Se Hegel profetizou o fim da História como consequência supostamente lógica de embates de teses, antíteses e sínteses, aos quais romanticamente chamou de dialética, era porque não enxergava, socialmente falando, um palmo em sua frente, pois não via quem arrumava sua cama, limpava seus sapatos, fazia sua comida e cotidianas coisas que tais.
Hegel, deduz-se, não estava no mund, porque tinha todo um mundo para cuidar de suas angelicais dialéticas. De qualquer forma – daí o plural, dialéticas – seu pensamento era perspectivo, imbuído de movimento, de conflito e partia do coração do presente, além de estar, através da dialética, implicado com uma visão utópica, porque inscrita numa lógica que pressupunha um mundo melhor, talvez sem cozinheiro e engraxate, lá na outra ponta em que as idéias não labutam e nem lutam entre si mais, pois se tornaram idéias absolutas, perfeição platônica.
Em nossa neoliberal época, por sua vez, o filósofo e economista nipo-estadunidense Francis Fukuyama (1952) achou por bem acreditar (e creditar) que todas as idéias já tinham entrado em conflito e que, portanto, estamos finalmente no profetizado hegeliano fim da História, que equivale também ao fim das ideologias, ao fim do sujeito e tantos outros proféticos fins em si mesmos, no contexto de uma pós-modernidade teoricamente arrogante e equivocada, pelo simples fato mesmo de ter adoração por fins e mortes.
Imaginário dos contos de fadas
O capitalismo neoliberal-financeiro, assim, constitui, com Fukuyama, a síntese das sínteses num mundo sem idéias, sem conflitos e antes de tudo sem movimento. Chegamos, mais ou menos, ainda segundo Fukuyama, ao hegeliano utópico mundo da Idéia Absoluta, a saber: o do capitalismo midiático-espetacular-financeiro-parasita.
Parasita porque, tal como o mundo dialético de Hegel, não enxerga socialmente um palmo na frente do nariz, razão pela qual, de forma narcisista, só vê seus próprios individuais interesses, ignorando e desprezando o trabalho diário de anônimas pessoas mal-remuneradas, as quais, longe das Idéias Absolutas, não sem contradição, sustentam os geniais especuladores religiosos da boa nova de um mundo sem mundos, de um mundo, enfim, estanque, paralisado, sem movimento, como se fora para sempre um mundo sem História, eterno como um presente naturalmente pronto e acabado.
E aqui chegamos ao caso da transmissão televisiva do recente caso do julgamento de Alexandre Nardoni, 31, e Anna Carolina Jatobá, 26, ambos acusados – e agora condenados – de terem assassinado a menina Isabella Nardoni, filha do primeiro e enteada da segunda, cuja edípica inscrição, a da Anna Carolina Jatobá, retoma e reescreve o imaginário vingativo das madrastas dos contos de fada: ‘a culpa é da madrasta, o pai deixou-se levar por seu ciúme doentio’, é o que podemos deduzir do inconsciente político-midiático-policial-judicial da trama.
O papel reacionário da cobertura
Vale a pena, a propósito, destacar a presença inusitada, mas previsível, de dois tribunais, o Tribunal de Justiça de São Paulo e o midiático-televisivo-espetacular, de vez que tanto o advogado de defesa, Roberto Podvol, quanto o promotor, Francisco Cembranelli, procuraram, ou foram procurados, pelas redes de televisão, com o nítido objetivo de reinstalar/reproduzir/reencenar, respectivamente, a defesa e a acusação instalada/produzida/encenada nos bastidores do tribunal, digamos, tradicional, embora a sentença, antes de tudo para o tribunal midiático, já estivesse definida desde antes, talvez por causa da contumaz, e não menos criminosa, mania que os meios de comunicação têm de prejulgar, desrespeitando totalmente a presunção de inocência, princípio jurídico de importância cabal para a mínina garantia de justiça.
Evidencia-se, assim, a presença de dois juízes para o midiático caso em questão: aquele que responde pelo nome de Maurício Fossen, o oficial; e aquele outro, o Grande Irmão, que responde pelo genérico nome de Sociedade do Espetáculo, conforme a definição de Guy Debord.
O mais importante nisso tudo, entretanto, é a constatação de que os meios de comunicação, tal como funcionam, são a expressão cabal do fim da História de Fukuyama, além de se constituírem como a decadência orquestrada do fim da dialética hegeliana, pois se apresentam como a própria Idéia Absoluta, posto que neles a única idéia possível é aquela vinculada à mercantilização da vida, à ordem/desordem burguesa capitalista, razão suficiente para serem a narrativa objetivamente tramada para figurar um mundo sem ideologia, sem alteridades.
É por isso mesmo que a intensa cobertura televisiva do julgamento dos réus, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, demonstra bem o papel reacionário dos meios de comunicação, e da televisão em espacial, em função mesmo de sua alta audiência e também pelo fato de ser uma concessão pública.
Guardiãs do fim da História
Como farsesca encenação, ou autoencenação, do fim da História como Idéia Absoluta, a cobertura desse chocante crime só poderia mesmo ser individual e jamais poderia aproveitar a oportunidade para discutir valores que coletivamente cultivamos e reproduzimos, principalmente aqueles ligados à sociedade patriarcal, que é a que vivemos, assim como aqueles outros, por consequência, implicados com o heterossexualismo monogâmico compulsório, base de nossa lastimável, infantil e violenta família nuclear, burguesa ou operária.
No interior de uma sociedade patriarcal edipiana, e compulsoriamente monogâmica, o amor é sempre concebido como posse e, por consequência, a simples hipótese – real e/ou imaginária – de uma terceira pessoa constitui geralmente motivo de infindas brigas, de combates de baixa, média e alta intensidade, podendo levar, por vezes, a desesperadas e violentas brigas, as quais são sim um importante fator de violência e, portanto, de fratricídio, matercídio, parricídio, infanticídio e por aí vai.
Quem de nós não viveu e vive essa situação, a do fantasma de uma terceira pessoa, em nossos relacionamentos amorosos?
Perder a oportunidade de uma discussão mais ampla, para um caso como o do assassinato de uma criança, sem desconsiderar, é claro, a culpabilidade individual, constitui o exemplo cabal de que as TVs abertas, sob o controle de interesses mercantis, combatem por todos os meios a verdadeira liberdade de expressão, além de serem as guardiãs do fim da História, da Idéia Absoluta, como se a capitalista patriarcal monogâmica civilização em que vivemos fosse a única possibilidade de mundo possível.
Um tribunal dialético-democrático
É proibido pensar, noticiar, narrar e se divertir na programação televisiva, sob o signo, repito, da verdadeira liberdade de expressão, entendida como a garantia de apresentação de pontos de vista ideologicamente diferentes, porque implicados com a dialética do e no mundo, porque capazes de assumir que não estamos prontos e acabados e que, portanto, a família pode ser diversa do que tem sido, assim como pode ser diverso o modelo econômico mercantil-financeiro-parasita de nossa atual civilização.
É proibido, nesse sentido, a própria liberdade de expressão, o que fica claramente evidenciado se atentarmos para os perfis dos profissionais que trabalham nas tevês ‘privadas’, os jornalistas, os animadores de auditórios, os atores.
Todos eles, sem exceção – pelo menos tendo em vista o papel que cumprem como funcionários – são a encarnação humana do fim da História. Todos assumem a sociedade capitalista (logo seus pilares como a propriedade privada, o patriarcalismo) como a única possível.
Todos individualizam o crime, a maldade, a violência.
Eis aí o reino da burrice e da barbárie. Com urgência precisa de um tribunal dialético-democrático, coletivo, a fim de decretar o fim de sua imperiosa e injuriosa farsesca História.
Essa, sim, é uma questão de comoção social, civilizacional.
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Professor de Teoria da Literatura, Ufes, poeta e escritor