Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pausa tática para o avanço estratégico

As notícias nos dão conta de que, em reunião onde estavam presentes pelo menos oito de seus ministros, além do líder do governo no Senado Federal, na quinta-feira (13/1), o presidente da República determinou que se prepare um projeto de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa (LGC) e que se transforme a Ancinav apenas em agência de fomento e fiscalização [veja, nesta edição, ‘Movimento para superar o impasse’, de Nelson Hoineff, com remissão abaixo].

A primeira impressão, a se basear inclusive na reação manifesta dos diferentes atores interessados na questão, é de que o governo teria recuado e que os grandes empresários da radiodifusão e do audiovisual, mais uma vez, fizeram prevalecer o seu imenso poder e obtiveram nova vitória. Ganharam tempo e impediram a alteração do ‘vazio’ regulatório do setor que até agora lhes tem favorecido.

Essa pode não ser, todavia, uma impressão totalmente correta. E por que não? Para responder a essa pergunta é necessário que se faça uma pequena digressão.

Não há no atual governo um locus institucionalmente definido para a formulação das políticas públicas de comunicações. [O plural ‘comunicações’ tornou-se necessário a partir da revolução digital que provocou a convergência tecnológica que vem diluindo as fronteiras entre telecomunicações, comunicação de massa e internet, incluindo aí, naturalmente o audiovisual.] O Ministério da Cultura (MinC), corretamente, tomou a iniciativa de mobilizar os seus recursos e propor o projeto da Ancinav que, ao tratar do audiovisual, em tese, avança por questões que dizem respeito também a outros setores do governo.

O primeiro deles, é claro, seria o Ministério das Comunicações (MiniCom). Desde os tempos do ministro Sérgio Motta, ainda no início do primeiro governo de FHC, que se fala – oficialmente – na elaboração de um ‘marco regulatório’ para as comunicações brasileiras. Pelo menos 6 (seis) pré-projetos de uma Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa chegaram a circular nos bastidores do governo antes do falecimento do ex-ministro. Posteriormente, ao tempo do Ministro Pimenta da Veiga, uma nova versão do pré-projeto chegou a ser colocada em consulta pública pelo MiniCom. Mas ficou nisso.

Ausência inaceitável

Na formulação do plano de governo do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, a necessidade de se criar, imediatamente após a posse, um grupo de trabalho para elaborar uma proposta de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa, a ser amplamente discutida com a sociedade, foi sugestão majoritária. Razões desconhecidas, todavia, fizeram com que esse tema não aparecesse na versão final do plano de governo tornado público.

Recentemente, o atual secretário-executivo do MiniCom retomou o tema e defendeu publicamente a necessidade de formulação de uma Lei Geral. Na verdade, o Balanço das Atividades disponível no site do MiniCom [(www.mc.gov.br), em 12/01/2005, às 12:27:50] relaciona, entre as perspectivas para 2005, a intenção do ministério de ‘contratar, por meio de licitação, consultoria especializada para analisar a legislação [para os serviços de comunicação de massa] vigente e propor-lhe alterações’.

Independente das eventuais diferenças – políticas ou outras – que existam entre o Ministério da Cultura e o das Comunicações, o presidente da República determinou a elaboração de um projeto de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa ‘costurando’ os estudos já realizados ou em realização nos dois ministérios, com a participação/coordenação da Casa Civil. A Ancinav – ou que outro nome venha a ter – passaria então a ser sim uma agência reguladora das comunicações funcionando dentro de um amplo marco regulatório.

A possibilidade concreta de que o país finalmente venha a ter um marco regulatório para as comunicações, além de estabelecer as condições legais de funcionamento para a futura Ancinav, supre uma ausência inaceitável para um setor com tamanha centralidade política e importância econômica no mundo contemporâneo. Desse ponto de vista, a primeira impressão sobre a decisão do presidente da República em relação aos rumos da Ancinav pode não estar correta e abre-se, então, uma nova perspectiva.

Normas e técnicas

Supondo, portanto, que há uma possibilidade de avanço democrático com a elaboração de um novo marco regulatório, restaria o envolvimento da sociedade civil no debate e na elaboração concreta do projeto de lei.

Para ampliar o debate e envolver o maior número possível de vozes, arrisco, a seguir, quatro parâmetros referenciais preliminares:

** A primeira exigência de um novo marco regulatório é a integração atualizada dos diferentes áreas das comunicações. Por exemplo: televisão (aberta, a cabo, MMDS e DTH), telefonia celular e internet estão em acelerado processo de convergência. Para se ter uma idéia do caos existente: a TV a cabo é regulada por lei, a MMDS por portaria e a DTH por decreto. Além disso, a TV por assinatura está submetida à Lei Geral de Telecomunicações sendo, portanto, regulada pela Anatel. Já a radiodifusão aberta continua regida (?) pelo ultrapassado Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962.

** Um segundo ponto seria a regulamentação do capítulo da Comunicação Social da Constituição de 1988. Lá está o veto ao monopólio e ao oligopólio da mídia – vale dizer, à propriedade cruzada de diferentes meios; a preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; a promoção da cultura nacional e regional; o estímulo à produção independente; a regionalização da produção cultural, artística e jornalística; e a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Será imprescindível, portanto, não só a conceituação legal dos sistemas estatal e público, até hoje inexistente, como a definição de formas de financiamento do sistema público.

** Um terceiro ponto seria a revisão e atualização da legislação da radiodifusão comunitária, democratizando efetivamente as condições de outorga e retirando dela as restrições que impedem o funcionamento e a expansão legalizada da área.

** E quarto, a definição das condições normativas e técnicas para a transição das comunicações analógicas para digitais – em particular, a televisão digital – estabelecendo os mecanismos que permitam a adequação da política industrial às necessidades da maioria da população, ao avanço tecnológico e à inclusão digital.

Concessionários públicos

Parece correto afirmar que o debate em torno dos projetos do Conselho Federal de Jornalismo (e, depois, ‘dos Jornalistas’) e da Ancinav, que ocorreu ao longo de 2004, colocou as comunicações na agenda pública de discussão. Restam 19 meses deste governo para que o projeto de lei seja elaborado, discutido e submetido ao Congresso Nacional. É pouco tempo, sem dúvida.

No entanto, sem ilusões, mas com realismo político, importa a mobilização dos movimentos historicamente comprometidos com a democratização das comunicações em torno de um elenco mínimo de pontos que orientem a elaboração do projeto de lei.

Até agora, a história das comunicações entre nós tem visto prevalecer os interesses do estado e/ou dos empresários do setor. O avanço democrático com uma nova Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa só virá se a negociação acontecer em torno do interesse público e não de interesses privados. Neste caso, os diferentes atores envolvidos devem estar dispostos a ceder. Sobretudo os atores – concessionários públicos – que desfrutam de enorme influência sobre a sociedade não podem continuar a exercer um ‘quase’ poder de veto quando seus interesses privados são contrariados.

Seria politicamente realista trabalhar com essa hipótese?

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª. ed., 2004)