O presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, coronel da reserva da PM de Minas Gerais Severo Augusto da Silva Neto, disse em entrevista ao Observatório da Imprensa, ontem, que grandes traficantes já usam as chamadas milícias, no Rio de Janeiro, para vender drogas no varejo. A principal bandeira das milícias – denominação, por sinal dada pela mídia, conveniente para os velhos grupos de extermínio que agora dominam quase 100 favelas no Rio de Janeiro – é seu antagonismo aos traficantes de drogas, que são expulsos dessas áreas. Essa expulsão, obtida sem grande aparato bélico, seria a demonstração de que agir contra traficantes não é tão difícil quanto afirma a Polícia.
Mas o coronel aponta um paradoxo digno daqueles filmes policiais em que o “mocinho”, depois de liquidar os bandidos, foge com o dinheiro. Severo Augusto afirma que atacadistas de cocaína e maconha – eles os chama de “empreendedores” –, pragmaticamente, já usam as próprias milícias para distribuir seus produtos. Rei morto, rei posto. Em todas essas modalidades e etapas, integrantes da própria Polícia participam de atividades criminosas.
O especialista elogia a disposição demonstrada pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, de “fazer transformações na questão de segurança pública no Rio de Janeiro”. Ele defende a presença permanente da Polícia e de outros braços do Estado em favelas e comunidades pobres, não apenas incursões em situações de conflagração. Diz que as drogas sintéticas, vendidas fora dos morros, abocanham uma parte do mercado dos traficantes, o que cria novos perigos:
– Eles estão perdendo comércio. Por causa da droga sintética. Quem faz o comércio de droga sintética já não é mais a boca-de-fumo na favela. O traficante cada vez mais vai precisar vender crack, que é a Tubaína nas drogas, para a própria rede dele que vendia cocaína anteriormente, mas que não tinha dinheiro para comprar. Só que o crack deixa as pessoas cada vez mais violentas. É por isso que esses meninos descem do morro feito loucos… Para o traficante não é interessante tocar fogo no ônibus com gente dentro. Nós temos de nos preparar para enfrentar essa mudança de demanda, de mercado, mesmo.
São percepções e análises que ainda não apareceram no noticiário.
Eis a entrevista.
Qual é sua visão a respeito da Força Nacional e do processo iniciado no Rio de Janeiro e em outros estados?
Severo Augusto da Silva Neto – Pelo menos agora eu observei que nós tivemos um governador, não estou falando de partido, nem nada, mas o governador assumiu a responsabilidade de fazer transformações na questão de segurança pública no Rio de Janeiro. Ou seja: houve os incidentes, em função do fenômeno que ainda é pouco conhecido – embora já exista há muito tempo –, das milícias, que começou com um processo que eles chamaram de polícia mineira. Nós temos áreas no Rio em que esse processo de polícia mineira está instalado há mais de trinta anos. Mas agora esse processo começou a invadir algumas áreas e foi isso que desestabilizou um pouco o tráfico.
Esse é um fenômeno que merece um estudo, porque na realidade o tráfico dá mostras de que não é tão forte assim quando é adequadamente enfrentado.
Isso me faz pensar que, se a Polícia trabalhasse de maneira correta, sem relação de capilaridade com o tráfico, como tem sido denunciado, talvez o quadro fosse diferente.
S.A.S.N. – Seria bastante diferente. O quadro se torna diferenciado na medida em que as intervenções policiais não são pontuais, numa área conflagrada, mas são permanentes, com a ocupação daquela área.
A ocupação de que o senhor fala é, vamos dizer assim, bélica, ou uma ocupação estatal?
S.A.S.N. – É uma ocupação não bélica. Não podemos mais ter essas incursões no interior de uma área conflagrada e depois a Polícia sair. Nós temos que ter a entrada e a permanência do organismo policial, para gerar ordem naquele espaço.
Mas o senhor está vendo isso acontecer em algum lugar do Brasil?
S.A.S.N. – Existem alguns programas em que a ocupação não é única e exclusivamente bélica. Porque é preciso fazer a ocupação nessas áreas com resposta e prevenção de Polícia, levando Justiça, identificando quem são os marginais, prendendo esses marginais, julgando, levando-os para um sistema penitenciário que não permita que de dentro eles comandem o tráfico. Mas além disso tudo, da repressão feita pelo Estado, é preciso levar o Estado, educação, lazer, saúde. Quando eu digo ocupar é ir com força e com outros elementos que caracterizam o Estado. O que a gente tem é como aconteceu aqui ontem de manhã (terça-feira, 16/1). O pessoal vai lá, invade [o Morro da Mangueira], cumpre um mandado, troca de tiros, três morrem, a Polícia sai, os traficantes ocupam o espaço novamente. Depois que a Polícia sai eles descem, colocam fogo, voltam para dentro do morro, e fica algo que não é definitivo.
E o que as milícias fizeram? Teve um primeiro embate, expulsaram os bandidos e ocuparam, não deixaram mais os bandidos trabalharem naquele espaço ali.
‘Milícias começaram como forma de sobrevivência”
Eu só pontuaria que as milícias também são constituídas por bandidos.
S.A.S.N. – É. Mas, na realidade, o que aconteceu? Foi um processo que começa com uma forma de sobrevivência. Esse processo se inicia quando os PMs, bombeiros militares, agentes carcerários começaram a ser expulsos dos locais onde moravam, que eram áreas conflagradas.
Acredito que essa é uma descrição correta do fenômeno – em parte, porque na Baixada Fluminense não é bem isso, o esquadrão da morte da Baixada começa num contexto um pouco diferente…
S.A.S.N. – Mas eu estou falando como elas se iniciaram…
No Rio, na Zona Oeste…
S.A.S.N. – É.
Isso aí é o mesmo fenômeno que podemos apontar em relação à resistência carcerária, de presos. Por exemplo, o caso do PCC, quanto mais eu leio, mais eu me convenço de que ele subiu numa plataforma que era legítima, que era quase defender a própria vida, dentro das prisões, e dali ele começou a fazer outras coisas. E a milícia, a mesma coisa…
S.A.S.N. – A mesma coisa. Foram defender a sua própria existência. Só que, depois, o processo foi contaminado. E agora o processo é feito com outras características. É de obtenção de lucro ilícito…
Toda vez que não for o Estado, toda vez que se delegar a alguém essa tarefa…
S.A.S.N. – … o papel do Estado vira bandidagem. Porque aí é feito fora do Estado democrático de direito. E tudo que é fora do Estado democrático de direito é bandido. Fica à margem da lei.
“Empreendedor” já usa milícia
Esse processo se inicia lá na Zona Oeste do Rio de Janeiro…
… Rio das Pedras…
S.A.S.N. – É, a coisa ali já existe há algum tempo. Só que a coisa agora ficou mais conturbada. Quando começaram a perceber: “Além da gente ter sobrevivência, a gente pode ter ganho”. Começam a vender “gatonet” [ligação clandestina de tevê por assinatura], a vender gás. E os bandidos começam a perceber… Porque tem o empreendedor que usa essa mão-de-obra. Esse empreendedor ele está fazendo o quê? “Opa, agora não vou usar mais aquele traficante, agora eu vou usar essa milícia, porque ela é capaz de me atender também”.
O que o senhor chama de “empreendedor”?
S.A.S.N. – É o grande traficante. Ele começa a usar essa mão-de-obra.
Quem é o grande traficante, hoje?
S.A.S.N. – É o sujeito que vai, compra na fonte, transporta e distribui.
Compra na Bolívia, na Colômbia?
S.A.S.N. – Ele tem um processo de compra, transporte e distribuição. Ele é o grande empreendedor. Agora, quem vai vender para ele na ponta, ele faz a contratação local daquele sistema pulverizado da boca-de-fumo. Hoje ele está vendo que ele pode contar com essas milícias também para fazer esse tráfico. E esse é o grande problema.
Isso é novidade.
S.A.S.N. – A gente pode estar tendo única e exclusivamente uma substituição de quem vende na ponta. O tráfico está perdendo força.
Droga sintética, cocaína, maconha, crack
Para mim, ouvir que o tráfico está perdendo força é novidade.
S.A.S.N. – Eles estão perdendo comércio.
Por quê?
S.A.S.N. – Por causa da droga sintética. Hoje, aqueles que iam para a maconha, iam para a cocaína… Quem faz o comércio de droga sintética já não é mais a boca-de-fumo na favela.
É verdade. Houve uma sucessão de prisões de quadrilhas de classe média em Niterói e no Rio de Janeiro. O morro vai ficar mais pobre. É a miséria total, a exclusão completa. Nem droga.
S.A.S.N. – O negócio é muito complicado, porque vai ficar uma massa operária do bandido, com arma na mão… Por isso estão aumentando os assaltos. O traficante cada vez mais vai precisar vender crack, que é a Tubaína das drogas, e ele vai vender para quem? Para a própria rede dele que vendia cocaína anteriormente, mas que não tinha dinheiro para comprar. Para fazer dinheiro agora ele vai ter que introduzir o crack. Só que o crack deixa as pessoas cada vez mais violentas. É por isso que esses meninos descem do morro feito loucos… Para o traficante não é interessante tocar fogo no ônibus com gente dentro. O crack deixa o menino mais louco, mais dependente e mais inconseqüente. Nós temos de nos preparar para enfrentar essa mudança de demanda, de mercado, mesmo.
Hoje pelo menos já há algumas mudanças, os governadores do Sudeste reunidos, os secretários reunidos, a questão da Força Nacional, independentemente de se ela vai produzir resultados, pelo menos mostra a postura de alguém que está dizendo: eu quero combater. Mandar os presos lá para o Paraná, ninguém tinha coragem de fazer isso. Mandou e não entornou o caldo como a gente pensava, no Rio de Janeiro. Estamos precisando de gente mais ousada em tomar medidas. Principalmente analisando a fragilidade do tráfico, entrar por aí.
[Ver também ‘Debate busca raízes da violência‘.]