Os 64% de aprovação do presidente Lula renderam o de sempre na imprensa – comentários assinados sobre os possíveis efeitos do recorde de popularidade nas eleições deste ano e na sucessão de 2010, pelo menos um editorial [Folha] e uma que outra “repercussão” com os suspeitos de sempre: políticos da oposição e cientistas políticos.
Nada de novo tampouco sobre os presumíveis motivos da lulolatria: políticas bem-sucedidas de redistribuição de renda [Bolsa-Família, aumentos reais em série do salário mínimo] e de inclusão social [ProUni], crescimento firme da economia, do emprego e do consumo, inflação aceitável, o anunciado advento do pré-sal – tudo isso fomentando um clima juscelinista de otimismo amplamente difundido e levado às últimas pelo carisma inigualável da figura do presidente.
Mas está faltando algo muito importante na cobertura dessa história: o papel do próprio governo Lula.
Faça-se de conta que a oposição tem razão quando diz que “Lula só está colhendo os frutos do que foi plantado lá atrás” – e, para ela, tudo foi plantado lá atrás.
Mas esses frutos não são daqueles que caem de maduros por si sós. A colheita depende, no limite, de saber colher: de como se executam as decisões de governo, mesmo se plantadas “lá atrás”.
Até para fazer mais do mesmo é preciso um mínimo de competência – a ponte entre a deliberação e a ação.
Então o ponto é esse: se a administração federal está se saindo bem ao fazer o que o núcleo dirigente decidiu – se não estivesse, os resultados seriam outros e assim também a avaliação do presidente –, como é que se chegou a isso?
Por que o Bolsa-Família, por exemplo, se tornou o avesso do Fome Zero em matéria de realização? Como é que o programa é gerido no dia-a-dia? Como é que se administram os inevitáveis erros de execução e como é que se procura reduzir os também inevitáveis desperdícios?
O mesmo, ou mais ainda, para a política econômica. Todo santo dia ela exige uma costura o quanto possível coerente de decisões tópicas tomadas por uma multiplicidade de setores, autoridades e burocratas, a partir da decisão de partida – no caso, a de pisar fundo no acelerador da economia, a marca do segundo governo Lula.
A última vez que a imprensa chegou perto de conferir a execução de um programa de governo foi em relação ao PAC. Apontou as diferenças entre o pretendido e o obtido no andamento das obras e entre recursos orçados e recursos desembolsados. Mas não se preocupou o suficiente para informar, usando casos concretos, por que as coisas não saíam do papel, quando não saíam.
A idéia, em resumo, seria escolher um punhado de diretrizes do governo e tratar de apurar como e por quem e em que circunstâncias elas são tocadas na prática: onde é que o carro pega, onde é que ele morre e como é que ele é consertado – se é.
Editores muitas vezes relutam em soltar a coleira de pautas do gênero, de medo que o resultado pareça jornalismo chapa-branca. O risco existe – e será tanto maior quanto mais bem sucedido for o governo na área que se estiver cobrindo. Só que não é uma fatalidade. Em cada caso, o repórter pode recorrer, entre outros, a especialistas em gestão pública sem ligações com o governo para julgar o seu desempenho nessa ou naquela frente.
E, afinal, se a história que sobrar para contar for uma história de sucesso – e que tem parte com a aprovação a Lula – que seja: pelo menos o público terá a rara oportunidade de espiar o funcionamento da tal da máquina administrativa.
Não é nada, não é nada, melhor do que o jornalismo declaratório de cada dia seguramente é.
P.S.
Melhor do que contar as coisas que acontecem – o básico dos básicos em qualquer órgão de imprensa – é fazê-las acontecer para contar depois.
A Folha fez isso duas vezes no domingo.
Na matéria que daria a manchete do jornal, o repórter Leonardo Souza entrou em contato com “pessoas que se apresentam como detetives particulares e funcionários de empresas de telefonia” e fez com que, por seu intermédio, vendessem a três políticos – os senadores Álvaro Dias e Aloizio Mercadante e o deputado Gustavo Fruet – extratos de ligações de seus celulares. Só no caso de Mercadante as chamadas relacionadas não conferiam com os números da sua conta.
É assim que as teles cumprem a obrigação de preservar o sigilo do histórico das ligações feitas por seus clientes.
A segunda situação criada pelo jornal para mostrar como são as coisas entrou numa grande e bem-feita matéria sobre o polêmico projeto do governador José Serra que proíbe o fumo em lugares fechados de uso coletivo – e que tem a aprovação de 81% dos entrevistados numa pesquisa do Datafolha.
O repórter Rogério Pagnan pediu à atriz Manuela Alvim que ficasse fumando em áreas onde é proibido fumar em cinco lugares públicos de São Paulo – Palácio dos Bandeirantes, Assembléia Legislativa, Aeroporto de Congonhas, Shopping Iguatemi e uma lanchonete McDonald’s. Só foi repreendida no aeroporto e na lanchonete – e, mesmo assim, ninguém lhe disse para apagar o cigarro. No palácio onde Serra trabalha, caprichou: fumou durante 6 minutos ao lado de uma placa da proibição; ninguém deu a mínima.