O jornal Extra, do Rio, tem uma seção chamada ‘Tira-dúvidas’. O propósito está explicado ao pé da coluna: ‘Esta seção relaciona as palavras e expressões pouco comuns publicadas hoje e seus respectivos significados’. Descontando-se o cacófato da própria explicação (‘pouco comuns’), é exemplo do tipo de serviço que a imprensa pode prestar ao leitor.
Na edição de domingo (23/1, pág. 2), eis as palavras cujo significado foi explicado didaticamente: arrematar, aval, cooptar, defasagem, diligência, dolente, giro, indeferido, intrínseca, promulgação, purgatório, vil, vereda, vislumbrar.
Ao lado de cada verbete, está indicada a página em que aparece. Veja-se o caso de ‘dolente’. A seção assim explica dolente: ‘Que manifesta dor; magoado; lamentoso; lastimoso’.
O jornal tenta suprir a escola. Certamente seus editores sabem que os leitores terão dificuldade de entender os textos em tais palavras são utilizadas. Em vez de copidescar e tomar o caminho mais fácil, que seria recomendar o rebaixamento dos autores até o ponto em que se encontram muitos leitores, fez a escolha certa: optou por ampliar o universo vocabular do público.
Mas não nos enganemos! A coluna é mais um sintoma da conhecida decadência escolar no ensino básico. Tomemos os livros didáticos de quem tem 40 anos ou mais. Exemplo colhido a esmo (bem, se estivesse escrevendo este texto para o Extra, talvez ‘esmo’ já merecesse entrar na tira-dúvidas): Português para o ginásio: para a terceira e quarta séries, de José Cretella Júnior. Hoje, tais séries equivalem à sétima e à oitava do primeiro grau. Ainda na capa, a Companhia Editora Nacional, na 10ª edição, de 1950, anunciava o conteúdo: antologia, vocabulários, exercícios, biografias, comentários. Que tal, Alberto Dines? Você que ensinou e demonstrou na prática, com os livros sobre Antonio José da Silva e Stefan Zweig, esplêndidos e bem escritos, que o gênero é indispensável, vai gostar de rever as lições do antigo mestre.
Logo nas primeiras páginas, o estudante lia textos de Coelho Neto, Castro Alves, Rui Barbosa e Euclides da Cunha. E aprendia o significado das seguintes palavras que apareciam nos textos selecionados: pugnar, arrogância, afrontar, sussurrar, cochichar, rebuço, reverter, sobranceiro, brigue, pávido, gaza, Leviatã, tétrico, bacante, tripudiar, pélago, aboio, retinir, arpejo, crebro, bardo, místico, rota, chã, aspa, pachorrenta, estalido, capoeira, atinar etc.
Fiquemos no ‘dolente’. Fascinante o estudo de caso. A iniciativa do jornal é ótima e pode servir de exemplo a providências semelhantes em outros jornais, que poderiam contratar profissionais a baixo custo, afinal professores complementariam seus minguados salários com um serviço inestimável. Contudo o que chama a atenção é que a imprensa tenta remediar a escola. Tenta e não consegue, evidentemente. Pode ser função adicional formar e educar os leitores, principalmente os mais jovens, mas ministrar-lhes aulas de português!
O que vemos é uma tentativa quase desesperada de atender aos leitores, remediar o que a escola não lhes deu. E o que a escola não lhes deu? Uma coisinha de nada: um vocabulário mínimo.
‘Vento manhoso’
O assunto é complexo. Mas vejamos, não aqueles consagrados e célebres autores que estão em nosso cânone literário – como aqueles de quem o professor Cretella aproveitou os exemplos – mas uma dupla caipira, Tonico e Tinoco, que ao som de uma viola cantou a poesia de Pedro de Almeida, A Pombinha, onde aparecem palavras que certamente iriam para quaisquer tira-dúvidas ou seções semelhantes, de que são exemplos, além de dolente, rincão, tanger, rolinha etc. E a canção foi escrita para ser ouvida e entendida por roceiros – afinal trata-se de gênero definido como ‘caipira’.
Eis a íntegra.
A Pombinha
Quando amanhece o dia no meu rincão
Parece que a natureza tem coração,
Quando amanhece o dia no meu rincão
Parece que a natureza tem coração.
À tarde o tanger do sino na capelinha
Bem perto o cantar dolente de uma rolinha
Quando é noite de lua a tristeza me vem, ai!.
São saudades de um grande amor, que longe vai.
À tarde o tanger do sino na capelinha
Bem perto o cantar dolente de uma rolinha.
Quando amanhece o dia no meu rincão
Parece que a natureza tem coração.
Constatado isso, o MEC devia providenciar imediatamente a compra do cedê Caipira, de Suzana Salles, Lenine Santos e Ivan Vilela. Os estudantes aprenderão mistérios adicionais que as palavras trazem quando acompanhadas de música e cantadas por vozes agradáveis e expressivas. E depois de entender o que é um ‘vento manhoso soprando do mar’, saberão que perguntas servem também para afirmar, como esta, do mesmo cedê: ‘Olhando o passado, quem é que não sente saudade de alguém?’.
Idioma estrangeiro
A leitura do Extra, que vi ao som do cedê Caipira, me deu saudade da escola. O Brasil piorou muito seu sistema de ensino. Tonico e Tinoco sempre souberam o que é dolente. Muitos leitores, mesmo com o hábito da leitura dos jornais, ainda não. Um povo sem vocabulário, não sabe exigir. Reivindica a metade do que precisa; elites espertas providenciam a metade do que foi solicitado. Em resumo, na melhor das hipóteses, quando bem atendido, o solicitante recebe apenas 25%. Uma quarta parte. É muito pouco.
São muitas as colunas de português em jornais e revistas. O mesmo Extra apresenta a de Sérgio Nogueira, que estudou na velha escola, foi aluno de um professor que aparece no título e é tema de um grande poema de Carlos Drummond de Andrade. Falo de Guilhermino César, que por excessiva modéstia, acabou por ocultar-se mais do que devia no Rio Grande do Sul. Pois o ex-aluno do poeta e prosador de Cataguases concilia saberes e sabores do português, ensina com verve e segurança. Impossível deixar de reconhecer: Extra pôs a língua portuguesa sob bons cuidados. E o tira-dúvidas é infelizmente necessário! Quem diria! Chegaríamos a isso: a imprensa é obrigada a explicar a língua em que escreve, como se utilizasse idioma estrangeiro.