Pode ser por causa do imenso espaço ocupado pela crise aérea – ou sabe-se lá por que. Mas os principais jornais do eixo Rio-São Paulo ignoraram a iniciativa do Correio Braziliense de exumar aspectos chocantes da atuação do Itamaraty na ditadura.
É o tipo do trabalho jornalístico que merece leitura e reflexão. Segue-se, pois, apesar do tamanho, a reportagem “O pai do serviço secreto do Itamaraty”, de Claudio Dantas Sequeira. Bom proveito.
“O serviço secreto do Ministério das Relações Exteriores surgiu da mente do embaixador aposentado Manoel Pio Corrêa. Formado na Escola Superior de Guerra, o diplomata, de origem aristocrata, não teve reservas ao encampar os ideais nacionalistas fermentados por décadas entre os militares da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Na pele de executor da política externa do Brasil, ele se lançou em uma cruzada contra o comunismo, convicto de que se tratava de um mal a ser extirpado da sociedade. Sua eficiência lhe rendeu admiração e respeito na caserna, e a alcunha de ‘troglodita reacionário’ por parte dos asilados políticos brasileiros. Hoje, aos 90 anos, um lúcido Pio Corrêa vive sua rotina tranqüila como consultor privado.
Em conversa com a reportagem por telefone, Pio Corrêa – que vive e trabalha no Rio de Janeiro – admitiu ter sido o autor intelectual e material do Centro de Informações do Exterior (Ciex). ‘Isso saiu de mim, sim. Da minha cabeça’, afirmou. Como o Correio revelou na edição de ontem, o Itamaraty operou entre 1966 e 1985 uma agência de informações dedicada a monitorar os opositores do regime militar no exterior. Pio Corrêa, no entanto, preferiu não seguir adiante nas explicações, com o argumento de que ‘certas histórias não devem ser contadas’.
Há 12 anos, Pio Corrêa decidiu registrar indiretamente as suas histórias, mesmo sem explicitá-las, num livro de memórias. A obra O mundo em que vivi foi elaborada para parecer apenas um extenso relato de suas atividades como diplomata. Mas algumas informações, quando cruzadas com o arquivo secreto do Ciex e depoimentos de ex-membros do serviço, compõem um quebra-cabeça revelador.
Uma das informações mais relevantes do livro está na página 580,
A relíquia, sem dúvida, inspirou Pio Corrêa, que já se enamorara de informes e relatórios ao trabalhar no Serviço de Documentação do Ministério da Aeronáutica, no início da carreira. Fora do Itamaraty, Pio Corrêa recebia duras críticas da imprensa de esquerda e de deputados do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o que levou Juscelino Kubitschek a pedir a exoneração do diplomata, mas o então chanceler Horácio Lafer se recusou a ceder. Cinco anos mais tarde, como o próprio Pio Corrêa conta sem pudores, na página 814, ele apoiaria o golpe de Estado contra o governo de João Goulart. ‘Eu conspirava contra o governo, e a vitória da Revolução de 31 de março de 1964 representou a coroação de minhas mais caras esperanças’, escreveu.
Imediatamente depois do golpe, o presidente Castello Branco decidiu presentear o diplomata, nomeando-o como embaixador
‘Esse tipo de visita foi muito útil, pois encontrei nas polícias departamentais excelentes fontes de informação e ocasionalmente algum tipo de cooperação ativa, extra-oficial’, disse Pio Corrêa no livro. Também fizeram dezenas de incursões do lado brasileiro da fronteira, desde o Chuí a Porto Alegre, passando por São Gabriel, Pelotas e Santana do Livramento. Com freqüência, a dupla se reunia com colegas do III Exército para trocar informações.
O trabalho era acompanhado por Golbery do Couto e Silva, o general reformado que idealizaria o Serviço Nacional de Informações (SNI). ‘Cada vez que fui ao Brasil durante o período janguista, nunca deixei de trocar impressões com amigos, tanto das Forças Armadas como do meio civil, comprometidos com a causa da resistência à marcha do esquerdismo’, escreveu.
A desenvoltura do diplomata no Uruguai lhe abriria ainda mais as portas da carreira sob tutela militar. Nos idos de
Diante da administração ausente do chanceler Juracy Magalhães – autor da célebre frase ‘o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil’ -, Pio assumiu o comando da Casa. E também da política externa. Internamente, lançou uma caça aos diplomatas que considerava ‘pederastas, bêbados e vagabundos’, como diz no livro. Pio Corrêa teria sido, inclusive, o responsável pelo afastamento do compositor Vinícius de Moraes da carreira diplomática. No plano externo, decidiu reproduzir a bem-sucedida experiência uruguaia a mais uma dúzia de países. Redigiu e assinou então a portaria ultra-secreta que instituiria o Centro de Informação do Exterior (Ciex).
A existência dessa portaria foi confirmada ao Correio por meio de relatos de ex-membros do Ciex, mas o documento, por seu caráter ultra-secreto, estaria praticamente inacessível, confinado num imenso cofre localizado no subsolo do Itamaraty. Para chefiar o serviço secreto em seu início, Pio Corrêa chamou um de seus pupilos, o então secretário Marcos Henrique Camillo Côrtes. Nos primeiros meses, o serviço de inteligência da diplomacia funcionou de forma precária. Os dados enviados pelas embaixadas eram consolidados em informes datilografados em folhas comuns. Mais tarde, o Ciex passaria a trabalhar com páginas timbradas e carimbos com a sigla da agência.
A saída de Castello Branco em 1967 não interferiu nas atividades do Ciex. Pio Corrêa, prestes a se aposentar, pediu remoção no ano seguinte para a embaixada brasileira
Dos 380 brasileiros mortos ou desaparecidos durante o regime, descobriu-se 64 deles no arquivo secreto do Ciex. O serviço, além de localizar e identificar essas pessoas fora do país, facilitava detalhes de seu regresso ao Brasil. O amplo registro das atividades políticas desses asilados municiou as demais agências da repressão com dados para as sessões de interrogatórios, reconhecidamente marcadas por torturas.
Depois da análise de 20 mil páginas de informes secretos, o Correio identificou a maior parte dos diplomatas que dirigiram o Centro de Informações do Exterior (Ciex) ao longo de 19 anos. Antes de chegarem ao posto máximo do órgão, esses profissionais demonstraram sua ‘eficiência’ coordenando as atividades de perseguição política em embaixadas brasileiras. Um requisito para integrar o Ciex era ter o curso de planejamento estratégico da Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro, ou ter passado pelo treinamento de agente na Escola Nacional de Informações (Esni), em Brasília.
Diplomatas que trabalharam na comunidade de informações contaram à reportagem que eram vistos com desdém e preconceito pelos colegas. Nos corredores do ministério havia uma anedota de que os diplomatas eram classificados em três grupos distintos, segundo suas atividades. No primeiro grupo estavam os chamados ‘destiladores de quinta essência’, geralmente aqueles dedicados a temas jurídicos, de política internacional ou defesa comercial. Ocupavam uma espécie de nível superior na escala evolutiva da diplomacia.
O segundo grupo era formado pelos ‘estivadores’, diplomatas lotados em funções de administração na Secretaria de Estado. Esses funcionários, embora treinados para o exercício da diplomacia, acabavam chafurdados em meio a pilhas de papel, se transformando em meros burocratas. Ainda não haviam sido criados os cargos de assistentes e oficiais de chancelaria, e os próprios diplomatas tinham que carregar o piano da burocracia.
O terceiro e último grupo reunia o pessoal recrutado para os sistemas de informação e contra-informação. Esses diplomatas eram apelidados de ‘lixeiros’, numa referência claramente pejorativa às atividades que exerciam. Na cultura geral do Itamaraty, a espionagem era uma atividade baixa, sem glamour e dignidade, especialmente se exercida sob uma ditadura. Por causa do preconceito e da natureza da atividade de inteligência, os agentes-diplomatas acabaram por se fechar numa restrita fraternidade, que comportaria os membros da Divisão de Segurança de Informação (DSI) do Itamaraty – alguns com passagem pelo Ciex -, criado em 1967.
As mazelas, no entanto, eram compensadas por uma rápida ascensão profissional. Depois de fazerem ‘o trabalho sujo’, os diplomatas-agentes eram promovidos em menos tempo que os demais e também enviados a postos importantes no exterior. Um exame detalhado das fichas profissionais desses servidores, obtidas com exclusividade pelo Correio, demonstra como o serviço secreto serviu de atalho na hierarquia da carreira diplomática.
As atividades do Ciex podem ter passado despercebidas para a maior parte do funcionalismo público e a toda uma sociedade, mas não para a cúpula do Itamaraty. É de se esperar que o ministro de Estado e o secretário-geral soubessem o que se passava no 4º andar do Anexo I do ministério. Enquanto respondia a determinações do SNI, o serviço secreto diplomático também seguia as diretrizes da política externa – era como servir a dois amos ao mesmo tempo.
Dessa maneira, grandes nomes da diplomacia, como os chanceleres Antonio Azeredo Silveira (1974-79) e Ramiro Saraiva Guerreiro (1979-85), foram cúmplices dos trabalhos do Centro de Informações do Exterior. O mesmo ocorreu com Juracy Magalhães, que viu o Ciex nascer, Magalhães Pinto (1967-69) e Mário Gibson Barbosa (1969-1974). Guerreiro, antes de ser ministro, chefiou a Secretaria de Estado, de
Passaram pela Secretaria de Estado Jorge de Carvalho e Silva (1969-74), Dário Moreira de Castro Alves (1978-79), Carlos Calero Rodrigues (1984-85) e João Clemente Baena Soares (1979-84), que há poucos anos integrou a Comissão de Notáveis responsável por redigir o projeto de reforma das Nações Unidas. Curiosamente, coube também a um secretário-geral a decisão de preservar a memória do serviço secreto. O embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, que chefiou a Casa entre 1985 e 1990, salvou da destruição os 32 volumes – com mais de 8 mil informes – que compõem o arquivo secreto do Ciex. No alvorecer da democracia, o SNI determinou a destruição de milhares de documentos da repressão, na tentativa de apagar evidências e evitar ‘revanchismos’. Flecha de Lima se negou a cumprir tal ordem.
Um intenso debate público no Senado em meados de 2006 quase custou a nomeação do embaixador Jacques Claude François Michel Fernandes Vieira Guilbaud para a chefia da embaixada
Depois de algumas semanas, as acusações contra Guilbaud foram consideradas inconsistentes e ele recebeu o aval dos parlamentares para representar o Brasil no país africano. Ao pesquisar no arquivo do Centro de Informações do Exterior, o Correio descobriu que Guilbaud não contou toda a verdade. Ele, de fato, foi um agente do serviço secreto diplomático por quatro anos. O informe 001/79 conta sua trajetória, bem como o recrutamento em 29 de março de 1974, e os motivos que levaram a seu desligamento do Ciex em 1978. Guilbaud, segundo o documento, chegou a chefiar a Base do Ciex em Santiago, Chile (1976/77), e a de Lisboa, Portugal (1977/1978).
Na opinião da chefia do Ciex, Guilbaud careceu de capacidade técnica para o exercício das últimas funções. ‘Revelou que submetido às tensões normais e inerentes ao exercício de funções de informações no exterior, não dispõe de condições mínimas de resistência e equilíbrio emocionais, o que lhe afeta o discernimento e a capacidade de julgamento e avaliação de fatos, pessoas e situações’, argumentou o chefe do serviço secreto. Segundo ele, essas características tornaram Guilbaud ‘um alvo disponível para a oposição ativa internacional’.
Já Guilbaud diz que seu afastamento teve a ver com a descoberta de um suposto caso de corrupção envolvendo a compra do imóvel que serve até hoje de residência oficial para os embaixadores do Brasil
Confira os nomes de alguns diplomatas que trabalharam no Centro de Informações do Exterior:
Paulo Sérgio Nery
Morreu em 1979, pouco tempo depois de deixar o serviço secreto. Sua ficha funcional não pôde ser encontrada
Octavio J. de A. Goulart
Fez a ligação do Ciex com Washington até 1974. Depois foi nomeado assessor do gabinete do ministro Azeredo da Silveira. Em 1977, assumiu a chefia do Ciex, até então sob a fachada da Assessoria de Documentação Exterior. Em sua gestão a transformaria em Secretaria de Documentação de Política Exterior (Sedoc). Em 1979, virou cônsul-geral em Paris, onde acompanhou os núcleos de asilados políticos. Seu último posto foi em Georgetown, como embaixador. Morreu em 29 de dezembro de 2004
Marcos Henrique Camillo Côrtes
Tornou-se fiel amigo do diplomata Manoel Pio Corrêa ao servir em Montevidéu, em
João Carlos Pessoa Fragoso
Começou a trabalhar para o Ciex em Montevidéu, em 1966. Dois anos depois foi promovido a assistente da Secretaria Geral de Política Exterior. Seu nome consta num documento secreto de 1969, que informa sobre sua substituição no posto de ‘diretor-executivo do Centro de Informações do Exterior (Ciex) pelo segundo-secretário Paulo Sérgio Nery’. Fragoso virou chefe do Gabinete Civil do presidente Médici. Cinco anos depois seria enviado à embaixada no Vaticano, voltaria em 1977 como chefe do cerimonial. Seus serviços ainda seriam úteis ao presidente Figueiredo, de
Agildo Sellos de Moura
Serviu em Santiago do Chile de
Sérgio Damasceno Vieira
Foi ‘recrutado’ pelo Ciex apenas em 1968, quando serviu como segundo-secretário em Varsóvia, que foi usada como escala pelos brasileiros que faziam treinamento de guerrilha
Carlos Luzilde Hildebrandt
Foi um dos últimos chefes do Ciex. Passou pelas embaixadas da Bulgária e de Portugal. No informe 246 de 17 de dezembro de 1979, ele faz uma avaliação negativa das atividades de monitoramento externo ao chefe do Serviço Nacional de Informações. Na época, o SNI estava inchado e perdera muito
***
Os comentários serão selecionados para publicação. Serão desconsideradas as mensagens ofensivas, anônimas, que contenham termos de baixo calão, incitem à violência e aquelas cujos autores não possam ser contatados por terem fornecido e-mails falsos.