estados, decretou a prisão de Natalino em fevereiro de 2003 e, em agosto do mesmo ano, condenou-o a quatro anos de prisão.
Pressões vieram de todos os lados, inclusive do deputado federal Luiz Antônio Medeiros (PL-SP), que foi ao STJ pedir o afastamento de Mazloum. Depois, descobriu-se que uma das empresas de Natalino figurara como financiadora da campanha de Medeiros.
No dia 4 de setembro, o Ministério Público enviou uma fita sobre Natalino, fruto de grampo autorizado por um juiz de Brasília. A interceptação dos telefones incriminava o delegado Alexandre Creniti, cuja prisão temporária havia sido determinada por Mazloum. Só que a escuta tinha durado dez meses, e Mazloum só recebeu trechos selecionados de uma semana. Solicitou todo o material para análise, assim como a procuradora Kahn, que oficiou ao procurador federal Guilherme Schelb e ao juiz de Brasília. Nada conseguiram.
Como os policiais rodoviários insistissem em não enviar a íntegra da escuta, Mazloum telefonou a um deles exigindo o material. Essa ligação, interceptada, foi tratada como abuso de autoridade pelo inquérito da Operação Anaconda e tentativa de acobertamento de suspeitos.
Depois que Mazloum foi afastado, o juiz que lhe sucedeu constatou a existência dos grampos ilegais e oficiou ao juiz de Brasília. O procurador Cristiano Valois de Souza, que sucedeu a Kahn, conseguiu mais elementos. Quando as investigações caminhavam, o inquérito foi trancado no Tribunal Regional Federal de São Paulo por uma liminar impetrada por dois procuradores federais regionais, Mário Luiz Bonsaglia e Marcelo Moscogliato.
Está na hora de abrir as cortinas e mostrar o que está acontecendo. Pode ser apenas excesso de zelo, desejo de não macular a Operação Anaconda com um erro clamoroso. Pode ser algo mais grave. E, provavelmente, existe um inocente sendo massacrado, sem direito a defesa.