Se existe, Deus foi justo com a Folha. O jornal que cobre, debate e opina sobre questões científicas muito melhor e mais frequentemente do que os outros grandes diários brasileiros mandou um de seus principais repórteres, Laura Capriglione, acompanhar a primeira audiência pública da história do Supremo Tribunal Federal.
Ontem, como se sabe, o STF abriu as suas augustas instalações para ouvir o que pensam 34 cientistas e bioeticistas sobre o uso de embriões humanos descartados em clínicas de fertilização assistida nas pesquisas sobre células-tronco.
São assim chamadas porque, no processo de desenvolvimento dos organismos, acabam por se especializar, formando todos os diferentes tecidos e estruturas do corpo. Biólogos acreditam que as pesquisas com elas, ainda na fase indiferenciada, poderiam permitir que fossem induzidas a se ‘especializar’ nesse ou naquele órgão para reparar as células adultas danificadas responsáveis por numerosas doenças degerativas hoje incuráveis, como Alzheimer e Parkinsons.
A questão foi parar no Supremo porque a Lei de Biossegurança aprovada no Congresso em 2005 autorizou o uso dos embriões descartados nas clínicas de tratamento de infertilidade para a extração das células-tronco com fins de pesquisa. Nesse processo os embriões são destruídos.
O então procurador geral da República Cláudio Fonteles entrou com uma ação para que a lei fosse declarada inconstitucional por atentar contra o direito à vida, cláusula pétrea da Carta de 1988. Para o franciscano Fonteles, a vida começa na fecundação do óvulo pelo espermatozóide.
É o mesmo argumento dos que se opõem ao aborto por princípio. Aliás, os opositores temem que a liberação das pesquisas com embriões é um passo na direção da legalização do aborto.
A audiência pública foi convocada pelo Supremo justamente para ouvir o que os especialistas tem a dizer sobre a questão que os divide: quando, afinal, começa a vida? [Ou a vida humana.]
Pois bem. A mais conhecida defensora das pesquisas com células-tronco no Brasil, a bióloga Mayana Zatz, da USP, repetiu ontem o argumento de que, na fase em que se presta a esses estudos, o embrião – um aglomerado de uma centena de células indistintas – de forma alguma constitui vida. De mais a mais, indagou:
‘Por que preservar um embrião congelado e sem viabilidade, mesmo sabendo que a probabilidade de ele gerar um ser humano é praticamente zero?’
Até aí, tudo bem. Com menos ou mais competência, a cobertura da reunião no STF deu conta das posições em confronto. O Estado, por exemplo, apresentou uma espécie de quem é quem na polêmica, dando os nomes, a qualificação e o ponto-de-vista (favorável ou contrário à idéia de que a vida começa na fecundação) de uma vintena dos participantes da audiência.
Mas a repórter Laura Capriglione, trabalhando a quatro mãos com o colega Rafael Garcia, pegou com exclusividade o tempero do dia: a acusação do fervoroso católico Fonteles a Mayana Zatz de que ela pensa o que pensa por causa de sua religião. Perguntado se não havia um conflito de interesses entre a religiosidade do ex-procurador geral e a sua atitude como profissional do direito, ele respondeu textualmente, segundo a Folha:
‘A doutora Mayana Zatz tem também uma ótica religiosa, na medida em ela é judia e não nega o fato. [Por que deveria?, é o caso de indagar, mas passemos.] Na religião judaica, a vida começa com o nascimento do ser vivo. Então, ao defender a posição dela, ela defende a posição religiosa dela, que é judia e que a gente tem de responder.’
Ou seja, o pensamento da doutora Mayana deriva da fé que professaria, não de sua formação científica. Seria o equivalente ao caso do procurador, mas com o sinal trocado. Desde que se omita, naturalmente, a diferença de que ele se formou em direito, ela em biologia. Mas, passemos, de novo.
Mayana, brasileira nascida em Israel, ficou revoltada. ‘Desde o início da discussão’, disse à Folha, ‘jamais tinha me defrontado com a tentativa de desqualificar meus argumentos com argumentos anti-semitas’. E arrematou, para não deixar dúvidas:
‘Minha defesa da pesquisa com células-tronco embrionárias está longe de ser motivada por razões religiosas. É por meus pacientes, para minorar o sofrimento deles.’
Pois é. Vem a calhar, providencialmente, uma primorosa citação do falecido físico americano Steven Weinberg, premiado com o Nobel, na crônica de Antonio Cicero, também na Folha de hoje:
‘Com ou sem religião, as pessoas bem-intencionadas farão o bem e as pessoas mal-intencionadas farão o mal; mas, para que as pessoas bem-intencionadas façam o mal, é preciso religião.’
Em tempo: segundo a diligente repórter Mariangela Gallucci, que cobre o Judiciário para o Estado em Brasília, é quase certo que o Supremo confirme a autorização para as pesquisas com células-tronco.
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