O que será do PT depois disso tudo que está aí é uma questão em aberto. E a mídia bem faz em não querer prever o imprevisível.
Mas uma coisa os fatos noticiados parecem deixar claro: acabou o reinado de 10 anos do ex-ministro José Dirceu no Partido dos Trabalhadores.
A partir de 1995, quando se elegeu presidente da legenda pela primeira vez, o deputado levou adiante a plena carga o complexo processo de transformação operacional e política do aparato petista que começara a pôr marcha depois de derrubar da secretaria-geral o professor Francisco Weffort, anos antes.
A isso, em última análise, o presidente Lula deve a sua eleição, com todo respeito a Duda Mendonça. Para não falar na conquista de governos estaduais e prefeituras, e no aumento exponencial das bancadas petistas nas câmaras legislativas do país.
Com o estilo que ninguém ignora, ele concentrou o poder na cúpula partidária, onde substituiu gradativamente o ardor ideológico pela frieza burocrática. A centralização política e a profissionalização administrativa eram faces da mesma moeda, meios para um mesmo – e pragmático – objetivo.
No reinado de Dirceu, as incontáveis facções petistas tinham todo o espaço para falar e brigar – e praticamente nenhum para decidir. Árvore cada vez mais cheia de ramos, a agremiação sempre tinha nichos para manter ocupados os seus quadros; ali podiam fazer o barulho que quisessem.
O PT se transformara no mais americano dos partidos brasileiros – no plano estrutural, naturalmente.
Data daí a ascensão do secretário-geral Sílvio Pereira e do tesoureiro Delúbio Soares, cujas cabeças acabam de rolar, além do secretário de Comunicação, Marcelo Sereno, na máquina partidária. Ascender, no caso, significou adquirir a mais ampla latitude para fazer o que deles o seu mentor esperava, em favor do projeto de poder que traçou para a sigla.
Isso não quer dizer que Dirceu tenha conseguido (ou pretendido) aplastar todas as caciquias partidárias. O que ele fez, trabalhando a quatro mãos com o então deputado José Genoíno, foi cuidar que a competição entre elas não balançasse o coreto além da conta. Não foram poucas as vezes em que, para isso, ele jogava uns contra outros: mais velho do que andar para a frente.
A eleição de Lula tornou mais complexo esse esquema, na medida em que já não se tratava apenas de manter o partido nos conformes, mas também de impedir que atrapalhasse o governo. O aparelhamento da máquina foi, entre outras coisas, um meio para esse fim.
A tese do “golpe” não pegou
Diante do crescente descontentamento com o malanismo da política econômica do companheiro Palocci e com a fisiologia à solta nas relações do governo com o Congresso, Dirceu recorreu à tática do morde-e-assopra, associando-se às críticas, no primeiro caso, para calar as queixas em relação ao segundo.
Acossado pelas denúncias do “mensalão”, tentou uma variante desse gambito, querendo mobilizar o PT para combater o que apresentou como um “golpe das elites” contra o governo Lula. Ele, Dirceu, seria sacrificado agora; o presidente, depois.
Não pegou. De um lado, porque Dirceu derramou tanto sangue no partido que o seu estoque de aliados ali é hoje uma fração do que era nos bons tempos. De outro, porque “Sua excelência, o fato”, como dizia o doutor Ulysses, vem minando, dia após a dia, a credibilidade do ex-ministro.
As portas das geladeiras onde a esquerda petista guardou todo o seu perfeitamente explicável ressentimento contra Dirceu não param de se abrir. Vingança, também os “radicais” descobriram, é um prato que fica mais gostoso quando servido frio.
O que complica a situação petista é que a ela não se aplica o “rei morto, rei posto”. Não existe um sucessor natural para o Zé Dirceu. Existe uma multidão de aspirantes a ocupar o seu espaço de liderança. Quase todos eles paulistas, notadamente a ex-prefeita Marta e o senador Mercadante – o que não desce bem nem no PT gaúcho nem no PT mineiro.
De qualquer forma, a esquerda petista é hoje a dona do pedaço. Ela agarrou a bandeira rota da ética na política e promete recosturá-la, pedacinho por pedacinho, alinhavando a tese (para usar uma palavra nobre do léxico do partido) de que a erosão da moralidade no governo Lula tem tudo a ver com a erosão dos tradicionais projetos petistas de profundas reformas econômicas e sociais.
Na ponta do lápis, a esquerda não tem – e há quem diga que não terá – poder de fogo para tomar o poder na legenda. Mas é dela, atualmente, a hegemonia “cultural” no petismo. Por ora, os setores ainda dominantes na agremiação – os moderados, como os trata a mídia – têm muito pouco a lhe contrapôr.
Depois de Marcos Valério e tudo mais – sem mencionar o que veio antes – o Campo Majoritário não fala ao coração dos intelectuais, da Igreja, dos sindicatos do setor público, dos movimentos populares.
E ao saber que Delfim Netto poderá ser o novo guru econômico do Planalto, ficam para lá de um ataque de nervos.
Pelo andar da carruagem, se fatos novos não a fizerem mudar de rumo, o PT periga ser o primeiro partido de esquerda no mundo que, tendo feito o clássico percurso para a social-democracia centrista, pode acabar pegando o caminho de volta.