Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nem sempre é culpa da mídia

Erros e mal-entendidos grosseiros envolvendo termos e conceitos científicos ainda são comuns na mídia, como este Observatório costuma registrar (ver, por exemplo, ‘Dissonâncias conceituais em nossa mídia‘, OI nº 271, de 6/4/04; ‘Precisão ou imperícia numérica?‘, OI nº 328, de 10/5/05; e ‘Demografia confunde imprensa‘, OI nº 376, de 10/4/06). Nem tudo, porém, pode ser debitado na conta de repórteres e editores: a comunidade científica também desempenha um papel expressivo nessa história toda (ver, por exemplo, ‘Como usar o `bom senso´ para gerar bobagens‘, OI nº 264, de 17/2/04). Há várias razões para isso. Uma delas: os cientistas brasileiros escrevem relativamente pouco. (Escrever e publicar não são exatamente a mesma coisa, de sorte que alguns caciques conseguem publicar mesmo sem escrever.) Outra: muito do pouco que se escreve, em geral, é mal escrito.

Trata-se, aparentemente, de um problema cíclico e de berço: muitos jovens estudantes universitários estão se desenvolvendo em uma atmosfera acadêmica inerte e amorfa, desprovida de senso crítico. A situação tende a se reproduzir à medida que alguns deles se tornam professores e passam a ensinar aos seus alunos mais ou menos o mesmo que aprenderam nos tempos de estudante: não critique nem polemize, apenas obedeça; mais tarde, quando puder, mande.

Como leitor, tenho convivido com textos de quatro universos ligeiramente distintos: 1) artigos publicados em revistas científicas (técnicas e de divulgação); 2) livros didáticos (destinados ao ensino fundamental e médio); 3) livros técnicos (destinados ao ensino universitário e a professores e cientistas); e 4) livros de divulgação científica (destinados ao público leitor em geral). No que segue, vou abordar algumas questões envolvendo principalmente os itens 3 e 4.

Bons e maus exemplos

A grande maioria dos livros técnicos e de divulgação disponíveis hoje no país foi originalmente publicada em outro idioma, notadamente em inglês. Para traduzir uma obra dessas para o português, as editoras brasileiras em geral contratam os serviços de um ou mais tradutores e, às vezes, de um ou mais revisores técnicos. Os tradutores costumam ser remunerados por ‘metro quadrado’: tantas páginas, tantos reais. Em princípio, isso não é nenhum fim de mundo. Algo semelhante acontece com outros profissionais: professores da rede particular de ensino, por exemplo, costumam ser remunerados por hora/aula, enquanto os motoristas de táxi recebem por quilômetro rodado. O problema surge quando a remuneração é muito baixa, fazendo com que esses profissionais tentem aumentar seus ganhos elevando ao máximo a carga semanal de trabalho. O resultado final, em geral, não é dos melhores.

Uma baixa remuneração não é, contudo, a única explicação plausível para o rico e variado leque de problemas que habitualmente encontramos nos livros publicados no país. Até porque as barbeiragens proliferam tanto em livros traduzidos por um único profissional como naqueles que contaram com a participação de um ou mais revisores técnicos. Às vezes, o cuidado com a obra é perceptível – meu exemplo favorito ainda é o livro O homem e o mundo natural (Companhia das Letras, 1987), de Keith Thomas: além do tradutor, a editora contratou dois revisores, um para os termos zoológicos e outro para os termos botânicos. Infelizmente, porém, cuidado e esmero não são regras em nosso mercado editorial.

Não vou enfileirar exemplos de picaretagem, mas talvez seja oportuno registrar que algumas editoras brasileiras trilham o caminho da pirataria, fazendo aquilo que muitas empresas já fizeram mundo afora: apropriar-se indevidamente do trabalho alheio. Exemplo: nomes fictícios são usados para disfarçar a apropriação de obras vertidas para o português por terceiros – tradutores reais, em geral já falecidos.

Pirateando um clássico

Ao contrário do que possa parecer, no entanto, isso não ocorre apenas com obras obscuras. Na verdade, um dos exemplos mais impressionantes de pirataria envolve as edições brasileiras do famoso livro A origem das espécies, do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882).

A primeira edição original de A origem das espécies foi publicada por uma editora londrina. Todos os exemplares disponíveis para compra (aproximadamente 1,2 mil), postos à venda em 24/11/1859, se esgotaram de um dia para o outro. Em janeiro de 1860, foi lançada uma segunda edição; outras quatro edições apareceriam ao longo dos 12 anos seguintes: 1861, 1866, 1869 e 1872. Logo surgiram versões em alemão, francês, holandês, russo, italiano e sueco.

Embora as ideias darwinistas tenham repercutido prontamente entre nós, a primeira edição brasileira de A origem das espécies só apareceria, até onde sei, em 1979 – isto é, exatos 120 anos após a publicação da primeira edição original. Desde então elas se multiplicaram. O problema é que a maioria das edições brasileiras é plágio de uma edição portuguesa, originalmente publicada pela editora Lello & Irmão (Porto), em 1913, a partir da tradução de uma versão francesa. (Um raro exemplo de tradução legítima seria a edição da editora Itatiaia/Villa Rica.)

‘Miséria pouca é bobagem’

Eis o comentário de uma tradutora profissional a respeito do caso:

‘Vou começar pelo básico: concorde-se com Darwin ou não, A origem das espécies é uma obra absolutamente fundamental, tida por muitos como a obra mais influente de toda a história da humanidade desde a Bíblia, não só por seu radical impacto científico e cultural, mas por ter determinado uma profunda transformação nos rumos do pensamento e da prática humana.

Então, acho uma miséria que o Brasil disponha, até onde sei, apenas de duas – duas – traduções legítimas d´A origem das espécies após 150 anos de sua primeira edição.

Acho uma vergonha que o Brasil disponha, até onde sei, de cinco – cinco – falsificações numa incessante sequência de reedições infindáveis, além de uma edição ainda em análise.

Acho uma lástima que o Brasil disponha de cinco falsificações de uma provecta tradução portuguesa que não é direta do inglês, e sim, por interposição do francês.

Acho um tremendo azar que o Brasil disponha de cinco falsificações de uma tradução que, além de interposta, parece demonstrar talvez não suficiente conhecimento da língua de interposição.

Além de achar uma miséria, uma vergonha, uma lástima e um tremendo azar, acho o fim da picada que estudantes, pesquisadores e leitores em geral passem décadas lendo um texto com não pequenos deslizes e ademais plagiado, justamente nas edições de maior circulação no país’ – Denise Bottmann. ‘Miséria pouca é bobagem’. Publicado no blogue Não gosto de plágio, em 30/10/2009. Disponível aqui (acesso em 26/2/2011).

Aptidão, aptidão inclusiva, adaptação

Mas voltemos ao ponto: erros e mal-entendidos grosseiros decorrentes de traduções equivocadas povoam os livros técnicos vertidos para o português com uma frequência acima do razoável. Às vezes, a quantidade e a extensão desses problemas são tão grandes que é difícil evitar a conclusão de que alguém (o tradutor, o revisor, o editor) dormiu durante o serviço ou foi deliberadamente desleixado com o seu trabalho. Tenho aqui comigo alguns exemplos a favor dessa hipótese. Mas tenho também outros exemplos, mais brandos (e mais numerosos), sugerindo que os tradutores muitas vezes reproduzem erros e mal-entendidos simplesmente porque não dominam muito bem a ‘matéria-prima’ sobre a qual estiveram debruçados – isto é, o conteúdo da obra e os idiomas envolvidos.

Esse é um ponto importante, a respeito do qual os editores de livros técnicos deveriam prestar um pouco mais de atenção: uma tradução pode resultar desastrosa tanto por falta de domínio linguístico (principalmente do português) como por falta de domínio do assunto em questão. Arrisco dizer que os melhores tradutores são aqueles que sabem se expressar muito bem em português.

Vou ilustrar o comentário acima a respeito de erros e mal-entendidos utilizando três expressões de uso corrente em biologia evolutiva, a disciplina científica que Darwin ajudou a criar: ‘aptidão’, ‘aptidão inclusiva’ e ‘adaptação’. A tradução para o português dos termos correspondentes em inglês – fitness, inclusive fitness e adaptation, respectivamente – tem dado margem a uma série de problemas.

Veja-se o caso do livro Princípios de genética de populações (Artmed, 2010), de Daniel L. Hartl e Andrew G. Clark, tradução da quarta edição (2007) de uma das mais conceituadas obras disponíveis na área. Adquiri recentemente um exemplar da edição brasileira e, dias atrás, por conta de um trabalho, fui folhear o capítulo 5 (‘Seleção darwiniana’). A certa altura, ao invés de encontrar ‘aptidão’ (fitness, no original), deparei com ‘adaptação’. O problema se repetiu logo adiante – uma, duas, inúmeras vezes. Percebi, então, que não era apenas um erro de digitação ou um mero deslize, mas uma opção deliberada feita pelo pessoal envolvido com a tradução. (Ao que parece, o termo ‘aptidão’ foi inteiramente suprimido da versão brasileira, pois sequer consta do índice, ao final do livro.) Além de grave e grosseiro, penso que o contexto – trata-se de um livro técnico, e não apenas de um livro de divulgação – dá uma maior reverberação ao erro, ampliando em muito a sua importância. Muitos leitores inadvertidos poderão reproduzir o mesmo erro, tendo agora como ‘justificativa’ o fato de que estão usando as palavras tiradas de uma conceituada obra de referência. (O livro é muito bom; após o incidente, no entanto, fiquei inseguro, com medo de outras barbeiragens que possam vir pela frente…)

Efeito cascata

Outras obras anteriormente publicadas em português já reproduziram erros de tradução envolvendo os conceitos de aptidão e adaptação – o que, claro, não deveria ser usado pelos tradutores mais jovens como justificativa para abonar suas barbeiragens. Exatamente o mesmo tipo de erro (tratar aptidão e adaptação como sinônimos) apareceu antes, por exemplo, no livro Princípios de genética de população [sic] (Funpec, 2008), de Daniel L. Hartl.

Veja-se ainda o caso do livro A economia da natureza (Guanabara Koogan, 2003), de Robert E. Ricklefs, tradução da quinta edição (2001) de uma das mais conceituadas obras disponíveis na área. Na versão em português do livro, fitness e adaptation não são tratados como sinônimos; em compensação, os termos fitness e inclusive fitness foram traduzidos por ‘ajustamento’ e ‘ajustamento inclusivo’, e não por ‘aptidão’ e ‘aptidão inclusiva’, como seria esperado. Uma bizarrice que resultou em erro igualmente grosseiro. Aptidão e adaptação são dois conceitos biológicos importantes e distintos. Não deixar isso claro para o leitor de um livro-texto é um erro grave. (O leitor interessado talvez goste de saber que ambos são detalhadamente discutidos em outra obra da Artmed; por sinal, o melhor livro-texto de biologia evolutiva disponível hoje no país, a saber: Análise evolutiva [2009], de Scott Freeman e Jon C. Herron.)

Trata-se também, como foi dito antes, de um erro sério, com desdobramentos que vão além dos bancos universitários. Assim, o que começou como uma decisão equivocada (tratar fitness e adaptation como sinônimos, traduzindo ambos por ‘adaptação’) pode se converter de imediato em uma nuvem de confusão conceitual a chover na cabeça dos leitores e, a partir daí, em um efeito cascata, chegar até os autores de livros didáticos e aos professores e alunos das redes de ensino (médio e fundamental).

O que esperar de pequenas editoras?

A preocupação com o rigor e a boa apresentação das traduções de livros técnicos deveria ser universal. Os casos citados aqui são particularmente preocupantes, pois as principais editoras envolvidas (Artmed e Guanabara Koogan) são dois gigantes do mercado editorial brasileiro.

Se as grandes editoras, que podem investir mais na contratação de bons profissionais, ainda publicam traduções ruins e difíceis de ler (uma profusão de erros e mal-entendidos em meio a frases mal-construídas), o que podemos esperar então das editoras de pequeno e médio porte?

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Biólogo e escritor, autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)