Nenhuma experiência de autorregulação da publicidade foi ou será suficiente para proteger as crianças da influência do incentivo ao consumo exagerado ou desregrado. Seja por funcionar como pilar do capitalismo e da competição pelo mercado que o caracteriza, seja por impactar profundamente a infância, a publicidade voltada para as crianças precisa ser regulada por leis e fiscalizada pelo Estado.
A defesa veemente da regulação da publicidade infantil foi feita por dois especialistas que analisam o tema na maior economia de mercado do mundo, os Estados Unidos. Para o professor emérito da Rutgers University, Benjamin Barber, a insuficiência da ‘solução de mercado’ é, basicamente, uma questão da natureza da publicidade. ‘O capitalismo não vai se autorregular. Ele tem que se regular pelas leis’, afirmou.
Já a psicóloga da Harvard Medical School Susan Linn chamou a atenção para o desequilíbrio entre a força da publicidade e a capacidade dos pais protegerem seus filhos. Susan destacou que os gastos com publicidade infantil nos Estados Unidos somam US$ 17 bilhões. Além disso, este mercado conta com um verdadeiro exército de psicólogos, sociólogos e publicitários pesquisando como tornar as crianças cada vez mais vulneráveis para o consumo.
Segundo Susan, este setor trabalha para que todas as horas do dia das crianças estejam relacionadas com algum logo ou nome. ‘Nem na hora de dormir elas tem sossego. É a cama do Homem Aranha, o abajur da Ciderela…’, exemplificou. Apesar disso, o próprio setor, quando questionado, joga a responsabilidade das ações das crianças para os pais, como se fosse possível eles, sozinhos, fazerem frente a este aparato.
Benjamin, autor de Consumido – Como o mercado corrompe Crianças, Infantiliza Adultos e Engole Cidadãos, e Linn estiveram no Brasil como convidados do 3º Fórum Internacional Criança e Consumo organizado pelo Instituto Alana. Ambos destacaram exemplos de como a publicidade impacta a vida das crianças nos Estados Unidos, onde, em tese, vigora a autorregulação de mercado para a publicidade infantil.
O professor lembrou que, nos Estados Unidos, ‘regularam as empresas de cigarros, mas faltou regular todas as outras’. Ainda assim, seu país natal registra casos bizarros como o de Joe Camel, personagem da marca de cigarros homônima que ficou tão conhecido entre as crianças dos anos 1990 quanto Mickey Mouse e Fred Flintstone.
O peso da publicidade
Para Susan, há provas de que a autorregulação não funciona. Ela citou o exemplo da indústria alimentícia, que há anos afirma que pode se autorregular, mas os números de obesidade infantil só aumentam. ‘As crianças ainda são influenciadas e continuam engordando’, afirma a psicóloga.
Um estudo citado por Susan, feito por uma pesquisadora da Stanford University, consistia em dar a mesma comida para crianças, mas com embalagens diferentes. O resultado: as crianças afirmavam que aqueles lanches embalados como McDonald´s tinham gosto melhor. Para a psicóloga, isso prova que o poder da publicidade é tão forte que influencia até a maneira como sentimos o gosto da comida. Por isso, nenhuma autorregulação é possível e a solução é radical: não pode haver publicidade dirigida a um público inexperiente e ainda sem capacidade crítica. ‘Não há justificativa moral para isso. É questão de saúde publica.’
Outro exemplo lembrado por Susan foi a experiência de autorregulação da Kellog´s. A empresa colocou tabelas nutricionais nas embalagens, uma medida tímida perto dos coloridos e efusivos comerciais que ligam personagens e estilos de vida à comida industrializada. ‘Muitos produtos tem promoção com algum filme. As companhias usam desenhos, personagens e celebridades para promover a comida. Um estudo mostrou que isso afeta muito as crianças. Elas adoram os personagens, e eles são influências poderosas’, comentou.
Ainda segundo Susan, estudos apontam que as comidas e redes que mais buscam associar seus produtos a eventos e produtos culturais são, justamente, aquelas que produzem alimentos que são considerados desaconselháveis para crianças. Acrescentando, Benjamin informou que 50% dos cidadãos estadunidenses está acima do peso ou obeso.
Susan afirmou diversas vezes que a culpa e o problema não se restringe aos pais, mas à toda a sociedade e modo como nos organizamos. ‘É importante lembrar que não é como quando éramos crianças. Os pais tem que fazer algumas coisas, mas eles precisam de ajuda’, resumiu a psicóloga.
Pesquisa encomendada ao instituto Datafolha pelo projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, mostrou que os pais são muito influenciados pelos filhos para a compra de alguns produtos, inclusive comida. E que quanto mais nova a criança, mais ela pede os produtos apresentados nos comerciais. O levantamento foi realizado na cidade de São Paulo entre 22 e 23 de janeiro de 2010, ouviu 411 pais e mães de todas as classes econômicas.
A pesquisa também mostrou que um grande número de famílias se incomoda com a ‘guerra’ empreendida pelas indústrias associadas à mídia para ganhar as crianças. Os resultados do levantamento mostram que 73% dos pais concordam que deveria haver restrição ao marketing e propaganda voltada às crianças. Ou seja, assim como para os palestrantes do seminário, a batalha contra a publicidade infantil é uma luta que deve unir governo e sociedade.
Política contra a publicidade
Enquanto a psicóloga baseou seu ceticismo na autorregulação pelo fracasso prático que vem mostrando a iniciativa nos EUA, o sociólogo Benjamin justificou o crescimento da publicidade como um fator também político: ‘É o espaço vazio em Washington ou em Brasília. Proteger crianças não tem valor no nosso sistema: o mercado resolve nossos problemas, não precisamos de governo, nem de democracia. Nesse vácuo as empresas crescem e ficam grandes.’
Seus conterrâneos, afirmou o sociólogo, se distanciaram tanto do governo que o enxergam como algo ruim, sendo que ele deveria ser a própria união da sociedade civil. Numa clara defesa do papel regulador do Estado, Benjamin sublinhou que esse distanciamento permitiu que até o governo fosse colonizado pelo mercado.
Benjamin afirmou que o capitalismo começou a focar nas crianças quando o mercado para os pais estava saturado. ‘Hoje em dia, não se produz mais os bens básicos, produz-se necessidades’, afirmou ainda. Nesta lógica, é possível vender celulares para crianças cada vez mais novas, até bebês, e convencem os pais falando em segurança ‘mesmo que hoje em dia estejam raptando crianças bem menos do que nos anos 1980 e elas estejam sempre acompanhadas’.
Sendo ainda mais duro em suas críticas, Benjamin afirmou que é impossível confiar ao mercado sua própria autorregulação porque não se pode esperar que ele tome a iniciativa de transmitir apenas informações que nos unam ou fosse falar a verdade sobre alimentos industrializados que nos fazem mal. Ao contrário, o esperado é que prossigam em ‘uma lavagem cerebral que nos convence de que precisamos de coisas que na verdade nos são inúteis’.
Liberdade e limites
O sociólogo diz que o sistema capitalista baseado na publicidade ‘colonizou a cultura, a vida privada’ e é totalitário, pois não deixa nenhuma esfera da vida humana intocada. ‘Isso é teocracia. Nós dizemos que não gostamos de teocracia, mas quando é comercial, publicidade, quando ela domina cada parte da vida, nós chamamos isso de liberdade’, ironizou.
Nessa conjuntura, de acordo com Benjamin, é possível chamar de censores os cidadãos que quererem escolher a própria programação. Mas o total fracasso da autorregulação reforça a idéia de que o necessário papel da regulação seja promovido pelo Estado e desempenhado pelo conjunto da sociedade.
No Brasil, esta confusão tem sido feita de forma proposital. A campanha neste sentido se intensificou com o debate aberto com a realização da Conferência Nacional de Comunicação a respeito das pautas apresentadas por diversos movimentos que diziam respeito ao controle social da mídia. Também as iniciativas de regulação da publicidade, inclusive o projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados e restringe a propaganda direcionada às crianças, têm sido tachados de censura pelos proprietários de meios de comunicação e de agências de publicidade.