Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para começar a semana de alma leve

O texto abaixo é para quem gosta de texto. Saiu ontem no caderno Aliás, do Estado. Tem por título A língua não é a Gisele Bündchen. É da escritora portuguesa Inês Pedrosa, autora, entre outros, do romance Fica comigo
esta noite.

Como diria o também português Saramago, a propósito de outro compatriota, Inês ‘escreve tão bem que dá vontade de lhe bater’.

Guardei o artigo para compartilhá-lo hoje com o eventual leitor que não o tenha lido ontem, porque me ocorreu que poderia ser uma forma de começar a semana de alma leve. Podem crer: é um mel.

A expressão “acordo ortográfico” provoca-me um cansaço fulminante. Quando alguma coisa me decepciona muito, adormeço. Num minuto, esteja onde estiver, o que espanta os próximos, que me conhecem como insone militante. Um psicanalista explicou-me que se trata de uma reacção saudável do inconsciente. Útil, pelo menos, tem sido. Mas nesta questão da ortografia, sempre que abro os olhos, vejo mais uma figura da cultura portuguesa bradando contra “o colonialismo dos ex-colonizados”. Urrando contra a humilhação estatística: 1,4% de alterações para Portugal contra uns míseros 0,5% do Brasil. Como se admite que a Língua-Mãe da velha Lusitânia se vergue à grafia do ingrato e vistoso filho? Ó inclemência! Ó misericórdia – assim se despejam, Atlântico abaixo, anos e anos de namoro oficial e promessas de um radioso futuro comum.

Não sei nem quero saber se essas estatísticas são exactas. Parece-me natural que a norma da língua seja definida a partir da maioria – a democracia tem apresentado, por esse mundo fora, resultados mais simpáticos do que a exacerbação nacionalista. E acontece que, neste mimado Éden europeu com vista para o mar, somos só 10 milhões. Mais ou menos a população da cidade de São Paulo. Também por isso temos, comparativamente, tão poucos problemas, embora gostemos de nos pensar um povo de desgraçados. Essa desiludida ilusão é, aliás, de uma forma muito pragmática, a nossa desgraça – mas enfim: dá-nos a cintilação das lágrimas do fado, a força lírica da literatura e a singularidade melancólica do cinema. Não se pode ter tudo.

Acresce que os discursos acerca da “pureza” da língua original pecam por falta de atenção: quem mantém o puro “açougue” (em vez do contemporâneo “talho” e “cadarço” (em vez do contemporâneo “atacador”) é o Brasil. Um dos estímulos que a literatura brasileira me oferece é esse, do reencontro com palavras antigas que Portugal deixou cair. Por outro lado, quero que a pureza se dane; dos puros não reza a História boas coisas.

O que me encanita, porém, é a ideia de uniformização obrigatória. Por que é que me proibirão de meter um c – curvinho, dengoso e mudo – nos meus afetos? Vocês deixam de me entender por isso? Claro que não – todos os meus livros são publicados no Brasil com a grafia portuguesa, e são brasileiros alguns dos meus mais clarividentes leitores. O romance que agora terminei, integralmente passado na Bahia (com h e com esse português brasileiro chamado padre António Vieira) é escrito no português de Portugal e no português do Brasil, em simultâneo. Não é a globalização que está a tornar o mundo um lugar muito chato; ela é apenas um canal de aproximação universal. O problema é que esse canal está a ser bombardeado por um enxame de regras que matam o livre-arbítrio e a originalidade individual. No interior de uma exortação genérica à Tolerância (tolerância até para com os mais ignominiosos atentados aos direitos humanos, a pretexto do respeito pelas “tradições culturais”) e à Liberdade, insemina-se um discurso parasitário, publicitário e, por conseguinte, altamente eficaz, que nos quer forçar a ser uniformemente belos, saudáveis e jovens. Já não é só porque quem não tiver as medidas certas e não comer vegetais e não correr dez quilómetros está impedido de ter o sucesso que, segundo a cartilha das aparências, conduz à felicidade. Agora, a cartilha estende-se à alma, e pretende agir através da culpa: dizem-nos que se fumarmos, engordarmos e envelhecermos, pesaremos sobre o sistema de saúde e diminuiremos a nossa produtividade, pelo que prejudicaremos o nosso semelhante.

Quando Lauro Moreira, o embaixador do Brasil na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa afirma, numa recente edição do JL – Jornal de Letras Artes e Ideias, que o acordo ortográfico permitirá que Machado de Assis venha a ser lido e conhecido em Portugal, sinto-me imediatamente tentada a dar de bandeja as minhas queridas consoantes mudas: que se lixe o encanto das diferenças, ponham o Machado ao colo do povo. Só que a coisa não funciona assim. Para começar, a dificuldade de encontrar Dom Casmurro nas livrarias portuguesas é idêntica à de achar A Capital de Eça de Queirós. A dificuldade de compreensão do português do Brasil em Portugal não passa pela ortografia, nem sequer pela sintaxe – temos décadas de frequência entusiástica de cursos intensivos de telenovelas e canções brasileiras – mas pelo vocabulário. O acordo ortográfico não resolve – e ainda bem – a infinita disparidade vocabular, nem a criativa polissemia da língua.

Caetano Veloso disse tudo no seu último cd, quando cantou: “Estou-me a vir”. Eficácia total: no Brasil ninguém o percebeu, em Portugal ninguém o quis perceber. Cantou na rua o que os portugueses só gritam na cama – e com sotaque português. O atrevido. A belíssima declinação camoniana dos versos seguintes (“E tu como é que te tens por dentro?/ Porque não te vens também?”) foi varrida pelo escândalo. Zut, zut, vade retro, desafios. Há tempos, num debate filosófico através de email, uma amiga brasileira aconselhava-me a ter cuidado com determinado cavalheiro, alegando que “intelectual universitário sempre é um pouco galinha”. Demorámos uns quantos emails a perceber que a mesma “galinha” serve para falar (no Brasil) de um “homem que cisca o tempo todo” (ou seja, que namora indiscriminadamente) e de uma mulher que não está habituada a pensar (em Portugal).

Quando Lauro Moreira diz (ainda no JL): “Que vocês digam ‘eléctrico’ e nós ‘bonde’, maravilha, mas vocês não têm que escrever ‘eléctrico’, mas ‘elétrico’, como nós” , confesso que me arrepio. Mas lendo o texto do acordo desato a rir. É tão grande o cortejo das excepções que o acordo acorda já desacordado. Por exemplo: nas locuções, o hífen cai “salvo algumas exceções já consagradas pelo uso”. E o uso justifica que “cor-de-rosa” permaneça assim, e “cor de vinho” passe a andar sem atrelado. Porque a rosa é mais antiga do que o vinho? Os acentos agudos e circunflexos ficam ao sabor do timbre “aberto ou fechado, na pronúncia culta da língua”. Se ao menos nos oferecessem o estremecimento elegante do trema, que nos permitiria escavar até ao fundo do u os nossos sequestros. Mas não; o português uniformizado não estremecerá. Esquecem que a grandeza do português, seja ele qual for, é feita de um portentoso jogo de cintura. E que se danem as medidas certas.

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