Revolução capitalista no Libération: o jornal fundado por Jean-Paul Sartre e Serge July, em 1973, símbolo de uma época de sonhos revolucionários de maoístas franceses, caiu no colo de um banqueiro. Sartre deve estar se revirando em seu túmulo no cemitério de Montparnasse, murmurando para Simone de Beauvoir: ‘O tempora, o mores!’
A aquisição de 37% do capital do jornal por um Rothschild foi aprovada na quinta-feira (20/1) por 57% dos assalariados que compõem a sociedade dos empregados. O novo acionista majoritário assegurou que a Société Civile des Personnels de Libération (SCPL), até então majoritária, manteria seu direito de veto, mesmo tornando-se minoritária (detinha 36,4% e passa a ter apenas 19% do controle acionário).
Édouard de Rothschild, de 46 anos, tornou-se o principal acionista de Libé, jornal lido por quem guarda ainda uma centelha de pensamento revolucionário de esquerda – mesmo depois da queda do muro de Berlim –, não gosta da direita nem de Jacques Chirac, é cinéfilo, quer estar sempre bem informado sobre as novas tecnologias e tudo o que é up to date – seja em literatura, música, política ou ecologia.
Terceiro mais lido
Quem diria que o jornal que fugia do lucro e do capitalismo acabaria nas mãos de um Rothschild?
Pois é. Aconteceu. Com a Agence de Presse Libération, fundada em 18 de junho de 1971, Sartre queria ‘dar voz aos jornalistas que querem dizer tudo às pessoas que querem saber tudo: ela dará voz ao povo’. Em um pequeno editorial assinado pelo filósofo no primeiro número do jornal , em 1973, lia-se:
‘A imprensa francesa em geral visa ao lucro e está sujeita a certos interesses econômicos; Libération escapa a essa servidão já que o jornal não busca nenhum lucro e não está sujeito a nenhum tipo de pressão’.
Com 20 milhões de euros, Rothschild comprou o direito de ser o que os franceses chamam de ‘patron de presse’. Essa operação salva o diário do buraco em que se encontrava, mas não se passou num mar de rosas. Os jornalistas eram contra. Temiam a possível interferência do novo acionista na linha do jornal. Na votação para definir a venda, 161 jornalistas votaram ‘sim’ contra 80 que disseram ‘não’.
Para tranqüilizar os jornalistas, o novo acionista prometeu manter Serge July na diretoria do jornal até 2012. Quando resolver indicar o novo diretor do jornal, a Société Cvile des Personnels de Libération vai ser ouvida e pode vetar essa indicação. Este detalhe faz a diferença comparado com a gestão de jornais tupiniquins.
Rothschild, definido como independente de espírito, prometeu não interferir no conteúdo do jornal mas, por outro lado, comentou que uma nova vida começa. Os jornalistas preferem acreditar que é para ele que começa, como dono de jornal, um papel que até hoje não tinha exercido.
Ele disse ao vespertino Le Monde que quer fazer do jornal a base de um grupo de imprensa que pretende construir. E prometeu limitar sua atuação à gestão financeira do Libé. Como esse especialista em finanças no leme, o jornal tem tudo para se recuperar rapidamente.
Em 1973, o lançamento do jornal foi o acontecimento do ano. Libération se afirmou pouco a pouco, no início apenas um diário fundado por intelectuais maoístas em torno do maior intelectual francês do século 20, Sartre. Depois, encontrou seu caminho, seu público fiel e se transformou no terceiro diário nacional mais lido da França, atrás do Le Monde e do Figaro. Hoje vende cerca de 150 mil exemplares por dia.
Primeiro pilar
A crise do Libération está inserida numa crise global dos jornais franceses. O mundo mudou, chegaram os jornais gratuitos, os grandes jornais começaram a perder leitores para a internet, houve uma grave crise da publicidade em 2003 e em 2004.
Há mais de um ano, já se falava da crise que o tablóide mais charmoso da França vivia. Foi aí que chegou o banqueiro de uma das famílias mais conhecidas do mundo para salvar o antigo jornal maoísta.
No diário comunista L’Humanité de segunda-feira (24/1), o título da matéria sobre a transação é inteligente e espirituoso: ‘Édouard de Rothschild se met au col Mao’ (Édouard de Rothschild adere ao colarinho Mao). Na década de 1970, o colarinho ‘mao’ era uma espécie de uniforme dos intelectuais franceses da esquerda radical.
O rico herdeiro da família Rothschild, que possui fortuna estimada entre 150 e 200 milhões de euros, só deve ter vestido um colarinho ‘mão’ assinado por algum nome das grandes griffes masculinas.
Apesar de ter garantido não intervir no conteúdo editorial do jornal e nem escrever nele, o milionário não deixou bem claro que perfil terá esse grupo de imprensa que ele tem intenção de construir a partir deste primeiro pilar chamado Libération.
Em tempo
2004 foi um ano sinistro para a imprensa. A Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ) divulgou em Bruxelas, na quinta-feira (20/1), um balanço dos jornalistas ou acompanhantes mortos no exercício da profissão: 129 pessoas. Somente no Iraque morreram 49 jornalistas e seus acompanhantes. AFIJ conclama a um dia mundial de protestos em 8 de abril para exigir novas regras internacionais e permitir investigações independentes sobre essas mortes, muitas vezes explicadas em versões oriundas de grupos ou autoridades envolvidos nos assassinatos. Segundo o presidente do International News Safety Institute, Chris Cramer, o ano passado foi ‘uma verdadeira temporada de caça aos jornalistas’.