”A função do jornal é dar ao leitor apenas o que ele pensa que quer?”, pergunta o ombudsman da Folha de S.Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva, na sua coluna de domingo, 14, a propósito da teoria segundo a qual, pelo menos na área da cultura, o leitor cidadão virou o leitor consumista – desinteressado, portanto, do jornalismo de grandes vôos.
”Creio que não”, responde o próprio Lins da Silva. “Claro que [a imprensa] precisa satisfazê-lo, mas também deve desafiá-lo.”
Eis aí, em poucas palavras, o troco para a complacência, o nivelamento por baixo e o espírito de rendição com que um número de colegas – muito maior, talvez, do que seria aceitável – adentra todos os dias a redação de um periódico.
Como se dessem de ombros diante de qualquer sugestão de pauta que ouse confrontar o leitor com uma abordagem provocativa – desconfortável, eventualmente – dos fatos do noticiário.
Se o jornalismo é uma batalha inglória, como dizem os mais céticos, o jornalismo de idéias seria uma batalha perdida.
Não é, mas a tantos convém pensar assim. Pela simples razão de que o desafio ao leitor que o ombudsman da Folha defende é antes de tudo um desafio ao jornalista. Ele precisa dominar o assunto, pelo menos para o gasto jornalístico; ter imaginação para construir ao redor do tema uma pauta à altura da pretensão; apurar e articular os fatos e os conceitos; e saber escrever – mais ainda do que se deve cobrar de costume – com clareza, elegância e simplicidade.
Dá um trabalho de cão e nunca se sabe de antemão se o resultado compensará.
Mais fácil dar de ombros e entregar os pontos com um “ahhh, quem é que vai querer ler isso?”.
A saída pelo facilitário se apóia no argumento de que o leitor não está a fim de ser perturbado com matérias que rompam com as suas expectativas e o obriguem a ser menos “consumidor” e mais “pensador”.
Não que o argumento seja falso de cabo a rabo. Mas é o caso de invocar o direito das minorias: a parcela, vá lá a palavra, diferenciada do leitorado da chamada imprensa de qualidade faz jus a mais do que o trivial variado que recebe por seu dinheiro e que pode até ser bom o bastante para a maioria.
Essa parcela forma uma elite – a elite dos curiosos. Eles não são necessariamente nem os leitores mais instruídos nem os mais cultivados. São aqueles que por algum razão ou combinação de razões são receptivos a idéias novas – se não sobre qualquer assunto, sobre assuntos pelos quais já se interessavam.
Esse leitor não se sente amedrontado por matérias que saiam de convencional – desde que elas sejam capazes de conversar com ele (é onde entra, para o jornalista, o trabalho de cão de que se falou acima), o que implica não olhá-lo de cima para baixo.
É o que os jornais poderiam ter feito aproveitando o gancho da passagem dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Foi o que ocorreu a este blogueiro ao ler o editorial – quem diria! – da Folha de domingo (14) sobre o assunto.
Indo além do óbvio sobre a atualidade do documento e o desrespeito continuado aos direitos humanos pelo mundo afora, o editorialista provocou o leitor com a lembrança de que nem todos consideram “realmente universais” os valores implícitos na Declaração.
Segundo um certo raciocínio com o qual o texto vai às vias de fato, “o que é válido para uma cultura não é necessariamente válido para qualquer outra, e a Declaração de 1948 resulta de uma circunstância histórica e de uma herança filosófica particular: a do Iluminismo ocidental”.
Ou seja, práticas hediondas como a excisão ritual do clitóris não deveriam merecer o repúdio universal porque seriam expressões culturais não menos determinadas pelos costumes e a história do que a própria noção da universalidade dos direitos.
Numa reportagem, essa discussão alcançaria muito mais leitores e os desafiaria a percorrer o terreno acidentado do relativismo cultural. Jornalismo de idéias é isso aí.