No sábado dia 29 de março de 2008, após as 23h, a menina Isabella Oliveira Nardoni, de cinco anos de idade, foi assassinada, jogada pela janela de seu apartamento no sexto andar de um edifício de classe média alta na cidade de São Paulo. O que se viu a partir daí foi uma avalanche de material informativo se avolumando e despencando por horas, dias, semanas seguidas, sobre telespectadores, leitores, ouvintes e usuários da internet. Capas de jornais e revistas, transmissões de rádio, entradas ao vivo de emissoras de televisão e matérias atualizadas em sites informativos, tudo isso mobilizava não só a atenção de sujeitos em contato direto com as informações, mas também de multidões que se postavam à frente da casa dos suspeitos e da delegacia, procurando se posicionar na zona de foco do acontecimento. O sorriso da desconhecida Isabella tornou-se onipresente. Surgiram suposições e discursos autorizados de especialistas, falas indignadas, compondo uma verdadeira comoção nacional.
A revista Veja destacou o caso em duas matérias de capa no mês de abril de 2008. Como é próprio do jornalismo, a revista buscou dar significação ao acontecimento e organizá-lo. Mas como dar sentido àquilo que é por natureza paradoxal? O acontecimento funciona como uma força que rompe com as expectativas, efetuando-se sobre o sujeito, que é incapaz de uma contra-afetação, pois não há sentido na ação que se dá. Exatamente por não ter sentido em meio àquilo que já existe, o acontecimento faz com que o sujeito busque novos significados para dar conta do que acontece a ele.
‘Mal’ sugere e generaliza um culpado
A mídia funciona como um desses locais de ordenação do acontecimento, contribuindo para o sentido que se produz. Frente a um acontecimento, nosso movimento de designação passa por uma tentativa de buscar particularidades para definir o estado de coisas que foi ‘quebrado’ por esse acontecimento. O jornalismo, em sua busca por ordenação da realidade, faz escolhas dentro dos vários corpos e relações para representar aquilo que aconteceu e explicar para o público.
No lançamento de Veja de 09 de abril de 2008 não havia motivos nem sentidos no crime, dificultando o processo de explicação da revista. Enquanto designa os personagens envolvidos no acontecimento, Veja não possui referentes ao assassinato cometido. Foi feito um deslocamento de valores onde a causa não é associada a um personagem real, e sim, a um ‘mal’ generalizado.
A capa trouxe a imagem de um grande olho, em cuja íris aparece refletido o rosto da menina Isabella sorrindo. Em tons bastante escuros – preto e grafite –, a capa faz uso de palavras mais generalistas em sua designação inicial do acontecimento. ‘O/mal’ em manchete sugere e generaliza um culpado para um caso que ainda não fecha o sentido. O choque inicial da morte da criança ainda é paradoxal, impedindo uma construção de intriga pela ordem causal, própria do jornalismo. A manifestação do acontecimento aparece, então, diretamente relacionada às escolhas de Veja.
Preenchendo os vazios deixados
A página dupla que abre a reportagem ‘Quando/o mal/triunfa’ é dominada por uma montagem fotográfica. Com este artifício gráfico, Veja aproxima Isabella de outros acontecimentos bastante conhecidos: inglesinha desaparecida; iraquiano torturado em Abu Ghraib; garota maltratada em Goiânia; menina assassinada em São Paulo; crianças mortas pelo terrorismo na Rússia. O acúmulo de diferentes referências para designar o acontecido demonstra a dificuldade de lidar com algo que ainda não há como significar. Sem explicação para a morte da menina, a reportagem busca uma explicação em um mal geral, intrínseco ao ser humano e que responde por vários atos bárbaros.
Durante as semanas que se seguiram à morte de menina Isabella, viu-se um excesso de mediação do acontecimento: telejornais, jornais impressos, revistas, transmissões de rádio, sites na internet, conversas do dia-a-dia. O acontecimento repercutiu de tal maneira que, no final de abril de 2008, uma pesquisa CNT/Sensus apontou que 98,2% dos brasileiros tinham conhecimento do assassinato.
A ausência de um culpado claro – devido à principal suspeita recair sobre o pai, o que foge ao bom senso – acabou por criar uma busca de sentido coletiva, onde cada um analisava as informações enunciadas pela mídia e buscava o fechamento de sentido, que saía fragmentado, confuso, contraditório. Criaram-se camadas de linguagem que se completavam, voltadas para essa proposição, preenchendo os vazios deixados, ao mesmo tempo em que se buscava reorganizar o estado de coisas abalado pelo acontecimento.
O ‘monstro’ diante do espelho
Foram produzidas e divulgadas repetidamente simulações do crime por computador (nas TVs), infográficos e pequenas histórias em quadrinhos (nas revistas e jornais); simulações baseadas em outras simulações – passando e transpassando da perícia às artes e vice-versa – provocando um excesso de significantes em busca de um significado único: o sentido do acontecimento. No dia 23 de abril de 2008, Veja fechou o sentido do acontecimento, destacando, em uma capa escura os olhos do casal Nardoni. Resolveu, assim, o paradoxo do acontecimento: ‘Foram eles’.
A reportagem organiza o sentido em torno de uma intriga, apontando causas que levaram às conseqüências do acontecido. Em uma retranca chamada ‘O crime passo a passo’, o acontecimento finalmente se encontra enquadrado, explicado, organizado dentro do esperado.
O crime é didaticamente explicado por uma série de desenhos e textos em uma reconstituição da intriga, desde a festa em que a família se encontrava até a chegada da polícia ao local do crime. O crime aparece ligado ao estado de coisas, como conseqüência de uma série de causas detalhadamente explicadas. O texto da matéria se volta para o passado dos envolvidos, construindo uma intriga em que o pai de Isabella é apresentado desde o início como incompetente e violento. ‘O `monstro´ que matou a menina Isabella e que seu pai, Alexandre Nardoni, em carta divulgada à imprensa, prometeu não sossegar até encontrar, estava, afinal, diante do espelho. E a mulher, que também em carta afirmou ser a criança `tudo´ na sua vida, ajudou a matá-la com as próprias mãos.’ O sentido está dado. O acontecimento Isabella, encerrado. O leitor de Veja pode concluir que este é um fato. Fim e início se encontram fechando um círculo com sentido. Retornamos ao espelho do qual nos afastamos. ‘O mal’, na verdade, ‘foram eles’.
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Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, mestre em Comunicação Social pela UFMG