A Folha publica hoje um vigoroso editorial [ver abaixo] sobre um acordo diplomático que vem sendo negociado em sigilo entre o Vaticano e o governo brasileiro.
O jornal desanca não só os termos da concordata pretendida pela Santa Sé, mas, principalmente, o segredo com que as conversações têm sido tratadas. Daí o título do editorial, “Acordo sigiloso”.
Penso que o jornal está mais certo ao criticar as vontades da Igreja do que ao protestar contra o segredo dos procedimentos. Negociações diplomáticas são assim mesmo – e o editorialista há de saber perfeitamente bem disso.
As críticas se voltam contra três desejos do Vaticano:
1. O Brasil tornaria obrigatórias as aulas de religião nas escolas públicas do ensino fundamental [da primeira à oitava série].
2. O Brasil criaria mecanismos constitucionais para barrar qualquer tentativa de ampliação dos casos em que o aborto seria legal.
3. O Brasil estabeleceria formas de impedir que a Igreja sofra ações, principalmente trabalhistas, na Justiça.
Depois de expôr os porquês de suas irrefutáveis objeções aos intentos da Santa Sé – que, antes de tudo, ignoram o princípio republicano da separação entre Estado e religião no Brasil –, a Folha proporciona ao leitor um suspiro de alívio:
“Felizmente, existem indícios de que o governo […] não tem nenhuma intenção de acatar a proposta de concordata.”
Ocorre que o leitor do Estado, principal concorrente da Folha, já sabe desses indícios – dos quais o editorial não dá detalhes – desde anteontem, dia 8, graças à excelente matéria [ver abaixo] do seu correspondente em Genebra, Jamil Chade, deslocado para a cobertura da visita de Bento 16, a ponto de vir no mesmo vôo.
“País recusa tratado com Santa Sé”, informou o jornal. O repórter apurou que o chanceler Celso Amorim nem mesmo participaria do encontro entre o papa e o presidente Lula. Afinal, Chade soube com antecedência o que a Folha menciona no editorial de hoje: foi o Itamaraty que alertou Lula para tirar o time desse projeto, por sua implicações indesejáveis para o país.
A matéria do Estado:
“O Vaticano não conseguirá atingir um dos seus principais objetivos políticos na viagem do papa Bento XVI ao Brasil a partir de amanhã: a assinatura de um acordo com o governo garantindo à Igreja todos seus direitos no território nacional, inclusive a consolidação de todas as isenções fiscais que recebe, obrigações no setor educacional e mesmo a autorização para que missionários possam entrar em reservas ecológicas e indígenas. O governo ainda teme que o acordo poderia ser, no futuro, interpretado como uma forma de dificultar mudanças nas leis do aborto, já que deixaria claro que o Estado brasileiro e o Vaticano compartilham dos mesmos valores.
A embaixadora do Brasil na Santa Sé, Vera Machado, negou ontem em Brasília que o governo brasileiro já tenha tomado qualquer decisão sobre o assunto. “O acordo está em negociação e não há nenhuma posição pré-fixada em não assinar”, afirmou.
O Brasil se recusou a assinar o acordo proposto no final do ano passado e sugeriu uma versão light do tratado, apenas citando as boas relações entre o Vaticano e o Estado brasileiro e remetendo todas as questões à Constituição e ao Código Civil.
O Estado apurou que o chanceler Celso Amorim nem sequer irá ao encontro entre o papa Bento XVI e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele usará uma desculpa protocolar: como o encontro ocorrerá apenas entre o papa, Lula e o secretário de Estado do Vaticano, Tarcisio Bertoni, não haveria motivo para a presença do chanceler. O Vaticano não enviará seu “ministro” responsável pelas Relações Exteriores, Dominique Mamberti, já que se trata de uma viagem pastoral.
Protocolo à parte, Amorim conseguiu evitar assim o encontro e tratar do acordo. Do lado brasileiro, apenas Vera Machado estará presente. Segundo ela, o acordo não está na agenda do encontro. A embaixadora reafirmou que essa é uma visita pastoral do papa e não serão discutidos assuntos de governo. “O acordo será discutido em outra ocasião.”
Lula prometeu uma visita ao Vaticano em setembro deste ano para tentar garantir boas relações entre o maior País católico do mundo e a Igreja. Em todo seu governo, o presidente esteve em Roma apenas no funeral do papa João Paulo II.
Quanto ao acordo, o Vaticano alega que vários governos contam com acordos similares com a Santa Sé, entre eles a Itália. Um dos países que recentemente renovaram seu acordo com o Vaticano foi Portugal, em 2004. O entendimento reconhece a personalidade jurídica da Igreja, os feriados religiosos e isenta o clero de deveres judiciais. Mas o acordo com Portugal inclui temas mais delicados. Pela concordata, o casamento religioso é equiparado ao casamento civil, o divórcio passa a ser algo “grave” e ainda estabelece a “educação moral e religiosa católica”. No caso do Brasil, diversas leis garantem certos privilégios à Igreja, como isenção fiscal e reconhecimento da estrutura de poder.
Mas o que o Vaticano queria agora é a união de todas essas leis em um documento único. No fim do ano passado, a Igreja enviou a proposta ao governo, o que pegou Brasília de surpresa. O Itamaraty convocou o Ministério da Fazenda para debater o que isso implicaria às contas nacionais, já que a isenção não é dada apenas às paróquias, mas seminários e outras entidades religiosas.
Na prática, o acordo não significaria uma maior isenção imediata à Igreja. Mas engessaria o governo para o futuro em relação a qualquer mudança. Além disso, o governo teme que a bancada evangélica no Congresso (10% dos parlamentares) se mobilize para obter acordo similar para suas igrejas.
O acordo ainda poderia servir como mais um mecanismo para que o Vaticano garantisse o ensino religioso nas escolas públicas. A Igreja, em sua proposta inicial, fala de “ensino católico”, mas resolveu amenizar os termos para tentar um acordo, o que nem assim foi aprovado pelo governo.
Apesar de não falar diretamente de aborto, o governo teme que o acordo possa ser usado no futuro pela Igreja para pressionar contra reformas da lei que permitam o aborto.
Outro ponto destacado pelo acordo que assustou o governo foi a proposta de que missionários religiosos tenham livre acesso e proteção em reservas indígenas e ambientais, como a Amazônia. A Igreja ficou preocupada com a morte da irmã Dorothy Stang e a citação do tema no acordo seria uma forma de dar proteção aos missionários.”
O editorial da Folha:
“A chegada do papa Bento 16 é motivo de justo júbilo para os católicos brasileiros. Além da visita do sumo pontífice, o país vai ganhar o primeiro santo genuinamente nacional na figura de frei Galvão, que será canonizado amanhã em São Paulo.
A viagem papal traz também motivos para preocupação. Há informações de que a Santa Sé prepara secretamente com o Brasil uma concordata, isto é, um acordo diplomático para tratar de ‘interesses comuns’.
A existência de negociações entre os dois Estados foi confirmada à Folha pelo próprio dom Tarcisio cardeal Bertone, que ocupa a segunda posição na hierarquia da Igreja Católica. Os termos do tratado, entretanto, permanecem envoltos num manto de sigilo.
É justamente aí que reside o problema. Se envolve governos e é secreto, deve ser ruim. O princípio republicano da transparência dos atos do poder público exige que as autoridades brasileiras informem os cidadãos do que está em pauta.
Pelo que a Folha conseguiu apurar, a Santa Sé pede que o Brasil torne as aulas de religião no ensino fundamental (1ª a 8ª séries) público obrigatórias -hoje elas são optativas para o aluno-, crie mecanismos constitucionais que dificultem uma eventual ampliação dos casos de aborto legal – hoje ele é permitido se a gravidez ameaçar a vida da mãe ou resultar de estupro- e encontre formas de evitar que a igreja sofra ações na Justiça, principalmente trabalhistas.
O Vaticano tem, por certo, o direito de propor ao Brasil o que bem lhe aprouver, mas os três pleitos apresentados são, do ponto de vista de um Estado laico e republicano, inaceitáveis.
Impor a todos os alunos aulas de religião é uma flagrante e intolerável violação ao inciso VI do artigo 5º da Constituição, que assegura a liberdade de consciência e o livre exercício dos cultos religiosos. No mais, a introdução das aulas de religião na rede pública, ainda que facultativa para o aluno, é um dos erros da Carta de 1988 que o Congresso Nacional deveria rever.
No que diz respeito ao controverso tema do aborto, os argumentos em favor da descriminalização são contundentes. Não apenas a igreja mas qualquer ser humano dotado de um mínimo de sensibilidade é contra o procedimento. Daí não se segue que as mulheres que o fazem clandestinamente devam ser colocadas na cadeia. O assunto precisa ser tratado como uma questão de saúde pública, não de moral.
Também é impossível ao Brasil atender ao pedido de isentar a igreja de prestar contas à Justiça. Fazê-lo implicaria rasgar toda a Constituição.
Felizmente, existem indícios de que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, alertado das implicações pelo Itamaraty, não tem nenhuma intenção de acatar a proposta de concordata. Lula deverá dizer hoje um polido ‘não’ ao papa ou, na pior das hipóteses, prolongar as negociações ‘in saecula saeculorum’. E, nisso, a atual administração é especialista.”
P.S. Essa última frase entrou no editorial como Pilatos no Credo.
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