Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O espelho no banco dos réus

O presidente Lula tem sido o mais assíduo e exaltado crítico da imprensa. Na condição de Grande Narrador (um dos novos atributos dos chefes de Estado na Era da Informação), sente-se permanentemente desafiado a desqualificar os demais narradores para impor a sua versão dos fatos. Compreensível. E perigoso: um crítico contundente incomoda, mas é inofensivo. Já um crítico contundente e poderoso torna-se ameaçador. Mesmo involuntariamente.


A última intervenção presidencial na seara da mídia na quarta-feira (24/3), em Brasília, soou como intimidação. Ao avaliar o trabalho da imprensa como fruto de ‘má-fé’, o presidente da República deixa de ser um observador privilegiado e supremo magistrado para converter-se em litigante. Jamais se permitiu denunciar em termos tão candentes o trabalho do Judiciário, Legislativo ou do Ministério Público como o fez agora com o chamado Quarto Poder.


Qual a justificativa para a furibunda agressão – a mídia estaria obsessivamente privatista, obediente à Opus Dei ou muito tucana? Menos: para o presidente, a mídia insiste em ignorar as ‘coisas boas’ (duas mil casas inauguradas), preferindo destacar um casebre que desaba. E revelou a sua estratégia: ‘Se você se acovardar, eles [jornais e jornalistas] vêm para cima…’ Só as pesquisas de opinião reproduzem a verdade, completou.


Azedume presidencial


Amigos e assessores do presidente minimizam tais acessos de cólera contra a imprensa. É possível que seja mais um truque do grande prestidigitador, mas como o presidente se mostra tão preocupado com o que escreverão os historiadores no futuro ao compulsar os jornais de hoje, deveria pensar duas vezes antes de desancá-los. Sua popularidade hoje é espetacular, mas a sua imagem em 2030 será a definitiva.


Mais velho e teoricamente mais escolado, o chefe do Poder Legislativo, o senador José Sarney, cavalga no mesmo trote: cada vez que a imprensa escancara outra trapalhada financeira de Fernando Sarney, gestor do clã, solta o verbo contra a imprensa. No mesmo dia em que a Folha de S.Paulo – jornal que acolhe as suas baboseiras semanais – revelou que o governo suíço bloqueou uma conta de 13 milhões de dólares remetidos ilegalmente por seu filho, o senador atacou a imprensa acusando-a de pretender substituir-se ao Legislativo na condição de ‘porta-voz da opinião pública’.


Confundiu tudo: o Congresso não é porta-voz de ninguém, é o representante da sociedade. E a imprensa cuida de fiscalizar estes representantes para que não metam a mão no erário. Uma coisa é certa: quando José Sarney põe-se a teorizar sobre a mídia é sinal de que a imprensa desvendou mais uma de suas trapalhadas.


O governador José Serra fez a opção pela discrição: bom enxadrista, montou uma estratégia visando a evitar desgastes desnecessários. Procura o caminho da urbanidade, aparece muito à vontade ao lado do presidente Lula e da sua futura rival, Dilma Rousseff, quando inauguram obras em São Paulo. É possível que por delicadeza ou solidariedade tenha aderido ao azedume presidencial contra a mídia. Designou-a como ‘leviana’ por informar que inaugurou obra inacabada quando, na verdade, teria inaugurado uma ‘obra prontinha’.


Corporação indiferenciada


Jornais podem ser levianos, jornalistas podem ser acusados de leviandade, mas se a imprensa é apresentada genericamente como leviana em quem deverá o eleitor acreditar – na propaganda oficial? Uma pesquisa de opinião solta, descontextualizada, sem o contrapeso de informações, vale tanto quanto um anúncio de pasta dental.


Este é o ponto: o ressentimento indiscriminado e indistinto contra os meios de comunicação deixa a sociedade órfã de referências. A mídia erra, sobretudo quando se assume como corporação monolítica, indiferenciada. Parece um espelho inconfiável. Virá-lo para a parede é a pior solução.