Temo que 90% dos leitores de jornais e revistas – que por sua vez representam pouco mais de 1/3 da população adulta brasileira – não têm informação, muito menos opinião fundamentada, sobre a principal questão do segundo governo Lula – a política do gasto público federal.
O tema praticamente passou incólume pela campanha eleitoral. E na imprensa só aparece entre aspas, por assim dizer: em artigos, editoriais, entrevistas e declarações públicas reproduzidas, aqui e ali acompanhados de gráficos e tabelas que podem, ou não, descrever adequadamente a evolução das contas do governo.
Jornalismo declaratório, em suma. Jornalismo preguiçoso, portanto.
Até anteontem, sexta-feira, o que se tinha era a versão dos economistas, colunistas e políticos não alinhados com o lulismo, ou em franca oposição a ele, e a versão do presidente e das principais vozes petistas.
Os primeiros afirmam que sem que se meta a tesoura nas despesas correntes do governo – que, em proporção ao PIB, subiram de 16,1% no primeiro ano da atual administração para os 18,6% estimados para 2006 – não haverá queda de juros capaz de alavancar o crescimento econômico porque o Executivo ficou sem dinheiro para gastar em investimentos produtivos.
O governo responde que é perfeitamente possível recuperar a capacidade de investimento do Estado nacional sem cortar despesas. Do presidente Lula: “Tem gente que só fala em corte, corte, corte; tem de parar de falar nisso e falar em crescimento.” E ainda: “Todo mundo fala em corte. Acontece que tem pouco de onde cortar.”
De seu lado, o neolulista Delfim Netto diz que, além de considerá-los impraticáveis, os cortes são desnecessários. Bastaria controlar o ritmo de crescimento do gasto. “Cortar é conversa para boi dormir”, mata o assunto o czar da economia na ditadura, já há algum tempo um dos interlocutores mais ouvidos pelo presidente.
Mas na sexta-feira aconteceu algo que já não permite à mídia se limitar a “ouvir as partes”, sem se dar ao trabalho – que exige empenho, mas não é nenhum bicho de sete cabeças – de apurar, esmiuçar, organizar e expôr de forma ampla e clara não só a numeralha miúda das finanças federais, mas a sua evolução previsível (conforme os diversos cenários de expansão do PIB, entre outros indicadores).
E, principalmente, as alternativas realistas para o desempenho da economia nos próximos anos, com ou sem os cortes que muitos acham indispensáveis. Fazendo isso, deixaria claro também se Lula tem razão quando diz que “tem pouco de onde cortar”. Indicaria ainda os eventuais ganhadores e perdedores do reforço da austeridade fiscal, pois essas coisas não são exatamente neutras do ponto de vista social.
Com isso, o leitor interessado poderia julgar por si o que está em jogo – algo de que o eleitor foi privado na campanha tanto pelo lulismo (“cortar gastos é cortar o Bolsa-Família”) como pelo alckmismo (“o corte deve começar pela corrupção”).
Pois na sexta-feira, o candidato petista derrotado ao governo de São Paulo, economista Aloizio Mercadante – caído em desgraça por ter sido o seu coordenador de campanha, Hamilton Lacerda, acusado de entregar o dinheiro para a compra do dossiê aos aloprados Gedimar e Valdebran – reapareceu no Senado com um discurso desconcertante.
Ele criticou “o velho desenvolvimentismo” e “um certo romantismo econômico” dos que
defendem a idéia de que é possível crescer aceleradamente, sem pressão inflacionária, baixando os juros e até aumentando o gasto corrente. “Eu advogo outro caminho”, afirmou.
O seu modelo ecoa o da oposição: “Como aumentar a taxa de investimento? Cortando gastos de custeio, reduzindo os gastos correntes, contendo essa expansão dos gastos correntes.” Ele defende também uma nova reforma da Previdência, com a extensão da idade mínima para a aposentadoria pelo INSS.
O senador, que antes do escândalo do dossiê era cotado para ministro de Lula II, pois a sua derrota em São Paulo era pule de 10, como se diz no turfe, nem é a rigor o primeiro petista de envergadura a quebrar o tabu da questão do gasto.
Na mesma sexta-feira, a sempre competente Claudia Safatle, diretora adjunta de Redação do Valor, aproveitou a sua coluna semanal para chamar ao debate outro companheiro tido como ministeriável, o ex-prefeito de Belo Horizonte Fernando Pimentel.
No artigo “O jogo econômico no campo da política”, ela o cita como tendo dito: “A questão fiscal é um nó poderoso que precisa ser desatado.” Nesse nó, ele inclui o cavalar déficit da Previdência, coisa de R$ 40 bi este ano.
Ele não nega o argumento da colunista de que implementar um programa de ajuste fiscal será “um enorme exercício de engenharia política, pois se terá que se escolher quem vai perder, ou, na melhor das hipóteses, quem deixará de ganhar”.
Mas, vê uma luz no fim do túnel. Suas palavras: “Acho que o país está agora maduro para abrir essa discussão e o presidente Lula talvez seja o personagem da política brasileira mais autorizado a fazer isso. Qualquer outro que viesse a propor essa discussão seria visto como alguém que está querendo tomar dos pobres. Mas Lula, não. Ele tem esse aval e poder dizer que quer racionalizar o gasto público para poder dar mais justamente aos que têm menos.”
A esta altura, não será pedir demais à imprensa que deixe de ser preguiçosa e leve o público a enxergar o problema com nitidez e por todos os seus lados – sem a mediação das aspas.
Guardadas todas as imensas proporções, é o que Al Gore faz com a questão do aquecimento global no filme imperdível “Uma verdade inconveniente”, baseado no seu livro do mesmo nome.
Está mais do que na hora.
P.S. Qual é a do Senado?
Na semana passada, a Folha revelou que o tucano Eduardo Azeredo, o precursor do valerioduto, tem um projeto para controlar o acesso dos brasileiros à Internet. (Leia neste blog a nota “Deixem os internautas em paz”). A revelação tirou a matéria da pauta de votações da comissão de Constituição e Justiça da casa.
Hoje a mesma Folha informa que tramita na comissão de Educação um projeto do senador Marcelo Crivella, do evangelismo fluminense, hoje abrigado no PRB, para obrigar a imprensa, sob pena de multa e pena acrescida por crime de calúnia e difamação, a só publicar notícias “potencialmente” ofensivas à honra depois de “criteriosa” investigação prévia da veracidade da denúncia e da autenticidade dos eventuais documentos em que se baseia.
O projeto saiu de pauta por ter recebido dos pareceres conflitantes: o da senadora petista Fátima Cleide, de Rondônia (a favor) e o do senador e líder da bancada do PSB Antonio Carlos Valadares, de Sergipe (contra).
Para a senadora, é preciso “coibir a atuação leviana dos meios de comunicação”. Para o senador, a Constituição já pune isso.
Argumenta: “Se a publicação de notícias falsas é condenável, não se pode por outro lado exigir que os órgãos de imprensa assumam as funções investigativas próprias das autoridades competentes, estas sim incumbidas de descobrir a verdade das denúncias que venham a motivar notícias e reportagens.”
O presidente da ABI, Maurício Azedo, acrescenta que o artigo 220 da Constituição garante a irrestrita manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo.
Desta vez, patrões e empregados ficaram do mesmo lado. Tanto a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) – a mesma que teve a baldada iniciativa de propor a criação Conselho Federal de Jornalismo – condenaram o projeto.
Do presidente da Fenaj, Sérgio Murilo: “É uma lógica burocrática capaz de inviabilizar uma investigação. Baseado em informações reais, a prova, em último casao, é tarefa da Justiça e não do jornalista.”
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