Agora que ele apareceu na primeira fila, sentado ao lado da rainha Elizabeth, na foto oficial da recepção aos líderes do G-20 no Palácio Buckingham, em Londres, e agora que a BBC flagrou o americano Barack Obama dizendo, numa roda, que “esse é o cara, eu adoro esse cara, ele é o político mais popular da Terra”, talvez a imprensa brasileira se anime a tratar com menos superficialidade, ironia, ou mesmo sarcasmo, as declarações do presidente Lula – e, no embalo, as posições do governo brasileiro sobre a crise mundial.
Falando sério. Seja quando ele sai com uma de suas tiradas de gosto duvidoso – a exemplo da “gente branca de olhos azuis”; seja quando destaca o papel de um “Estado forte” diante dos problemas da atualidade; quando adverte para o risco de um “terremoto social e político”, em decorrência da explosão do desemprego na recessão que se propaga; ou ainda quando anuncia que o Brasil desta vez não vai pedir dinheiro ao FMI, mas vai pôr dinheiro no fundo de mais de US$ 1 tri para incentivar a economia global, o tratamento que a mídia da casa lhe dá é no mínimo inconsequente.
Não se propõe que, no lugar disso, o aplaudam ou, pior, embarquem numa constrangedora louvação da importância que lá fora se atribui crescentemente ao Brasil para a recuperação econômica internacional – algo que seria reminescente da ridicularia do “mais uma vez a Europa se curva…”.
Se bem que o Brasil em alta é uma pauta à parte. Já é tempo de tratar do efeito combinado das presidências Fernando Henrique e Lula – e das suas pessoas – para a nova apreciação do país no exterior. Já são catorze anos de uma paradoxal continuidade que aqui dentro os dois lados se recusam a reconhecer, mas que lá fora é vista como um ciclo sui-generis de expansão da presença brasileira, ancorado em duas figuras incomuns, somando-se aos fortes ganhos de modernização da economia nacional. Fica o registro.
De imediato, propõe-se apenas um pouco mais de densidade jornalística, para se ir além do mero e mandatório registro das falas de Lula. Trata-se de situar, explicar, ir aos bastidores e apontar os seus eventuais pontos cifrados, ou as mudanças de ênfase do que declara. E, mais ainda, em conexão com isso, contar como vem sendo construída e com quem vem sendo articulada a política externa brasileira para a crise.
Coisa que a imprensa estrangeira de qualidade – nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Espanha – faz sem pensar duas vezes com as manifestações dos seus líderes, mesmo, como frequentemente acontece, para criticá-los por elas.
Pelo menos dela não se poderá dizer que chuta o pau da barraca antes de erguê-la.
Nos jornais brasileiros, uma abordagem mais ambiciosa poderia aprofundar, por exemplo, a questão da aparente inconsistência de Lula quando uma hora ele insiste em expor a responsabilidade do mundo desenvolvido por isso que está aí – e do que a referência aos brancos de olhos azuis é apenas a parte mais apimentada – e outra hora, à maneira de Obama, diz que o que interessa é olhar para a frente.
“Se encontrei um cidadão moribundo, baleado, não vou ficar perguntando quem deu o tiro e onde está a bala, mas levar a vítima ao hospital para salvá-la”, comparou Lula numa entrevista a bordo do trem que o levava de Paris a Londres, na véspera da reunião do G-20. “Depois a gente discute o resto.”
Mas, na antevéspera, falando em Doha, no Catar, na reunião América do Sul-Países Árabes, ele se dedicou a perguntar “quem deu o tiro”, culpando as grandes potências econômicas não só pela crise, mas pela degradação ambiental, pelos desequilíbrios no comércio e pela insegurança coletiva.
Podia ter acrescentado que os emergentes fazem a sua parte – no deflorestamento da Amazônia, na expansão predatória do sistema de usinas hidrelétricas na China, para ficar só nisso, por enquanto.
Em compensação, na semana passada, pouco antes de apontar o dedo (em público) para os brancos de olhos azuis, o que dá no mesmo do que falar dos desenvolvidos irresponsáveis, ele citou o seu próprio comportamento em momentos diferentes para fazer um mea-culpa (em privado).
Disso não se saberia se o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, seu interlocutor na ocasião, não o entregasse, numa surpreendente inconfidência que, a propósito, ressalta o pouquíssimo que a imprensa, na grande maioria das vezes, apura do que os governantes se dizem entre quatro paredes.
O fato é que, numa coletiva, ao lado de Obama, na quarta-feira, 1, em Londres, Brown contou que, na conversa entre ambos em Brasília, Lula lhe dissera que, quando líder sindical, culpava o governo, quando líder da oposição, culpava o governo, e quando virou governo, passou a culpar a Europa e a América.
Brown usou essa confissão para dizer que também Lula reconhece que a crise é um problema global que requer uma solução global. Por que Lula se abriu assim com Brown são outros quinhentos, em cujo rastro um repórter imaginativo bem que poderia enveredar.
Castelo de Areia em três tempos
Com uma reportagem, uma entrevista e um artigo, o jornal Valor bateu a concorrência em matéria de clarear as idéias do leitor sobre a operação da Polícia Federal em cima da empreiteira Camargo Corrêa.
Assinada por Juliano Basile e Rafael Rosas, a reportagem, sobre a reação da PF à acusação de buscar deliberadamente incriminar a oposição e poupar o PT ao divulgar trechos de gravações sobre doações a políticos em campanha, foi a mais arrumada de todas quantas saíram na quarta-feira com base numa entrevista do diretor-geral da PF, Luiz Fernando Corrêa.
A matéria registrou mais claramente que as outras a alegação de Corrêa segundo a qual os federais não deram sequer publicidade à operação no dia em que ela ocorreu e que a responsabilidade pela divulgação foi do juiz da Sexta Vara Criminal Federal de São Paulo, Fausto de Sanctis, que, “ao autorizar delegados a agir perante as pessoas suspeitas de crimes, tornou público o seu despacho.
Incidentalmente, foi ele quem excluiu o PT, o PTB e o PV da lista de partidos citados nas conversas grampeadas de diretores da construtora. Salvo engano, nenhum jornal foi atrás dele para saber por que. [Os nomes só reaparecem na versão intregral do relatório.)
Na quinta-feira, 2, o Valor deu uma entrevista – de praticamente uma página inteira – com outro federal, o delegado Roberto Troncon, chefe da Diretoria de Combate ao Crime Organizado, da PF. E, nessa condição, responsável direto por todas as operações policiais no país contra os suspeitos de crimes financeiros.
Conduzido pelo repórter Caio Junqueira, o pingue-pongue, intitulado “Foco é o crime financeiro e não o Congresso”, revela, como a edição do texto destacou, que a Operação Satiagraha, do delegado Protógenes Queiroz, “da forma como foi conduzida, foi uma exceção absoluta” – uma em 288 investigações do gênero.
“Ela significa 0,003% do que fizemos, e a imprensa tem batido que cometemos grandes erros”, contesta Troncon. Ele é duro com Protógenes:
“A Satiagraha não foi erro de uma instituição, mas de uma pessoa que ao longo de uma determinada trajetória criou uma série de circunstâncias de modo ardiloso e muito bem pensado para criar um fundo de teoria de conspiração, que todo mundo conspirava contra a investigação para justamente manter-se for a dos controles que existem e ao final querer buscar uma plataforma política, que é o que ele está tentando fazer agora.”
Por fim, o artigo que ajudou o Valor a se sobressair no tratamento da controvérsia sobre a mais recente razzia da Polícia Federal, é da colunista Maria Inês Nassif. Chama-se “Todos partidos para o castelo de areia”.
Fique-se com os seus dois primeiros parágrafos:
‘Então, ficamos combinados: quando uma operação policial pegar um partido com a boca na botija, fazendo caixa dois com dinheiro de empreiteira, o responsável pela investigação deve acessar o site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e copiar e colar (ctrl C, ctrl V) o nome de todos os partidos registrados oficialmente. Segundo os líderes dos partidos de oposição que foram citados na Operação Castelo de Areia – uma investigação originalmente motivada por denúncias de que a empreiteira Camargo Corrêa teria cometido supostos crimes financeiros, de lavagem de dinheiro e de evasão fiscal – é pouco elegante denunciar como implicados na Operação apenas aqueles contra os quais foram levantadas provas. Não acusar o PT, o PV e o PTB é prova do partidarismo da Polícia Federal, que teria sido governista, segundo seus detratores, mesmo apontando igualmente, como beneficiários de supostas doações ilegais que teriam sido feitas pela construtora, os partidos governistas PP, PSB, PDT e PMDB.
A regra não conta, todavia, quando o PT e seus aliados são o centro da investigação. No escândalo do ‘mensalão’, o caso levado de forma mais discreta foi o do caixa dois da campanha do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), que usou em 1998 o mesmo esquema que o PT e seus aliados, para arrecadar dinheiro de campanha. Não seria de bom tom, afinal, dar grande publicidade ao caso do tucano mineiro.”
Cada qual a seu modo, a reportagem, a entrevista e o artigo fizeram a diferença em relação ao que já saiu na imprensa sobre a investigação na Camargo Corrêa. Resumem, de certa forma, o que se espera de um jornal numa hora dessas: registros noticiosos de alta qualidade; entrevistas fortes e espaçosas com quem tenha de fato o que declarar sobre o rolo; e comentários na contramão das verdades embaladas às pressas em material que não resiste a um feixe de luz de crítica fundamentada.