Pareceu-me impossível apenas assistir calada, sendo um ser humano, brasileira e tendo acompanhado o caso Isabella Nardoni desde o começo, quando foi anunciado pela imprensa que uma menina teria caído acidentalmente do sexto andar de um prédio em São Paulo, capital. Depois, como se sabe, os fatos progrediram e começou a se falar em assassinato.
Não quero falar da culpa ou da inocência do pai e da madrasta da menina. Não me cabe fazer isso. Cabia ao tribunal do júri e a tarefa já foi cumprida. As pessoas têm sua convicção íntima – creio que a maioria concorde com o veredicto de culpa de ambos – e não cabe mais discutir esta questão, a não ser àqueles envolvidos nos recursos que a defesa certamente fará. O que desejo falar é sobre o comportamento da mídia e das pessoas.
Foram cinco dias de julgamento, de cobertura da imprensa brasileira e, diz-se, também da internacional. Para lhes dizer o que penso, achei tudo vergonhoso! As manifestações ditas populares foram a expressão de uma barbárie lamentável. Víamos sujeitos que viajaram por dezenas de horas para estar na porta do fórum apenas para se mostrar. Um deles, inclusive, assumia, diante das câmeras, que estava lá somente para ‘aparecer para o Brasil’; outro se pregou a um dormente de madeira, ao modo de uma cruz, e saía para tomar cafezinho quando queria porque ‘afinal, era humano’. As pessoas carregavam faixas, vestiam camisetas falando de outros casos, alguns já julgados e com culpados devidamente encarcerados.
Festejar, soltar fogos…
Para que lembrar do que já foi resolvido se nenhum bem se faria com isso? O que a família da menina morta tem a ver com isso ou até o que tudo ocorrido com Isabella e com os réus tinha a ver com aqueles outros casos? Todo o empurra-empurra, as filas que começavam na madrugada para se conseguir uma senha e se entrar na sala de julgamento… Para quê? Entendo que os estudantes de Direito e profissionais da área se interessassem por acompanhar tudo, mas… curiosos? Para quê?
Para que, se os jurados, a quem cabia julgar, mal conseguiam suportar o cansaço, a extensão dos longuíssimos depoimentos, a ponto de um deles, inclusive, segundo a imprensa, ter sido admoestado pelo juiz de Direito sobre a postura, a pouca atenção que parecia estar dando ao que no tribunal era exposto? Curiosos? Há certas coisas que estão acima da mera curiosidade inócua! Entretanto, as pessoas parecem ser atraídas pela desgraça do semelhante, seja um acidente sangrento ou pessoas sendo julgadas e, acredito, até pré-julgadas pela opinião pública. É incrível que ninguém sinta vergonha de expor uma curiosidade dessas!
Vergonhosa foi também a reação do populacho ao final do julgamento, como se as diárias manifestações, nesses cinco dias, à porta do fórum, fossem insuficiente prova dessa barbárie. Quando foi transmitida a sentença de culpa dos réus, ouviam-se, mesmo pela televisão, fogos de artifício espoucando, gritos e a choldra em um vil corinho: ‘Eu, eu, eu, o Nardoni se f..eu!’ Era quase um 4 de julho dos filmes americanos, a Copa do Mundo e o Ano Novo de Copacabana, tudo junto, tamanho o barulho de fogos! Isso não é apoio à família de ninguém, como alguns, em vã tentativa, explicavam a própria presença às portas do fórum, e como a avó da menina, em um dos dias, exaltada ao entrar no fórum, qualificou de ‘amor à minha neta’. Não, não era. Era curiosidade mórbida, como ficou bem claro e aquela já mencionada e admitida ‘vontade de aparecer’.
Agora, enquanto escrevo, 1h33 de sábado (27/3). Ainda vemos, pela TV, populares, inclusive com crianças de colo (!) e outras, pouco mais velhas, do lado de fora do local do julgamento. Quem são essas pessoas que expõem os próprios filhos ao frio da madrugada, no meio do burburinho, da desordem, do empurra-empurra, para festejar uma condenação de indivíduos que não conhecem pela morte de alguém que também não era de seu convívio e sobre quem só souberam por reportagens, muitas delas tendenciosas, apresentadas nos meios de comunicação? Importamo-nos com nossos semelhantes, é certo, e isso faz de nós humanos, mas por que não parecem aquelas pessoas importar-se com o bem-estar dos próprios filhos, daqueles pequenos que lhes são mais próximos em questionável benefício de… de… De quem?
Festejar, soltar fogos, colar-se à grade do fórum, meter-se em multidão, vaiar réus, chutar e bater nos carros que os transportam a ponto de a polícia ter que intervir… Tudo isso é em benefício de quem? E se não é em benefício, trazendo, contudo, claro malefício às crianças e a si próprios (vão dormir, pelo amor de Deus! Ou pelo menos saber dos acontecimentos no sofá de casa!), para quê?
Discrição significa não-exposição
Horrível é, desde o início, a cobertura da imprensa. E, perdoem-me, cabe-me o julgamento disso, sendo eu também jornalista e mesmo espectadora desse circo formado há dois anos. Houve uma atenção excessiva, uma superexposição de cada migalha de fato, um dissecar obsessivo de cada um dos fatos cercando a morte da menina e com tamanha insistência que levou a um resultado que não poderia ser outro senão a pré-condenação de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá.
Esmiuçava-se cada pequenino detalhe, especulavam-se brigas, ciúmes, desentendimentos, choros, infernos familiares particulares parecidos com uma trama digna de um Tolstoi! Procuravam-se supostas ‘provas’ de que aquelas eram pessoas monstruosas desde sempre, vilões de filme mudo. Anna Carolina Jatobá, então, personificava a figura clássica da madrasta, como nas fábulas infantis. Era como se, só por ser madrasta, estivesse fadada a ser ciumenta, má, invejosa, propensa ao mau trato infantil. Até mesmo as provas periciais – chatíssimas, técnicas, longuíssimas, acima do entendimento da maioria de nós, sem som – foram acompanhadas, ao vivo, momento a momento, desde a manhã, quando começaram, até à tarde, pela televisão e outros meios de comunicação. Houve, inclusive, a interdição do espaço aéreo ao circunredor do edifício onde os fatos ocorreram porque as autoridades já previam que o tráfego aéreo ali estaria movimentado graças a helicópteros dos meios de comunicação.
A transmissão cansativa tomou conta de todos os canais da televisão aberta. Caso se quisesse ver outra coisa que não os testes periciais, ah, não se poderia! ‘Veja o CSI nacional, sem Grissom, sem som, sem mágica de seriado, sem trilha incidental, telespectador, ou não veja nada!’ Condenados, naquele dia, também fomos nós, pela falta de opção. Aliás, podia-se ver outro programa qualquer, desde que se fosse um felizardo assinante da TV a cabo (irônico seria se a grade de programação nos dissesse que CSI Las Vegas, Miami ou New York era o programa da vez, em uma dessas maratonas de repetição contínua), o que uma parcela bem diminuta da população brasileira é.
Cheguei a ouvir na imprensa louvações à suposta discrição do comportamento da mãe da menina durante todo o caso. Não sei se posso concordar com isso. É fato que não houve comportamento escandaloso, mas chegou, sim, a ceder algumas vezes ao brilho dos holofotes. Escrever uma mensagem longa e comovente no perfil do Orkut da menina (ou dela própria, nem me lembro mais) como se estivesse falando com a garotinha, despedindo-se da morta; expor-se no cemitério às câmeras de televisão, apertar a mão de desconhecidos que levavam ursinhos e flores ao túmulo da menina… Ora… não foi a conduta mais discreta. Agora, aparece na TV a moça na varanda do prédio onde mora, chorando e acenando para a multidão, como uma Evita no balcão. Discrição? A morte de um ente querido (e talvez a condenação dos que são tidos por um júri como culpados) tradicionalmente é vivida em particular. Não quero falar aqui no que é mais ou menos ‘elegante’, mas a discrição significa a não exposição, e ela não ocorreu sempre.
‘O brilho da noite’
Depois de tanto esforço para se fazer uma cobertura tão ‘completa’ (leia-se invasiva, excessiva, injusta porque, sabemos, a imprensa é formadora de opinião), a pré-condenação de Jatobá e Nardoni seriam favas contadas! No Direito existe o que é chamado de desaforamento (lembro-me um pouquinho dos meus anos na faculdade de Direito). Por esta figura legal, quando um caso ganha muita repercussão e notoriedade dentro de uma dada comunidade, normalmente onde o suposto crime ocorreu, o julgamento pode tomar lugar em outra comarca para que a opinião pública não interfira no julgamento e na decisão dos jurados que são, afinal de contas, escolhidos dentre as pessoas do povo. Neste caso, pela repercussão nacional, isto não seria possível. Como procurar um lugar com alguma isenção ou menos contaminado por essa cobertura constante e excessiva, se ela foi feita por todas as televisões, jornais e rádios do país?
Houve a minudente cobertura do julgamento, como não poderia deixar de ser. A Rede Record destacou uma das apresentadoras tidas como uma das estrelas do telejornalismo nacional para a porta do fórum, como se, do nada, voltasse a ser uma repórter de rua, posição que ocupou há mais de, pelo menos, duas décadas, tendo sido promovida, há muito, a apresentadora, posição de muito mais relevo. A profissional de nossa mais expressiva televisão, em índices de audiência, a Rede Globo, parecia falar sem notar o que dizia.
Na quinta-feira (25/3), talvez vencida pelo cansaço de uma cobertura Moby Dick, trocava o nome da ré pelo da mãe da menina; ambas Ana Carolina (na verdade, Jatobá é Anna, com um ‘n’ dobrado que nossa língua não permite diferenciar, mas a mãe sendo ‘de Oliveira’ e a ré sendo ‘Jatobá’). Os nomes eram trocados quase como se em um conto do bizarro. Trocou os sobrenomes não uma, duas, mas todas as vezes em que falou em uma das mulheres, em um flash ao vivo para o Jornal das Dez, telejornal da Globo News (a tentativa de ser a CNN que a Globo faz na TV a cabo). Hoje, esta mesma profissional, Renata Ribeiro, interrompia a apresentação do jornal (excepcionalmente longo e apresentado por Eduardo Grillo) para mostrar flashes desimportantes como os carros que levavam os condenados ao presídio (eram só dois carros andando pela estrada, com quatro rodas e chassis! Não se viam sequer os ocupantes!), para insistir na repetição de ‘informações’, uma, inclusive, que não passava de um brocado jurídico (ouviu-se com uma repetição enervante a jornalista citando o advogado de defesa: ‘O brilho da noite é do promotor Francisco Cembranelli!’, frase óbvia e que pouco acrescentava à cobertura) e para uma rápida conversa com um dado jurista, ora dado como advogado, ora como juiz nos últimos dias, com uma voz embargada, afetada como aquelas dos rábulas de dentro dos tribunais emocionais.
Comunicação e repetição
O assunto? Exatamente o que Grillo tentava desenvolver com dois juristas convidados e que, pelas interrupções constantes, não conseguiam consolidar o pensamento! Para que Renata nos mostrasse obviedades factuais desimportantes, Grillo era obrigado a interromper os convidados, em uma atitude que era, no mínimo, descortês e desagradável. Para vermos carros rodando sobre a estrada, éramos interrompidos no que realmente interessava à audiência, que eram as explicações detalhadas sobre as condições de cumprimento das penas, fato de conhecimento dos iniciados em Direito, mas certamente novo para a maioria de nós, espectadores.
Outra questão a respeito da cobertura de Renata foi o fato de que ela não conseguiu, nem por um minuto, esconder a opinião pessoal sobre o caso. Ela torcia, víamos, pela condenação de Nardoni e Jatobá. Era claro pelo tom de voz que adotava, pela repetição entusiasmada de reveses da defesa dos réus (ou de frases inexpressivas, vide ‘o brilho da noite…’). Também como indício dessa opinião está a raridade com que se ouviam as palavrinhas mágicas para a isenção da notícia: ‘suposto’, ‘suposta’, ‘supostamente’. Era ‘o crime’, e não ‘o suposto crime’, ‘os assassinos’, e não ‘os supostos assassinos’, era ‘empurrou pela janela’, e não ‘supostamente empurrou pela janela’.
Pergunto: onde fica a propalada (embora cada jornalista saiba, inexistente) neutralidade do profissional em comunicação social em um caso desses? Essa tal neutralidade, essa isenção, sabemos, é sempre uma quimera, mas cabe ao jornalista pelo menos aparentá-la, cabe a ele afastar a opinião pessoal do fato que deve ser apresentado. É um dever da profissão. O pecado de Renata, felizmente, não foi o de Cesar Tralli, jornalista bem mais experiente, destacado para fazer a cobertura do julgamento para o canal de TV aberta da Globo. Durante todo o tempo, ele tentou ser e parecer isento. Cesar foi exemplar! Aprende-se, além do truque da isenção, em uma faculdade de Comunicação Social, que a comunicação televisiva se faz pela repetição. Afinal, alguém pode ter ligado a TV exatamente naquele instante e, assim, ter perdido uma fração do que já foi informado. Contudo, há de se usar algum bom-senso, escolher o que é relevante para a repetição e o que é mera repetição sem sentido, vazia (‘o brilho da noite…’).
Humanos menos humanos
A tudo isso, opôs-se, felizmente, a Justiça. Foi ela quem brilhou, a meu ver. A venda que lhe cobre os olhos foi do mais refinado tecido, o manto foi reluzente e a espada se manteve ao alto até o último segundo, conforme ensinam os livros de doutrina do Direito. O juiz parece ter tido, segundo as notícias, um comportamento exemplar, irreprochável, preocupando-se em dar plena possibilidade de defesa, em coibir abusos de retórica de ambas as partes, tanto do promotor quanto do advogado dos réus. Até mesmo a leitura da sentença mostrou como houve a busca pela falta de emoção e atenta à letra da lei.
Houve a condenação, as penas foram longuíssimas e, contudo, não se notou, fosse na voz do magistrado, fosse no conteúdo da sentença, nenhum fio de emoção que sugerisse vendeta ou desejo de promoção. Não foi, como o comportamento do populacho demonstrava querer, vingança, e sim a pura, cristalina e sensata justiça. A voz do juiz Maurício Fossen era desapaixonada, direta, limpa. Foi um bálsamo ver alguém agindo de forma a sublinhar realmente a justiça em si. Era-lhe a função, como juiz togado que é, eu sei. Entretanto, dada a repercussão do fato, ver tanto profissionalismo, tanto amor à justiça, tanta retidão foi muito, muito bom! Tudo, absolutamente tudo o que Fossen fez pareceu certo, inclusive proibir que as televisões e rádios acompanhassem, de dentro do tribunal, o julgamento. Aquilo é um tribunal, não um estúdio! Tudo o que não se precisava era ainda mais exposição.
Quem teve a paciência de ler tudo o que escrevi nesta postagem deve estar se perguntando se eu torcia pelos réus, talvez me achando uma sem coração por não sentir pena da menina morta de forma tão violenta, da mãe e dos avós dela. Digo que nada disso. A princípio, eu não torcia nem pela condenação nem pela absolvição dos réus. Não cabia a mim julgar, como disse no início deste texto, e não fazia força para permanecer assim.
Se estou feliz com a condenação de Anna Carolina Jatobá e de Alexandre Nardoni? Não. Não estou. Não porque eu quisesse que fossem soltos, mas porque não sei o que aconteceu naquela noite, naquele apartamento e por que um crime tão hediondo, contra uma criança tão pequena, incapaz de se defender, possivelmente perpetrado pelo progenitor e pela companheira dele… Penso que isso não faça bem a absolutamente ninguém. Seria melhor que não tivesse acontecido ou que, se irremediavelmente ocorrido, que não fossem justamente os responsáveis pela salvaguarda e bem-estar da menina os perpetradores desse ato horrível. Torcia para que os dois fossem inocentes, que as provas assim mostrassem. Não é que eu torça por Nardoni e Jatobá, repito. Torcia pela inocência dos dois porque um crime tão terrível, tão feio, fez mal não só a Isabella, mas a todos nós e cada um de nós, às nossas consciências, a pais e filhos, a observadores, à nossa fé no mundo. Tudo aquilo nos fez mal como pessoas, como coletivo, como seres humanos. Tornamo-nos, ao saber de um fato desses, ao acompanhar uma cobertura que vai às entranhas assim, ao participar ou apenas assistir ao comportamento da choldra, ao prejulgar, humanos menos humanos.
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Jornalista e revisora de texto, São José do Rio Preto, SP