‘Quando a função de ombudsman foi criada neste jornal em 1989, o mandato para exercê-lo era de no máximo dois anos. Mais tarde, por razões que desconheço, resolveu-se que o prazo poderia se estender a até três anos. Estou seguro de que dois anos é a medida certa.
Como afirmou um de meus antecessores, Marcelo Leite, ao se despedir do trabalho, em 1997: ‘Sábia é a regra adotada na Folha que fixa o mandato do ombudsman em no máximo dois anos. Muito mais tempo no liquidificador, desandaria a liga delicada com leitores e Redação, como ovos, azeite e limão na maionese. A acidez prevaleceria, degradando uma invenção civilizada em grumos e azedume’.
Leigos costumam achar que jornalismo é profissão sem rotina. Ledo engano. Todo ano tem Carnaval, Campeonato Brasileiro e enchentes em São Paulo; a cada dois, eleições e bienais; de dois em dois ou Copa do Mundo ou Olimpíada; todos os dias, fofocas políticas e denúncias de corrupção. Depois do segundo ano de críticas, ou o ombudsman já conseguiu convencer a Redação de algumas coisas ou dificilmente o fará, não importa quantas vezes mais volte a bater na mesma tecla. Discurso e reação começam a ser previsíveis e se tornam inúteis.
No meu caso, um terceiro mandato seria particularmente inviável por coincidir com uma eleição presidencial em que se exercitarão com força total os piores instintos de parcela pequena mas nefasta do eleitorado engajada na guerra sectária de partidos políticos que vem desgastando o tecido das relações sociais no país há alguns anos.
A arena de debate político no Brasil se transformou para algumas pessoas em ringue de combate da modalidade ‘ultimate fight’. Para esses trogloditas do espírito, a força do argumento parece diretamente relacionada com a intensidade do insulto: acham que ganharão mais discípulos se conseguirem xingar mais alto e no mais baixo nível os seus inimigos.
Não sou talhado para esse tipo de embate. Não tenho habilidade, disposição, instrumental para me sair bem nele. Se isso é o que se requer para garantir a sobrevivência das espécies neste ambiente social, prefiro estar entre as ameaçadas de extinção.
Acredito que a principal função do ombudsman seja estimular o diálogo honesto e racional entre leitor e Redação por meio de discussão respeitosa e cordial sobre erros em que o jornal possa incorrer e maneiras para que eles aconteçam menos no futuro e sobre eventuais distorções de percepção que leitores possam ter do trabalho jornalístico e da função da imprensa na sociedade.
Isso será quase impossível fazer no ambiente carbonário que se pode antever da campanha eleitoral, em que tudo será reduzido por alguns a motivações partidárias, de um ou outro lado. E onde essas tropas de choque da intolerância sempre exigirão condenações morais de pecadores. No magnífico filme recomendado ao fim do texto, atribui-se a Thomas More a seguinte resposta a alguém que lhe cobrava que se pronunciasse com vereditos definitivos sobre o caráter de seus adversários teológicos: ‘Eu não disponho de nenhuma janela para olhar a consciência de outro homem; eu não condeno ninguém’.
Creio que o ombudsman deve promover a dúvida, não corroborar certezas, como Albert Camus (cujo último livro, inacabado, indico ao lado) conseguiu fazer em pleno ambiente da Guerra Fria, quando muitos de seus antigos aliados o estigmatizaram por ele se recusar a acatar dogmas. Acho que seria muito difícil, para mim, fazer isso neste ano eleitoral.
As amostras que tive do poder destrutivo dessas forças da irracionalidade foram suficientes. Elas desrespeitam até o direito humano (artigo 12 da Declaração Universal) garantido pela Constituição (artigo 5) da inviolabilidade da correspondência. Uma troca de mensagens entre mim e um leitor foi apropriada por terceiro, que deturpou seu conteúdo, atribuiu a mim afirmações que eu não fizera e a endereçou a blogs de jornalistas, que a acolheram e a abriram a comentários sem jamais terem consultado nem o emissor nem o destinatário do e-mail se ele correspondia ao real. E alguns desses blogs são de pessoas que dizem lutar contra a falta de ética da ‘velha mídia conservadora’.
Testemunho que a Folha manteve a integridade desta instituição nos meus dois mandatos. Mesmo nos episódios mais delicados, nunca recebi de ninguém da Redação ou a seu mando qualquer indicação sobre que temas eu deveria abordar ou evitar nem comentários sobre o que aqui foi publicado, que é inteira e exclusivamente de minha responsabilidade.
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PARA LER
‘O Primeiro Homem’, de Albert Camus, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza Newlands Silveira, Nova Fronteira, 2005 (a partir de R$ 25, 42)
PARA VER
‘O Homem que Não Vendeu Sua Alma’, de Fred Zinnemann, com Paul Scolfield, 1966 (em locadoras e eventualmente no canal de TV paga Telecine Cult)’