Reproduzo debate com o leitor Geraldo Moura da Silveira, de Alfenas, Minas Gerais, sobre a publicação pela Folha de S. Paulo da carta da professora Marilena Chauí a alunos seus da USP.
Geraldo:
Ao endereçar uma correspondência privada aos seus alunos, a prof. Marilena Chauí se colocou na posição de fonte de uma notícia. Ao publicar a correspondência, sem autorização expressa da emitente, creio que a Folha violou um preceito ético inafastável do bom jornalismo: o sigilo da fonte. Não sou jornalista, mas creio fazer sentido esse meu raciocínio. Ou estou errado? Poderia aclarar essa questão, nobre jornalista Mauro Malin? Mas de que adianta? Afinal, o Código de Ética dos Jornalistas não prevê sanções disciplinares. Norma sem sanção é o mesmo que ausência de norma.
Mauro:
O ombudsman da Folha, Marcelo Beraba, informa hoje que a carta já circulava na internet e já havia sido publicada num blog. O editor Fernando de Barros e Silva disse a Beraba que o jornal tentou falar com a professora. A professora poderia imaginar que não seria possível manter em circulação restrita uma carta a um grupo de alunos, mas teria sido mais elegante a Folha subordinar a publicação da carta a uma consulta à professora. Texto feito para um pequeno grupo com determinado tipo de formação intelectual é diferente de texto para veículo de massa. Num diálogo com o jornal, a professora poderia ter esclarecido alguns pontos e todo o episódio teria contribuído melhor para a reflexão sobre o estado e os rumos da mídia. Mas as premissas em que a professora Chauí apóia seu raciocínio – que equivalem a uma restrição à mídia por ser de propriedade privada – remetem para uma situação inexistente, que seria a de uma mídia livre em país com propriedade coletiva dos meios de produção. Isso, a meu ver, é um mau preâmbulo para observações atiladas que ela faz sobre o comportamento da imprensa. Um ponto que merece debate.
Geraldo:
Divirjo em muitos pontos do pensamento político da prof. Marilena Chauí. Na parte filosófica não ouso. Mas reconheço nela uma virtude ímpar nos dias de hoje: ela continua marxista num país engolfado até a medula pela mercadocracia globalizante. O que eu estranho no comportamento de parte da mídia é a tentativa de condenar – pelos erros do PT – os intelectuais que contribuíram na sua construção. Algo como condenar Isaac Newton porque uma jaca caiu na minha cabeça ao passar debaixo de uma jaqueira; ou condenar Santos Dumont pelo uso bélico dos aviões ou, ainda, condenar Deus pelos pecados do mundo. Não dá para aceitar a condenação de uma intelectual por causa de suas convicções políticas e por ter ajudado a criar um partido que, à sua revelia, malogrou na corrupção. E, o que é pior, ela nem participou desse governo. Quanto à imprensa livre, concordo em parte com ela. A liberdade de imprensa no Brasil – e talvez em todo o mundo – só existe para os donos dos veículos, que escolhem ‘livremente’ o que deve ou não ser publicado. O jornalista se transforma, assim, num ‘pelego’ do dono do veículo e de seus interesses ecumênicos. E a mídia em geral critica o peleguismo sindical! Qual a diferença? O jornalista, salvo raras exceções, não tem autonomia nenhuma para se desincumbir de seu nobre e edificante mister. Creio que a democratização dos meios de comunicação, não pela via estatizante, mas através das cooperativas e das mídias comunitárias daria uma grande contribuição para a justa distribuição da informação, da formação, do saber e da cultura. Enfim, a desconcentração dos meios de comunicação ajudaria a edificar a consciência política do povo brasileiro.
Mauro:
Há muito mais coisas entre a propriedade dos veículos de comunicação e o que sai nas páginas dos jornais e revistas (mas isso se aplica infinitamente menos à televisão, em especial à TV Globo, na medida, sobretudo, em que ela é uma instância decisiva da política brasileira e usa empresarialmente essa condição), há muito mais coisas do que cabe numa simplificação como a que se lê no texto da professora Marilena Chauí: ‘Na sociedade capitalista, os meios de comunicação são empresas privadas e, portanto, pertencem ao espaço privado dos interesses de mercado; por conseguinte, não são propícios à esfera pública das opiniões, colocando para os cidadãos, em geral, e para os intelectuais, em particular, uma verdadeira aporia, pois operam como meio de acesso à esfera pública, mas esse meio é regido por imperativos privados. Em outras palavras, estamos diante de um campo público de direitos regido por campos de interesse privado. E esses sempre ganham a parada’. A propósito de ‘ganhar a parada’, eu pergunto apenas o seguinte: a) Quem ganhou a eleição de 1982 no Estado do Rio em aberto conflito com a Rede Globo? (Leonel Brizola.) b) A Rede Globo favoreceu José Serra no segundo turno de 2002? c) A Rede Globo negou apoio ao presidente eleito Lula ou ao presidente empossado Lula? Que perverso interesse privado teria movido a Rede Globo a ser parceira do governo Lula em tantos momentos e em tantas iniciativas? Aqui dou o exemplo apenas da Rede Globo. Mas ela é o veículo que mais pesa na formação de uma opinião pública de massas.
Certamente a professora e o leitor nunca trabalharam numa redação nem estão familiarizados com seus processos. De passagem, ofendem milhares de jornalistas honestos que se empenham em prestar um serviço de boa qualidade, com isenção, equilíbrio e espírito de busca honesta da verdade. Esses jornalistas não só se empenham como conseguem publicar uma massa enorme de informações relevantes sobre a realidade do país e do mundo. Se não fosse assim, nós, que não fomos nem somos seus alunos, provavelmente nem sequer saberíamos da existência e das virtudes intelectuais da professora Marilena Chauí.
A maior punição para jornalistas é a perda de credibilidade junto aos leitores, ouvintes, telespectadores. Mas, se houver injúria, calúnia ou difamação, a lei comum pune.
(O tópico que suscitou o comentário do leitor está no programa 102 do Observatório no Rádio.)