O leitor interessado, ou meramente curioso, em ir além da superfície das matérias sobre os indicadores sociais de 2004 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), do IBGE – ver neste blog o artigo ‘Melhorou!’, de 26 de novembro – tem na Folha de hoje uma refeição completa.
Começa pelo texto do colunista Gilberto Dimenstein, “Para não ser ludibriado pelas boas notícias”, no caderno Cotidiano, e se completa com um pacote de duas matérias originais, graças a uma iniciativa do repórter Pedro Soares, e de dois artigos de especialistas em políticas sociais.
Dimenstein seleciona os principais dados da Pnad, diz que tanto Lula como o PSDB tem direitos autorais a reivindicar no caso, e explica por que – lembrando os diversos “padrinhos” do Bolsa-Família, principalmente os petistas Eduardo Suplicy e Cristovam Buarque, o tucano, já falecido, José Roberto Magalhães Teixeira, que foi prefeito de Campinas, e o pefelista Antonio Carlos Magalhães, com o seu Fundo de Combate à Pobreza.
Melhor ainda, faz justiça a um brasileiro, também falecido, de que poucos ouviram falar e de quem é difícil dizer o que mais tinha de sobra: talento, competência, integridade e espírito compassivo.
Ele se chamava Vilmar Faria, era sociólogo, lecionou na USP e na Unicamp. Da coluna de Dimenstein:
“Instalado no Palácio do Planalto, Vilmar, cuja discrição era inversamente proporcional à sua ascendência, foi o mais influente assessor de Fernando Henrique Cardoso na montagem de um plano de redução da pobreza. Vilmar já tinha desenhado o foco das ações na família e a unificação das bolsas [-escola].”
Quem conheceu Vilmar sabe que não há uma palavra fora de lugar nas informações do colunista sobre ele.
Como que numa tabelinha, as lembranças de Dimenstein se desdobram nas matérias de Pedro Soares, no caderno Dinheiro: “Desigualdade cai no Brasil desde 1993” e “População indigente cai pelametade desde 1992”.
Imaginação e iniciativa
O pulo-do-gato de Soares foi pedir ao IBGE que cruzasse os dados da Pnad com os de outras pesquisas realizadas ao longo dos anos pelo instituto sobre a situação social do país P>
Além disso, teve outra grande idéia: conseguiu que a economista Sonia Rocha, que entende da questão como poucos ou poucas, fizesse um trabalho a respeito, exclusivo para a Folha, com uma pá de dados relevantes.
Com isso, o repórter da sucursal carioca do jornal demonstrou imaginação e iniciativa incomum numa imprensa dominada por aspas – o jornalismo declaratório, na definição impercível de Alberto Dines –, press-releases e, não raro, pela volúpia da denúncia do gênero atirar primeiro e perguntar depois.
A numeralha recolhida por Soares mostra como é imprudente fazer generalizações sobre a vida dos brasileiros.
Por exemplo: desde 1997, a renda média dos brasileiros, caindo sistematicamente, encolheu ao todo 17% [em valores reais]. A renda, do trabalho, 18%. E a riqueza nacional, medida pelo PIB, cresceu em média nesse mesmo período esquálidos 2,15% ao ano.
Mas nem esse desempenho acabrunhante da economia – para não falar na crise do emprego – reverteu a tendência que vinha desde 1993 de queda moderada da pobreza absoluta e de diminuição, também moderada, da concentração da riqueza.
Em 1993, na escala de zero (igualdade absoluta) a um (desigualdade absoluta) do índice Gini, o Brasil estava em 0,571. No ano passado, ficou em 0,535.
Do mesmo modo, em 1993, os brasileiros pobres eram 44% da população; os indigentes, 16%. Onze anos depois, os primeiros viraram 33,2%, e os segundos 8%.
São números ainda muito ruins para um país com uma economia como a nossa. Já em 1994, o candidato Fernando Henrique resumia a ópera com uma dezena de palavras: “O Brasil não é um país sub-desenvolvido. É um país injusto.”
Mas, apesar de tudo – e põe apesar de tudo nisso -, o panorama social não só não ficou mais escuro, como deu até uma clareada.
O desafio para as políticas econômicas, como bem diz Sonia Rocha, é mudar a velha escrita do crescimento com padrão desigual.
E o desafio para os jornalistas, competentemente enfrentado na Folha por Gilberto Dimenstein e Pedro Soares, cada qual a seu modo, é alertar o leitor para que não caia na conversa nem de petistas, nem de tucanos, de que só uns, ou outros, têm a paternidade pelo (pouco) que anda melhorando na vida do povão.
***
Serão desconsideradas as mensagens ofensivas, anônimas e aquelas cujos autores não possam ser contatados por terem fornecido e-mails falsos.