Não sabemos o que as comissões parlamentares de inquérito vão encontrar, mas sabemos que o campo é minado e que ali será travada a maior de todas as batalhas – a das versões.
A televisão já assestou suas câmeras sobre a Câmara e sobre o Senado. E recomeça, como nos tempos de Collor, a transmitir todas as partidas, ao vivo. Os parlamentares já se arrumam em seu palco preferido, a mídia.
Jornalistas e políticos parecem unidos numa trama obscura em cujos labirintos semelham estar perdidos e raramente iluminam bem os verdadeiros temas. O público espera dos jornalistas um relato crítico que lhe permita entender os objetivos das investigações de que estão encarregados aqueles parlamentares e não outros.
Iluminados por clarões de fotos e vídeos, alguns parlamentares parecem nunca se renovar e semelham um Senado e uma Câmara virtuais, desvinculados das instituições reais. São sempre os mesmos, ainda que o mandato de deputado dure apenas quatro anos e o de senador, oito. E, então, periodicamente, nós, o público, nós, os leitores, nós, os telespectadores, nós, os ouvintes, nós, os eleitores, somos obrigados a assistir a intensas discussões sobre um tema que é a síntese do verdadeiro samba de uma nota só: a reeleição.
Lâmina afiada
Quem mais opina é uma plêiade de reeleitos! Se não reeleitos ali, reeleitos antes de ali chegarem. E como chegaram? ‘Nos braços do povo’, é a velha metáfora preferida, mas faz tempo que o povo tem uma participação que merece ser revista no processo em que a mídia reina soberana. O que interessa não é a reeleição, é o modo de a democracia funcionar no Brasil.
Nessas primeiras batalhas das versões todo cuidado é pouco. Suetônio registrou a desistência de Catão, escalado para apaziguar um tumulto originado pela fome: ‘É muito difícil explicar alguma coisa ao estômago, que não tem ouvidos’. No original: ‘Per difficile est verba facere ad ventrem auribus carentem’.
Por mais que sejam pródigas as explicações e criativamente ornamentadas nos fulgores da mídia, sobrevém uma hora em que é a boca do estômago que fala, não a boca propriamente dita.
Na Revolução Francesa, a queda da Bastilha começou com gritos de ‘Viva o Rei’, como agora saúdam o presidente Lula nas denúncias, preservando-o. Os insurgentes tinham a intenção de obter armas para defender Paris, assustados com a boataria que tinha invadido a França. Todo mundo sabe como terminou: o rei Luís XVI perdeu a cabeça! E somente a perdeu na guilhotina porque a tinha perdido antes, quando deu ouvidos a quem não devia.
Lições de Tocqueville
Não havia rádio nem televisão, mas a literatura e a iconografia se juntaram para, cumprindo funções de uma mídia inexistente, construir a lenda heróica que celebrizou a libertação das vítimas da Bastilha, silenciando sobre detalhes reveladores.
Pois a verdade é que a fortaleza era uma fraqueza só. Foi derrubada a machadadas por um arruaceiro – perdão, um revolucionário, pois a versão que triunfou foi a dos insurgentes – que ousou entrar pelo telhado. Estavam presas lá sete pessoas: dois loucos, quatro estelionatários e, o mais importante deles, o escritor Donatien Alphonse François, o Marquês de Sade.
Será que é preciso crucificar um operário para chegar ao Iluminismo por meios pacíficos? Aprendamos com outro francês, Alexis de Tocqueville, que viu nos primórdios da democracia americana uma estabilidade garantida pela ‘multidão incontável de homens quase iguais’ que, não sendo excessivamente ricos nem excessivamente pobres, era o principal sustentáculo daquele regime.
Todos no Brasil querem a democracia, mas está difícil implementá-la.