Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um país diante da TV

Num aspecto não se pode criticar o Brasil. São impressionantes a regularidade e o rigor com que, a cada ano, um instituto de pesquisa divulga resultados a respeito das horas diárias que o telespectador brasileiro destina ao aparelho de televisão.

A Folha de S. Paulo (terça, 11/1) publicou, assinada por Daniel Castro, a matéria ‘Brasileiro consome quase 5 h diárias de TV’, revelando os mais recentes resultados aferidos em 2004. Seja como texto jornalístico, supostamente com fins informativos, seja como mapeamento estatístico, a matéria publicada oferece aspectos criticamente rentáveis.

Preferência nacional

Diferentemente de outras pesquisas, como as eleitorais, para o tema TV, a sondagem não envolve apenas 1.200 (quando não são 850) pessoas no país, para, em nome de inexpressivo recorte, divulgar preferências e percentuais. Não, no Brasil, televisão é algo muito sério, razão pela qual, para essa pesquisa, o universo de consulta é amplo, e, levando-se em conta a alta importância para o público, a matéria faz questão de acentuar que:

‘Os dados, inéditos e obtidos com exclusividade pela Folha, são do Ibope e se referem a todo o país – a amostra nacional do instituto representa 52 milhões de telespectadores em 15,9 milhões de domicílios nas principais cidades.’

Pelo grau de quantificação, sem dúvida, foi uma pesquisa bastante criteriosa, afora a preocupação em divulgar outros dados esclarecedores, a partir de estratificações por sexo, idade e classe social. Para tanto, a Folha não dispensou o tradicional infográfico com suas ‘tortas’ coloridas, demonstrando as fatias de consumo, com requinte de detalhes: todas as faixas etárias, os 10 programas mais vistos e as respectivas horas de cada segmento. Tudo é devidamente autenticado, dando conta de horas, minutos e segundos.

Um olhar estrangeiro depositado sobre tal matéria imediatamente sentenciaria o quanto o brasileiro é meticuloso, metódico e disciplinadamente científico no modo de conduzir a vida individual e, óbvio, o destino da nação.

Para não deixar dúvidas a respeito de nosso ‘cartesianismo nacional’, a matéria abre com o seguinte parágrafo:

‘O telespectador brasileiro, um dos maiores consumidores de TV do mundo, gastou 4 horas, 53 minutos e 22 segundos vendo televisão aberta em cada dia de 2004. No ano anterior, o consumo médio individual de TV foi de 4h47min49s. Em 2001, era bem menos: 4h37min15s.’

Como bem pode atestar o leitor, somos um povo cujos sentido de organização e princípio científico se mostram invejáveis a qualquer nação do primeiro mundo. A propósito, para a pesquisa do presente ano, parece haver a promessa de quantificar também os décimos de segundos. Afinal de contas, são dados preciosíssimos que não podem ser desprezados. Para tanto, prometem-se altos investimentos em ciência e tecnologia.

Com a devida desculpa ao leitor, dado o tom assumidamente irônico, não o tenho como evitar, em razão da natureza mesma do ‘objeto’ em questão que, na verdade, é alimentado pelo próprio texto publicado. Repare-se a frase: ‘Em 2001, era bem menos’. Ao fazer-se a conta, constata-se a inexpressiva diferença de 10 minutos e 34 segundos. Será que o jornalista, especializado em escrever sobre TV, observou um fenômeno especial no fato de, ao longo de três anos, haver ocorrido o aumento de 10 minutos? Será que isso indica algo de inesperado a escapar de nosso olhar comum? A pergunta faz sentido, porque, adiante, o articulista arremata:

‘A média diária de consumo de televisão por domicílio foi de 8 horas e 31 minutos em 2004, dois minutos e meio a mais do que em 2003.’

Parece que a observação deixa no ar uma pergunta que não quer calar: que significará, nos desdobramentos da vida do pobre ser brasileiro, esse ‘expressivo’ aumento de dois minutos e meio? Outros dados são igualmente importantes e extremamente reveladores para os rumos da nação. A matéria informa que:

‘Jovens de 18 a 24 anos e pessoas das classes A e B são as que menos vêem TV. Telespectadores mais pobres (classes D e E) consomem quase 40 minutos a mais de TV do que as mais ricas (A e B).’

Quadro caótico

Pela redação conferida aos dados colhidos pela pesquisa, tem-se a sensação de que a matéria deseja fixar uma distinção cultural e econômica, fazendo supor que TV é algo para gente mais pobre, inculta e velha. Todavia, a diferença apontada chega a menos de pífios 40 minutos. Ou será que, para o articulista, a registrada ‘diferença’ de tempo denuncia o abismo que separa os afortunados dos desvalidos? Para este articulista, pelo menos, fica a idéia justamente oposta. O quadro é caótico, no tocante ao perfil cultural da elite brasileira.

Se a pesquisa apenas avaliou a relação entre telespectador e TV aberta, o perfil firmado é falso, visto que as classes A e B representam segmentos societários que dispõem de TV fechada (a cabo ou em banda larga), pay-per-view, DVD, videocassete, internet (chat, MP3, games e Orkut). Somando tudo, portanto, a elite se fixa em telas o dobro do tempo dos menos favorecidos. O tempo sobrante não cobre sequer a exigência mínima para leituras à altura do curso universitário que freqüentam.

Quem tem experiência diária com a prática universitária brasileira sabe quanto de veracidade há nessa afirmação. Então, a matéria publicada pela Folha deveria ter a obrigação de pontuar tais questões. A verdade subtraída do que foi publicado é que a elite, na TV aberta, vê 40 minutos a menos, mas vê muito mais ao somarem-se as horas da aberta à fechada.

O quadro demonstra a melancólica situação cultural na qual está mergulhado o país. A conclusão fica ainda mais sólida quando, pela informação da própria matéria, se sabe que a lista dos dez programas mais vistos (todos da TV Globo), mantida a ordem, contém: Senhora do Destino, Celebridade, Da Cor do Pecado, BBB 4, Eliminatórias da Copa do Mundo, Copa América, Jornal Nacional, Quem vai ficar com Mário?, A Grande Família e Jornadas Fabulosas.

Bem, o presente artigo procurou apenas destinar alguma finalidade crítica ao teor da matéria publicada, com o intuito de se evitarem deduções indevidas que o texto jornalístico poderia suscitar, independentemente das intenções do autor da matéria. Uma coisa, porém, é certa: o texto, como foi publicado, com o perfil meramente constatativo, não parece jornalismo isento. Por vezes, o excesso de falta de criticidade gera efeito contrário, ou seja, pode redundar em parcialidades e deformações.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)