Duas vezes a ministra Dilma Rousseff disse a jornalistas que é de “mau gosto” misturar doença e política. A primeira em 28 de abril, três dias depois de reunir a imprensa para comunicar que tinha extraído um tumor linfático. A segunda no último dia 20, ao deixar o hospital onde se internara na madrugada da véspera por causa de fortes dores relacionadas indiretamente com a quimioterapia a que se submete.
“Mau gosto” é modo de dizer. Na sua situação, alguém menos comedido poderia ter usado uma expressão mais dura. Mas das duas vezes ficou uma dúvida sobre o alvo da sua crítica.
À primeira vista, mau gosto era o dos repórteres que lhe tinham pedido que comentasse os presumíveis efeitos do seu estado de saúde para a sua eventual candidatura ao Planalto em 2010 – sobre a qual ela já vinha dizendo, também mais de uma vez, que não falaria “nem amarrada”.
Mas é perfeitamente possível que ela estivesse, isso sim, mirando nos políticos que desde o anúncio da doença se puseram a especular – alguns deles rombudamente – sobre o novo clima de incerteza que baixara na sucessão presidencial.
A dúvida importa porque tampouco está claro se a imprensa se excedeu na abordagem do assunto. Para um certo número de leitores – e jornalistas – tem faltado compostura no noticiário.
O colunista Janio de Freitas, da Folha de S.Paulo, por exemplo, dá de barato que falta. No artigo “Doenças no jornalismo”, do domingo, 24, ele escreveu que os excessos em relação às doenças de figuras públicas no Brasil decorrem do “desordenamento em que o jornalismo vai aqui lidando com seus avanços e novidades” e do “rebaixamento dos níveis de educação e civilidade nos costumes do brasileiro em geral”.
O desordenamento de que ele fala é real – se pela palavra se entende a corrosão de padrões jornalísticos consagrados provocada pelas mudanças no dia-a-dia do ofício, com as redações amputadas, a ansiedade de ser o primeiro com as últimas na internet, a perda de controle sobre o ciclo de produção da notícia (ainda mais quando os editores se comportam como meros fechadores) e da falta de tempo, ou interesse, para se ficar atento à ética do trabalho ao mesmo tempo em que se trabalha.
Também é real o rebaixamento dos níveis de civilidade que o colunista menciona. A questão que ele levanta dá uma boa pauta para a observação da mídia e é tentador concordar com a sua análise. Ainda assim, não parece trivial estabelecer um relação de causa e efeito entre o embrutecimento das condutas no cotidiano brasileiro e a facilidade com que jornalistas perdem a noção dos limites e descambam para o sensacionalismo.
Mas onde foi exatamente que a mídia errou na história da adversidade que a ministra enfrenta?
Não, pensa este blogueiro, na exposição do problema de saúde em si. Desta vez os periódicos não embarcaram no que se pode chamar cobertura por saturação, em que se descarta o sentido de proporção das coisas e se afogam os fatos que o leitor precisa conhecer numa salsa de irrelevâncias que confundem e desinformam.
Sim, na descriteriosa divulgação de palpites e especulações sobre as consequências políticas da doença, já no dia seguinte ao seu anúncio. [Leia aqui.]
Os jornais, repita-se, fizeram o que tinham de fazer indo atrás de quem imaginavam que teriam algo a dizer sobre o caso. Mas ainda não aprenderam que não precisam publicar tudo o que anotam. Publicando, favoreceram plantações e balões de ensaio sobre um hipótetico Plano B de Lula, os quais, por sua vez, geraram novas “repercussões” e novas plantações, numa sequência que ainda não parou de falsas notícias que produzem calor, mas nenhuma luz.
Posto em movimento o círculo vicioso, nele o jornalismo e a política se confundem – esta tirando proveito da prontidão da mídia para servi-la, não por se identificar com esses ou aqueles de seus personagens, mas pelo cacoete de buscar novidades a todo custo. O resultado é uma “forçação” de barra que nivela o jornalista aos políticos com as suas jogadas de ocasião.
”As coisas nesse mundo funcionam assim. Ponto”, escreveu também no domingo outro articulista da Folha, Valdo Cruz, numa coluna intitulada “De fato, mau gosto!”. Nela, dá razão à ministra, mas sustenta que a sua condição clínica “saiu definitivamente das conversas de bastidores e contaminou de vez o debate sobre a eleição de 2010”.
Presume-se que as coisas funcionam assim no mundo político. Mas a imprensa abre o flanco ao permitir que se presuma que elas funcionam assim também no seu pedaço, quando se comporta como correia de transmissão de interesses políticos.
De agora em diante, em todo caso, os jornalistas não têm mais justificativas para pedir à ministra que fale da sucessão. Será não apenas uma perda de tempo, mas principalmente um desrespeito.
P.S. [Acrescentado às 14h35 de 26/5]
O Estado de S.Paulo, salvo engano o jornal de circulação nacional que mais espaço dá às andanças e falações do presidenciável tucano Aécio Neves, dedica hoje uma coluna inteira, ou 123 linhas impressas, às mais recentes declarações do governador de Minas sobre o cacife eleitoral da ministra Dilma Rousseff.
À parte o exagero – na Folha, elas ocuparam apenas 35 linhas de uma coluna de pé de página e no Globo foram ignoradas –, uma boa notícia:
O texto não contém uma única palavra sobre os eventuais efeitos do estado de saúde da ministra sobre as suas chances em 2010.
Em dado momento, parece que Aécio vai pisar no tomate. É quando diz ser “natural” o seu crescimento na pesquisa encomendada pelo PT ao Vox Populi, dada a “grande exposição” da figura de Dilma.
Pronto, pensou o blogueiro, lá vem.
Mas não. A exposição de que ele fala se deu “nos últimos meses”. Aécio alude ao que entende ser a campanha eleitoral antecipada pelo presidente Lula para dar “visibilidade” à sua candidata.
Ou seja, os seus comentários foram exclusivamente políticos.
Ou nenhum repórter levantou o assunto que a ministra considera, até elegantemente demais, “de mau gosto”, ou levantaram e o entrevistado calou.
Tomara que a primeira hipótese seja a verdadeira. De qualquer, forma, um alívio.